Franklin Ferreira – O uso dos Salmos na devoção cristã (3/3)

4. Colocando em prática

Podemos nos beneficiar do que Dietrich Bonhoeffer escreveu sobre o uso dos Salmos: “Em muitas igrejas, cantam-se ou leem-se Salmos a cada domingo ou até diariamente. Essas igrejas preservaram uma riqueza imensurável, pois somente pelo uso diário penetraremos nesse livro divino de oração. Para o leitor ocasional, suas orações são pujantes demais em seus pensamentos e sua força, de modo que voltamos a procurar alimento mais digerível. Quem, no entanto, começou a orar o Saltério com seriedade e regularidade, logo dispensará as próprias orações superficiais e piedosas dizendo: ‘Elas não têm o sabor, a força, a paixão e o fogo que encontro no Saltério. São muito frias e rígidas’ (Lutero)”.24 Portanto, devemos incluir os Salmos em nossas orações diárias, permitindo que a Palavra de Deus estimule e guie nossas petições. E como uma ajuda para orar os Salmos diariamente em nossa meditação ou oração diária, oferecemos o roteiro abaixo:25

  • Dia 1: Salmos 1 a 8
  • Dia 2: Salmos 9 a 14
  • Dia 3: Salmos 15 a 18
  • Dia 4: Salmos 19 a 23
  • Dia 5: Salmos 24 a 29
  • Dia 6: Salmos 30 a 34
  • Dia 7: Salmos 35 a 37
  • Dia 8: Salmos 38 a 43
  • Dia 9: Salmos 44 a 49
  • Dia 10: Salmos 50 a 55
  • Dia 11: Salmos 56 a 61
  • Dia 12: Salmos 62 a 67
  • Dia 13: Salmos 68 a 70
  • Dia 14: Salmos 71 a 74
  • Dia 15: Salmos 75 a 78
  • Dia 16: Salmos 79 a 85
  • Dia 17: Salmos 86 a 89
  • Dia 18: Salmos 90 a 94
  • Dia 19: Salmos 95 a 101
  • Dia 20: Salmos 102 a 104
  • Dia 21: Salmos 105 e 106
  • Dia 22: Salmos 107 a 109
  • Dia 23: Salmos 110 a 115
  • Dia 24: Salmos 116 a 119.32
  • Dia 25: Salmo 119.33 a 119.104
  • Dia 26: Salmo 119.105 a 119.176
  • Dia 27: Salmos 120 a 131
  • Dia 28: Salmos 132 a 138
  • Dia 29: Salmos 139 a 143
  • Dia 30: Salmos 144 a 150

Pode ser de ajuda citar extratos de um ensaio sobre meditações diárias escritas por Eberhard Bethge em 1935, sob a supervisão de Bonhoeffer, para uso no seminário de pregadores (Predigerseminar) de Finkenwalde. Este oferece sugestões práticas que se aplicam ao uso dos Salmos em nossa oração e meditação diária:

Nós recomendamos a meditação bíblica para moldar nossas orações e, ao mesmo tempo, para disciplinar nossos pensamentos. Finalmente, nós preferimos a meditação bíblica porque nos faz conscientes de nosso companheirismo com outros [irmãos] que estão meditando no mesmo texto. A Palavra da Escritura nunca deve parar de soar em nossos ouvidos, e [deve continuamente] trabalhar em nós ao longo do dia, como as palavras de alguém que você ama. E assim como você não analisa as palavras de alguém que você ama, mas aceita o que ele lhe diz, aceite a Palavra da Escritura e medita nela em seu coração, como Maria o fez. Isto é tudo. Isto é meditação. Não olhe para novas reflexões e conexões no texto, como se você estivesse preparando uma pregação. Não questione ‘como passar isto para alguém?’, mas ‘o que ele tem a dizer para mim?’ Pondere na Palavra longamente em seu coração e deixe que ela te dirija e te possua. Não é importante consumir o texto integral proposto para cada dia. Nós ficaremos, frequentemente, esperando um dia inteiro para ouvir o que ele tem a dizer. Deixe passagens incompreensíveis sossegadamente de lado, e não se apresse a ir à filologia. (…)

Se os seus pensamentos o distraírem ore pelas pessoas e situações que lhe preocupam. Este é o lugar certo para intercessão. Neste caso, não ore em termos gerais, mas ore de forma objetiva por aquilo que lhe preocupa. Deixe a Palavra da Escritura o conduzir. Pode ser de ajuda você escrever calmamente o nome das pessoas com quem conversamos e pensamos todos os dias. A intercessão precisa de tempo se for levada a sério. Mas cuidado ao fixar um tempo designado para intercessão, para que esta não se torne uma fuga daquilo que é mais importante, a busca pela salvação de sua própria alma.

