O que Lutero queria dizer quando ensinava a salvação pela graça?

O texto abaixo foi extraído do livro Por que a Reforma ainda é importante?, de Michael Reeves e Tim Chester, lançamento da Editora Fiel.

Alguns anos antes da Reforma, em seus dias como monge, Lutero começara a lecionar sobre a Bíblia na Universidade de Wittenberg. Ali, ele ensinava aos alunos que a salvação é pela graça. “Não por causa de nossos méritos”, explicava ele; a salvação é “dada pela pura misericórdia do Deus que promete”. Não dispararam os alarmes; nem uma sobrancelha sequer foi levantada entre todos os inquisidores de Roma. Por que não? Porque o monge ainda estava mantendo a própria teologia de Roma. Ele ensinava lealmente o padrão do catolicismo romano medieval, de que a salvação é pela graça.

Pode ser que as sobrancelhas não se erguessem em Roma, mas as suas, sim. Pois esse não era todo o ponto da Reforma em que o catolicismo romano medieval ensinava, falsamente, que a salvação se dava pelas obras? Com certeza, era como muitos viam isso. Mas, na verdade, essa ideia falha em alcançar como as coisas realmente estavam na ocasião. Mais importante: deixa de atingir a verdadeira maravilha e acuidade da mensagem dos reformadores.

A graça no catolicismo romano medieval

O que, então, Lutero, o monge (antes da Reforma), queria dizer quando ensinava a salvação pela graça? Ele podia afirmar que a salvação “não se baseia em nossos méritos, mas na pura promessa de um Deus misericordioso”. Isso tudo soa bastante reformador, até que ele retoma a explanação:

Daí os mestres corretamente dizem que, ao homem que faz o que está nele, Deus dá graça sem falha […] [Deus] concede tudo gratuitamente e somente com base na promessa de sua misericórdia, embora ele queira que estejamos preparados para isso enquanto estiver dentro de nós.

De acordo com isso, Deus salva mesmo pela graça, mas essa graça é dada àqueles que estão “preparados” para isso, que fazem “aquilo que está neles”, para serem merecedores da graça. Ou, como outros (“os mestres”) na época gostavam de dizer, “Deus não nega a graça àqueles que se esforçam ao máximo”.

Romanos 5.5 talvez seja o versículo mais útil para se entender essa visão da salvação pela graça. “O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado”, escreve o apóstolo Paulo. Em vez de ser lido como um versículo sobre a obra transformadora do Espírito naqueles que “foram justificados pela fé” (Romanos 5.1), conforme prova o contexto, Romanos 5.5 era tomado como um relato da salvação, o que significava que Deus derrama seu amor e graça em nossos corações, transformando-nos e tornando-nos santos – santos o bastante para, enfim, ir para o céu.

Nosso problema, de acordo com essa teologia, é que, embora Deus seja santo, nós somos espiritualmente preguiçosos. Só gente santa pertence a Deus santo no céu, mas, embora reconheçamos esse problema, nós realmente não nos importamos com isso. Parece que não somos capazes de assumir a energia necessária para sermos verdadeiramente santos. Assim, Deus, em sua bondade, nos concede a graça. Conforme já vimos, a graça é algo como uma lata de Red Bull espiritual. Eu não consigo me erguer e tornar-me santo. Então, Deus me concede a graça e, de repente, eu me encontro muito mais animado e capaz.

Essa era então uma teologia da salvação pela graça: sem essa graça, jamais poderíamos nos tornar a espécie de pessoa santa que dizia pertencer ao céu. Mas não era absolutamente uma teologia de salvação somente pela graça. Aqui, a graça providenciava o impulso que essa teologia imaginava necessária a todos, para que merecessem a vida eterna; mas, na verdade, não dava nem garantia para a própria vida eterna. O Red Bull da graça seria dado àqueles que a desejassem e buscassem, e ela seria dada aos que a quisessem e a seguissem, e salvava somente quando capacitava as pessoas a se tornarem santas, ganhando, assim, a salvação.

Talvez essa fosse a teologia do catolicismo romano do século XVI, mas não é algo assim tão desconhecido dos protestantes e evangélicos do século XXI. A “graça” ainda é rotineiramente vista como um pacote de bênçãos concedido por Deus. E, pequenos detalhes à parte, esse retrato encerra bem uma visão comum e instintiva da salvação: embora saibamos que Deus salva pela graça, ainda assim procuramos em nós mesmos e em nosso desempenho saber como estamos diante dele. E, com frequência, nossa vida de oração revela isso muito dolorosamente. Todos os dias, os cristãos deveriam ser capazes de se aproximar do Todo-Poderoso e clamar corajosamente: “Pai nosso”, tudo por causa de Jesus. Conforme lemos em Hebreus: “Tendo, pois, a Jesus, o Filho de Deus, como grande sumo sacerdote que penetrou os céus, conservemos firmes nossa confissão. Porque não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se de nossas fraquezas; antes, foi ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado. Acheguemo-nos, portanto, com confiança, do trono da graça” (Hebreus 4.14-16). Na prática, nossos pecados e falhas nos fazem recear. Ignorando a salvação de Jesus, sentimos que não podemos nos aproximar do Santo devido ao modo como agimos.

Tendo sentido o amargor das borras dessa teologia autodependente, Lutero escreveu: É verdade. Eu era um bom monge e guardava tão restritamente a minha ordem que poderia afirmar que, se algum monge poderia chegar ao céu mediante a disciplina monástica, eu certamente deveria entrar. Todos os meus companheiros do mosteiro que me conheciam garantiriam a mesma coisa, pois, se eu tivesse continuado, teria me martirizado até a morte, com tantas vigílias, orações, leituras e outras obras […]. No entanto, minha consciência não me concedia certeza, mas eu sempre duvidava e dizia: “Não fizeste isso certo. Não foste suficientemente contrito. Deixaste isso fora de tua confissão”. E, quanto mais eu tentava remediar uma conturbada consciência fraca, perturbada pelas tradições humanas, mais descobria diariamente ser ela incerta, mais fraca e mais perturbada.

A mensagem reformada de Lutero acerca da salvação somente pela graça não poderia ter parecido mais diferente em comparação com seu antigo ensinamento pré-reformado sobre a salvação pela graça. E foi assim que ele começou a falar: “Não é justo aquele que muito faz, mas aquele que, sem obras, crê muito em Cristo”. Aqui, a graça não trata de Deus construir sobre nossas obras justas ou de nos ajudar a realizá-las. Lutero começava a ver que é Deus quem “justifica os ímpios” (Romanos 4.5), e não apenas quem reconhece e recompensa aqueles que conseguem tornar-se piedosos. Deus não é quem tem de edificar sobre nossos fundamentos; ele cria a vida para nós. E, em vez de buscar ajuda e, finalmente, depender de si mesmo, Lutero voltava a depender inteiramente de Cristo, em quem toda a justiça é realizada. “A lei diz: ‘faz isso’, e isso nunca é feito. A graça diz: ‘crê nisso’, e tudo já foi feito.”

Por: Michael Reeves e Tim Chester. © 2017 Editora FIEL. Website: editorafiel.com.br. Traduzido com permissão. Fonte: O que Lutero queria dizer quando ensinava a salvação pela graça? © Ministério Fiel. Website: MinisterioFiel.com.br. Todos os direitos reservados.