O Deus soberano da “Elfolândia” (Por que o anti-calvinismo de Chesterton não me desencoraja)

Desde os meus dias de Wheaton College, quando segui o conselho de Clyde Kilby de ler Ortodoxia, de G. K. Chesterton, este tem sido um dos meus livros favoritos. Acho que é o único livro que li mais de duas vezes (com exceção da Bíblia).

Isso é estranho. Chesterton não somente era um católico romano, ele também detestava o calvinismo. O que há entre mim e Ortodoxia, então? Ainda acho que pelo menos meia dúzia de distintivos católicos romanos são nocivos para a verdadeira fé cristã (p. ex., autoridade papal, regeneração batismal, transubstanciação, justificação como transmissão, purgatório, veneração a Maria). E acho que as “doutrinas da graça” (“Teologia reformada”, “calvinismo”) são uma expressão preciosa e saudável da doutrina bíblica.

Ponto em comum (“Elfolândia”)

Mas sempre volto para o Ortodoxia de Chesterton. A razão é que vemos o mundo de forma muito parecida, e o calvinismo que ele abomina não é o calvinismo que eu amo.

 • Ambos nos maravilhamos com o fato de estarmos nadando no mesmo mar de maravilhas infinito chamado universo.

 • Ambos ficamos assombrados não pelos narizes pontudos ou achatados, mas que humanos tenham narizes.

 • Ambos achamos que é bem provável que a razão de o sol nascer toda manhã não seja por causa de algo chamado “lei”, mas porque Deus diz “Vamos de novo!”. E que ele diz isso mais como uma criança empolgada do que como um chefe severo.

 • Ambos acreditamos que lógica e imaginação são totalmente compatíveis e que nenhuma será útil sem a outra.

 • Ambos acreditamos que a magia do universo deve ter sentido, e que o sentido deve ter alguém para conferir-lhe sentido.

 • Ambos acreditamos que as glórias deste mundo são como bens resgatados de alguma ruína primeva – uma ruína cujas evidências estão por toda parte.

 • Ambos acreditamos que o paradoxo está entremeado na natureza do universo, e que opor-se a isso é loucura. “Os poetas não enlouquecem. Os matemáticos enlouquecem, e os caixas, mas isso raramente acontece com artistas criadores. […] O poeta apenas pede para pôr a cabeça nos céus. O lógico é que procura pôr os céus dentro de sua cabeça. E é a cabeça que se estilhaça”[1].

Essas e um centena de outras concordâncias felizes e amplas me fazem voltar a Chesterton, pois ninguém declaras essas coisas melhor do que ele. Como C. S. Lewis, ele enxerga mais assombro em um dia comum do que a maioria de nós enxerga em uma centena de milagres. Continuarei voltando a qualquer um que me ajude a ver e me abismar com o que está diante dos meus olhos – qualquer um que possa ajudar a me curar da doença de “ver o que eles não veem”.

Não é o mesmo calvinismo

Mas como, então, o calvinismo pode despertar tal alegria em mim e tal aversão em Chesterton? Porque não são o mesmo calvinismo. Chesterton acha que o calvinismo é o oposto de todo esse ditoso assombro que temos em comum. O calvinismo que ele odeia é parte do racionalismo que leva as pessoas à loucura. Por exemplo:

Apenas um grande poeta inglês enlouqueceu, Cowper. E ele foi definitivamente levado à loucura pela lógica, pela repulsiva e estranha lógica da predestinação. A poesia não foi seu mal, foi seu remédio. A poesia preservou-lhe parte da saúde. […] Ele foi condenado por João Calvino, e quase foi salvo por John Gilpin.

Não, Sr. Chesterton. William Cowper não enlouqueceu por causa do calvinismo. Ele enlouqueceu por causa de uma doença mental que atingiu sua família por gerações, e foi salvo por John Newton, talvez o calvinista mais humilde e feliz que já existiu. E ambos viram os milagres da “Maravilhosa Graça” através dos olhos da poesia. Sim, isso foi um bálsamo curativo. Mas a doença não foi o calvinismo – do contrário, John Newton não teria sido o amigo contente, sadio e piedoso que foi.

O calvinismo que germina na “Elfolândia”

Aqui está a razão por que as flechadas de Chesterton no calvinismo não me derrubam. O calvinismo que eu amo está muito mais próximo da “Elfolândia” que ele ama do que do racionalismo que ele odeia.

Sem dúvidas ele ficaria desconcertado com minha experiência. Para mim, a maior, mais forte, mais bela e mais frutífera árvore que cresce no solo da “Elfolândia” é o calvinismo. Aqui está uma árvore grande, forte e alta o bastante para fazer com que todos os ramos paradoxais da Bíblia ganhem vida – e sacudirem de alegria na claridade da soberania de Deus.

À sombra desta árvore, fui liberto das forças procustianas do pressuposicionalismo antibíblico do livre-arbítrio – a estranha e rija suposição de que, sem o direito à autodeterminação última, os seres humanos não podem ser responsáveis por suas escolhas. Quando me afastei dessa árvore tacanha, racionalista e dispersa para a sombra da imponente árvore do calvinismo, foi um dia feliz. De repente, descobri que toda a poesia tem versado sobre isso. Esta é a árvore onde todos os ramos de todas as verdades que os homens têm tentado separar se desenvolvem.

O que fazer com a lógica?