Iniciamos a meditação com uma oração pelo Espírito Santo. Que ele clareie o nosso coração e prepare a nossa mente para a meditação e de todos aqueles que estarão meditando também. Então, nos voltamos ao texto. Ao término da meditação nós estaremos em posição de proferir uma oração de ação de graças com um coração satisfeito. (…)

O tempo para a meditação é de manhã, antes de começar as tarefas. Meia hora é o mínimo de tempo necessário para a meditação. Observe que o pré-requisito é quietude extrema e o objetivo é não ser distraído por nada, por mais importante que seja.

Uma atividade da comunidade cristã, infelizmente praticada muito raramente, mas bastante útil, é quando ocasionalmente duas ou mais pessoas se dispõe a meditar juntas. Mas que não tomem parte em discussões teológicas especulativas.26

Bethge anexou esse texto a uma carta circular enviada de Finkenwalde para os pastores da Igreja Confessante (Bekennende Kirche), em 22 de maio de 1936. O ensaio foi rapidamente compartilhado entre os colegas pastores presos pelo governo nazista. Bethge contou depois em como a exigência de Bonhoeffer de que os alunos do seminário de pregadores de Zingst deveriam dedicar meia hora a cada manhã para meditação silenciosa de um texto bíblico lhes causou grandes dificuldades. Eles não sabiam como usar este tempo. Alguns iam dormir, outros preparavam sermões, outros nem sabiam o que fazer ou reclamavam que o tempo dedicado à meditação era excessivamente longo. Estas instruções tencionavam tornar claro aos seminaristas a importância da meditação e a maneira pela qual esta deveria ser feita.27

Sandro Baggio, pastor-mentor do Projeto 242, preparou um roteiro para ajudar sua comunidade a praticar a leitura orante (lectio divina).28 Sugerimos que esse roteiro deve ser usado durante a meditação nos Salmos, na medida em que estas orações inspiradas pelo Espírito Santo são incorporadas às orações do povo de Deus:

Lectio divina é um método de leitura-orante da Bíblia. É ler a Bíblia não tanto para acumular conhecimento, mas como uma forma de diálogo com Deus. Basicamente, a lectio divina consiste em statio (preparação), lectio (leitura), meditatio (meditação), oratio (oração), contemplatio (contemplação), discretio (discernimento), comunicatio (comunicação) e actio (ação). É preciso prática para penetrar na riqueza que a lectio divina pode trazer para sua vida espiritual. ‘Medita estas coisas e nelas sê diligente’ [1Tm 4.15].

A prática da lectio divina requer que você separe um tempo para estar a sós, num local tranquilo, sem distrações. Selecione o texto que deseja ler (de preferência, não muito longo).

Os elementos centrais da lectio divina são:

Ler: Atentamente, com prazer e com fome, saboreando as palavras como alimento espiritual. Leia o texto várias vezes, dando especial atenção aos versos ou palavras que lhe chamam atenção. Escute o que o texto fala com você.

Pensar: O que esse texto significa para você? Que versos ou palavras falam mais à sua situação hoje? Como você tem vivido em relação a ele?

Orar: Orar é responder ao chamado no profundo de seu coração para falar com Deus. Além de suas palavras, essa resposta pode ser também escrita em um diário espiritual, com gestos (ajoelhar-se) e cânticos.

Viver: Você pode ler, pensar e orar o dia todo, mas a menos que você pratique a Palavra de Deus, não terá valido nada. É preciso colocar em prática o que Deus falou com você durante esse tempo de leitura e reflexão. Sua vida será o maior testemunho que você poderá dar.

