Evangelho industrializado

O que me faz querer estar num relacionamento com Deus, servindo Sua igreja e engajado em Seu Reino? Quais são os motivos reais que me levam a estar trabalhando em algum ministério local, liderando algum grupo pequeno, tocando, cantando, dando aulas e pregando? O que me leva a estar numa missão cristã? O que me faz apoiar algum dos diversos ministérios locais ou frentes de trabalho de uma igreja? Nesse imenso leque de atividades realizadas pelas igrejas locais atualmente, qual a verdadeira razão que nos impulsiona a nos envolvermos nesse grandioso trabalho missionário?

É muito comum encontrarmos igrejas que, para engajarem seus membros definitivamente em seus arraiais, acabam de forma, por vezes, inocente, por vezes, irresponsável, dando a estes, diversas atividades e responsabilidades a serem rigorosamente cumpridas, quando na verdade o que eles mais precisariam é de acolhimento, cuidado e discipulado, já que muitos mal chegaram ao ambiente da igreja e pouco sabem sobre a fé cristã e suas reais implicações na nossa vida.

Notem, por exemplo, o famoso movimento de igreja em células que, apesar de bastante diversificado, em linhas gerais, valoriza demasiadamente a velocidade do crescimento da igreja e estipula metas a serem batidas por seus líderes, adotando uma metodologia quase como se os pequenos grupos fossem um tipo de indústria da salvação. Existe, predominantemente nesses contextos, uma grande pressão para que os liderados se tornem líderes, multipliquem o trabalho, gerem “filhos na fé” e cooperem para a “expansão do Reino de Deus”. Por vezes, esse processo apressado, quase que mecânico, compromete gravemente a qualidade daquilo que se é ensinado, pois é bastante provável que a formação desses líderes multiplicadores não seja adequada. Muitas vezes a pressão é tão grande que os envolvidos com o trabalho têm sua agenda vinculada à igreja quase que a semana toda e muitos ainda não estão preparados para isso, e nem deveriam estar a bem da verdade. Não seriam tais abordagens nocivas para a vida dos envolvidos a curto, médio e longo prazo? Temo que sim. Nos tempos insanos em que vivemos, onde cada vez mais raros são os momentos de paz e descanso, a escolha da igreja por sobrecarregar sua membresia em trabalhos exaustivos intramuros, privando-a de um contato mais particular, orgânico e longo, tanto com a Palavra quanto com os irmãos mais experimentados na fé, definitivamente, não me parece a melhor opção.

Existe nesses movimentos certa medida descabida de empreendedorismo mercadológico que diverge do princípio bíblico de que salvação é dádiva dada aos homens por Deus somente por graça, e não algo provocado pela capacidade humana e seus sistemas. Industrializar a salvação depõe contra o Espírito Santo que sopra onde quer e convence quem e quando quer do pecado, da justiça e do juízo.

Outra dificuldade grave para a qual temos de chamar a atenção é a promoção predominante do conceito de missão cristã confinado aos limites da esfera da fé e das quatro paredes da igreja. Há, não poucas vezes, escassez quanto aos ensinos preconizados na Reforma Protestante, acerca do mandato cultural do homem e do senhorio de Cristo sobre todas as atividades da vida. A membresia da igreja, envolvida em tantas atividades intramuros, acaba sem forças e tempo para enxergar, discernir, se alegrar e exercer sua vocação no mundo para a glória de Deus, além de, sequer, ser despertada intelectualmente para a integralidade da vida diante do Criador.

Vejamos ainda. Muitas pessoas acabam precocemente inseridas em outros contextos da igreja, como os ministérios musicais, artísticos e outros mais, sem saber absolutamente nada do Evangelho. Após inseridas nesses contextos, cercadas por uma avalanche de atividades, muitas continuam sem aprender e sem interesse de aprender nada da fé que dizem professar, pois, estão comprometidas não com o Jesus das Escrituras, mas com as tarefas que encontraram no novo círculo social que a igreja lhes proporcionara.