Para mim, é uma grande ironia que os calvinistas sejam estereotipados como pessoas regidas pela lógica. Por quarenta anos, minha experiência tem sido o oposto. Os calvinistas que conheci (os puritanos ingleses, Jonathan Edwards, John Newton, Charles Spurgeon, J. I. Packer, R. C. Sproul) não são regidos pela lógica, mas pela Bíblia. Os oponentes é que trazem sua lógica para a Bíblia e nulificam texto após texto. Os ramos são decepados pela “lógica”, não pela exegese.

Quem são os grandes apreciadores do paradoxo hoje? Quem são os pastores e teólogos que pegam os chifres de cada dilema[2] bíblico e juram ao Deus-Homem: Jamais abandonarei qualquer um deles?

Não são os críticos do calvinismo que eu encontro. Eles leem sobre o amor divino e rejeitam a predestinação. Leem acerca da escolha humana e rejeitam o governo divino sobre todos os nossos passos. Leem sobre a resistência humana e rejeitam a graça irresistível. Quem é regido pela lógica?

Por quarenta anos o calvinismo tem sido, para mim, uma visão de vida que abraça o mistério mais do que qualquer outra que eu conheço. Ela não é regida pela lógica. É regida por uma visão da imensidão inefável, galáctica da palavra de Deus.

Deixe-me esclarecer: ela não abraça a contradição. Chesterton e eu concordamos que a verdadeira lógica é lei da “Elfolândia”. “Se as Irmãs Feias são mais velhas que a Cinderela, então é (num sentido irônico e terrível), NECESSÁRIO que a Cinderela seja mais jovem que as Irmãs Feias”. Nem Deus nem sua Palavra são autocontraditórios. Mas são paradoxos? Sim.

Nós, calvinistas felizes, não reivindicamos pôr os céus dentro de nossas cabeças. Nós tentamos pôr nossa cabeças dentro dos céus. Não reivindicamos respostas amplas para os paradoxos revelados. Nós cremos. Tentamos entender. E irrompemos em canto e poesia vezes sem conta.

Do Dilema para o Unicórnio

Nós não ajustamos as categorias emblemáticas da Escritura para que caibam na razão humana. Assumimos, como uma de nossas tarefas, a criação de categorias, nas mentes humanas, que nunca existiram nessas mentes antes – um trabalho que somente Deus pode fazer, embora ele nos constitua como agentes. Por exemplo, trabalhamos para criar categorias de pensamento como essas:

 • Deus governa o mundo, das alegrias ao sofrimento e ao pecado, desde o lançar das sortes e o cair de um pássaro até o fincar dos pregos na mão do seu Filho; contudo, ainda que ele queira que tal pecado e sofrimento aconteça, ele não peca, mas é perfeitamente santo;

 • Deus governa todos os passos de todas as pessoas, bons ou maus, em todas as épocas e lugares; de tal forma, contudo, que todos são responsáveis por eles e arcarão com as justas consequências de sua ira caso não creiam em Cristo;

 • Todos estão mortos em seus delitos e pecados, e não são moralmente capazes de vir a Cristo por conta de sua rebelião; contudo, são responsáveis por vir, e serão punidos com justiça se não o fizerem;

 • Jesus Cristo é uma pessoa com duas naturezas, divina e humana, de tal forma que ele sustentou o mundo pela palavra do seu poder enquanto vivia no ventre de sua mãe;

 • O pecado, apesar de cometido por uma pessoa finita e nos limites do tempo finito, é, todavia, merecedor de um castigo infinitamente extenso, uma vez que é um pecado contra um Deus infinitamente digno.

 • A morte do Deus-Homem, Jesus Cristo, manifestou e glorificou a justiça de Deus de modo que este não é injusto em declarar justas pessoas ímpias que creem somente em Cristo.

Esses são alguns dos ramos entrelaçados e paradoxais da árvore do calvinismo. Eles não germinam no solo da lógica humana caída. Eles crescem no solo impregnado de Bíblia da “Elfolândia”. Aqueles que moram lá acreditam que um Dilema com dois chifres provavelmente está se transformando em um Unicórnio.

Dou graças a Deus por Chesterton. Seu dom de ver o mundo e descrevê-lo é incomparável. Ele abre meus olhos para assombrar-se com o que está aí. E o que está aí é a obra das mãos de Deus. Pode ser que ele fique estarrecido em ouvir isso, mas seus olhos ajudaram-me a ver mais claramente do que nunca o Deus de Jonathan Edwards.

[1] CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. Editora Mundo Cristão, 2012, 2ª edição. Tradução de Almiro Pisetta. (Edição Kindle). Todas as demais citações de Chesterton neste texto são da referida edição. (Nota do Tradutor.)

[2] “Mostrar que a premissa conjuntiva é falsa recebe o nome de ‘pegar o dilema pelos chifres’. Consiste em mostrar que ao menos uma das conjuntas é falsa”. MARTINICH, A. P. Ensaio filosófico: o que é, como se faz (Ed. Loyola, 1996. p. 158). (Nota do Tradutor.)

Por: John Piper. © 2012 Desiring God. Original: The Sovereign God of “Elfland” (Why Chesterton’s Anti-Calvinism Doesn’t Put Me Off)

Tradução: Leonardo Bruno Galdino. © 2016 Ministério Fiel. Todos os direitos reservados. Website: MinisterioFiel.com.br. Original: O Deus soberano da “Elfolândia” (Por que o anti-calvinismo de Chesterton não me desencoraja)

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