Nos dois textos citados acima é sugerida a meditação a sós. Mas queremos enfaticamente recomendar que o tempo de oração ao Deus Trino seja feita em comunidade – quando dois ou mais irmãos se reúnem para juntos buscar a Cristo em oração por meio da leitura dos Salmos. Pois não é natural que o cristão esteja só – a igreja, o ajuntamento dos fieis, é o corpo de Cristo, o templo de Deus, o santuário e habitação do Espírito Santo (1Co 3.16-17; 6.19; 10.16; 12.27; Ef 4.12) – e é em comunidade que o cristão irá não só aprender a orar, mas permanecerá em oração: “Regozijai-vos sempre. Orai sem cessar” (1Ts 5.16-17). 29

Prossigamos com Bonhoffer: “Se em nossas igrejas já não oramos os Salmos, então devemos incluí-los com mais afinco em nossas meditações matutinas e vespertinas. Devemos ler vários Salmos diariamente e, de preferência, em conjunto, a fim de lermos este livro diversas vezes ao ano, penetrando nele com mais profundidade. Não deveríamos selecionar arbitrariamente alguns Salmos. Ao fazer isto, estamos desonrando o livro de orações da Bíblia, julgando saber melhor do que o próprio Deus o que devemos orar. Na igreja antiga não era incomum saber ‘o Davi todo’ de cor. Nas igrejas orientais isto era condição para o exercício eclesiástico. Jerônimo, um dos pais da igreja, conta que na sua época ouvia-se o cântico de Salmos nas lavouras e nos quintais. O Saltério marcava a vida da jovem cristandade. Mais importante do que isto, no entanto, é que Jesus Cristo morreu na cruz com a palavra dos Salmos em seus lábios. Ao esquecer-se do Saltério, a cristandade perde um tesouro inigualável. Ao recuperá-lo, será presenteada com forças jamais imaginadas”.30 Portanto, voltemos à beleza, riqueza, profundidade e amplitude dos Salmos como nosso guia da oração.

Conclusão

Durante sua longa trajetória, a igreja usou os Salmos para guiar a oração e a devoção. Então, por que tantas pessoas não se dedicam à oração? Porque, como nota Peterson, o poço é fundo e não temos nada para pegar a água. “Precisamos de um vaso para colocar a água. (…) Os salmos são esse vaso. Não são a oração em si, mas o vaso mais adequado (…) para a oração que já foi criado. Recusar-se a usar esse vaso de Salmos, depois de compreender sua função, é errar de propósito. Não é possível fazer um vaso de outro formato que o substitua”. Certamente já houve várias tentativas para substituir os Salmos como nosso guia da oração. Mas por que nos contentarmos com tão pouco, quando temos esse vaso maravilhoso à nossa disposição? Deste modo, que usemos os Salmos como o livro de orações da aliança. As palavras de Martinho Lutero são apropriadas como conclusão: “O nosso amado Senhor, que nos ensinou a orar o Saltério e o Pai Nosso e presenteou-nos com eles, conceda-nos, também, o Espírito da oração e da graça, para que oremos sem cessar, com disposição e seriedade de fé. Nós precisamos disso. Ele o ordenou e, portanto, o requer de nós. A ele sejam dados louvor, honra e gratidão. Amém”.


24Dietrich Bonhoeffer, Orando com os Salmos, p. 23.
25“Salmos litúrgicos”, em Livro de Oração Comum: forma abreviada e atualizada com Salmos litúrgicos(Porto Alegre: Igreja Episcopal do Brasil, 1999), p. 215-406.
26“Instructions in Daily Meditation”, em Dietrich Bonhoeffer, Meditating on the Word (Lanham, MD: Rowman & Littlefield, 2000), p. 21-32.
27cf. Eberhard Bethge, Dietrich Bonhoeffer: a biography (Minneapolis: Augsburg Fortress, 2000), p. 462-465.
28cf. Eugene Peterson, Maravilhosa Bíblia (São Paulo: Mundo Cristão, 2008), p. 17-27, 97-133.
29Para um desenvolvimento da importância da comunidade cristã, cf. especialmente Dietrich Bonhoeffer,Vida em comunhão (São Leopoldo: Sinodal, 1997).
30Dietrich Bonhoeffer, Orando com os Salmos, p. 23-24.


Por Franklin Ferreira. Copyright ©. Todos os direitos reservados à Edições Vida Nova.

Extraído de: www.teologiabrasileira.com.br