Elas ouviram quase nada sobre Cristo, entenderam quase nada sobre porquê precisam crer Nele, entenderam quase nada do significado do pecado e da justiça de Deus, não entenderam o motivo pelo qual Jesus teve de morrer numa cruz, não sabem porquê são protestantes, não entenderam o que é a igreja e sua importância, não sabem quem são os profetas, os salmistas, os apóstolos, mas já estão em nossos púlpitos dando testemunhos de conversão, tocando suas guitarras, vestidas com suas camisetas gospel, cantando, pulando e chorando de emoção.

É desafiador admitir, mas por vezes, muitas destas pessoas estão comprometidas apenas consigo mesmas, com suas necessidades relacionais, com seus anseios por algo ou alguém que lhes tire do tédio em que vivem. Estão deslumbradas com o palco, com as luzes, com a música, com as cores, com a evidência que terão e com a oportunidade de viverem novos desafios em suas vidas pacatas. Estão amando o novo círculo social, as novas amizades e as novas possibilidades que elas trazem, mas ainda não têm convicção profunda dos pecados que cometem todos os dias, não amam o Cristo de Deus e seu Evangelho da Reconciliação, que faz desmoronar em nós o egoísmo de nossas necessidades caídas, para no lugar delas, fazer jorrar o verdadeiro amor, que ama a Deus e somente a Ele sobre todas as coisas, e ao próximo como a nós mesmos.

Somos evangélicos que amam ao Evangelho e ao Cristo do Evangelho, ou apenas seguidores de uma mera ilusão travestida de religião? Somos de fato convertidos de todo coração ou apenas aderimos a um novo modismo de vida? Você já parou pra se perguntar se faz o que faz e está onde está no Reino de Deus por amor a Deus ou a si mesmo? Seu engajamento no Reino de Deus tem lhe custado algo? Você tem descoberto semana após semana, quão profundos são os seus pecados e quão gigante é o amor de Deus? Tem se alegrado nisso? Tem se envergonhado disso? Seu coração tem queimado com essas verdades incomparáveis ou você está interessado apenas num tempo bacana de descontração e risadas num ambiente socialmente agradável, inspirado num Jesus ilusório criado à sua imagem e semelhança?

Alguma vez já passou pela sua mente que talvez sua missão, por um tempo – talvez não muito curto, seja apenas se sentar, ouvir, perguntar e refletir seriamente sobre a Palavra de Deus na companhia de homens e mulheres que já caminharam bem mais que você? É claro que não estou desencorajando seu envolvimento vigoroso na igreja do Senhor, apenas estou ponderando que seu engajamento deve ser feito de forma responsável, alicerçada e consciente. Existem fases de envolvimento com a comunidade da fé, e nós não podemos confundi-las ou desorganizá-las. Seu envolvimento precisa estar alicerçado na verdade bíblica sobre quem é o Deus a quem você serve, como Ele pensa, e, o que Ele requer de você; não no que você acha de Deus, pensa de Deus ou requer dele. Seu engajamento na igreja não deve ser entretenimento barato e reducionista, que serve apenas para suprir suas necessidades relacionais ou segurar pessoas nos círculos sociais que criamos. Antes, deve ser fruto de uma madura compreensão sobre qual trabalho o Senhor realmente te chamou para fazer n’Ele, seja dentro ou fora da igreja, com ricos ou pobres, crentes ou incrédulos, jovens ou idosos. Até porque o mundo todo pertence a Deus, e a igreja dele somos nós, gente de toda língua, tribo, raça e nação, espalhada por todos os lugares, com a responsabilidade de sinalizar com obras e palavras que há redenção pelo sangue de Cristo para todos os problemas e mazelas da humanidade. Seja Ele a sua luz, o seu descanso e o seu discernimento em todos os momentos, sonhos e empreendimentos que estão por vir.

Que Deus nos alcance!