O Evangelho axiológico na era da sociedade anaxiológica #1 – Jonas Madureira – Fiel Jovens 2016

A vida é uma decisão. Tudo o que fazemos é acompanhado por decisões. Agostinho dizia que Deus prendeu o homem às suas escolhas, de tal forma que a não escolha é uma escolha. Porém, como decidimos? Nossas decisões são realizadas com base em critérios, valores. Há inclusive uma ciência que se dedica ao estudos dos valores: axiologia (do grego axios – ἀξίως). A questão então é: com o que decidimos se nossas decisões são honráveis ou mesquinhas? Melhores ou piores? Como medimos a grandeza ou pequeneza de uma ação? A virtude ou o vício?

O problema do valor

Em 1559, Camões e Dinamene navegavam pelo rio Mecon, na Indochina, quando sofreram um naufrágio. Dizem as más línguas que Camões teria conseguido salvar a si mesmo e aos manuscritos de Os Lusíadas enquanto Dinamene morria afogada. Suponha-se que isto tenha realmente acontecido. Quais seriam as razões de Camões justificar tal escolha? O que o fez pensar que aqueles manuscritos expressavam um grau de valor acima da vida de sua mulher? É possível encontrar algum fundamento que possa assegurar ao poeta de que ele agiu bem ao escolher salvar os manuscritos ao invés de resgatar Dinamene? Ora, a vida não apenas exige decisão; a vida é decisão. Não decidir é uma decisão. Mas agora surge a pergunta importante: existe algo que possa nos guiar nas decisões que têm que ser tomadas todos os dias, horas, minutos e segundos de nossa vida? Existe algum critério ou padrão com o qual se possa medir o valor dessas decisões, sua boa ou má qualidade?

Se quisermos saber o tamanho de um muro, existe um modo (um άξιος), que pode nos ajudar. Enfim, basta pegarmos uma trena e medir e saberemos o tamanho exato. O padrão (άξιος) que estamos usando é a trena. Por ser um padrão universal, podemos medir todas as coisas com precisão. Mas e as decisões que temos de tomar a cada minuto de nossa vida? Existe algum padrão pelo qual possam ser medidas com precisão?

Axiologia ou a “ciência dos valores”

A axiologia é a ciência que se propõe a refletir sobre o fundamento dos valores. O objeto de análise da axiologia já foi arrazoado por muitos filósofos no passado. Filósofos como Sócrates, Platão, Aristóteles, bem como filósofos medievais, como Tomás de Aquino, por exemplo, ao tratarem da tríade clássica dos valores (verdadeiro-belo-bom), inevitavelmente terminavam por considerar a questão sobre o “valor” das ações humanas. Ou seja, as ações humanas deveriam refletir a compreensão que o homem tem do verdadeiro, do belo e do bom. Ora, o mesmo parece ocorrer com filósofos modernos, como Descartes, Hume, Leibniz, Wolff e Kant, entre outros.

Ao que parece, o tratamento específico desse tema tornou-se mais corrente em meados do século XIX a partir da obra de Rudolf Hermann Lotze. Porém, Friedrich Nietzsche é quem vai marcar a história da axiologia, ao concentrar toda a sua reflexão ética especificamente na noção de valor. Sua tese era de que todos os valores deveriam ser descontruídos, desvalorizados. Nietzsche foi conhecido como o filósofo da “transvaloração de todos os valores” [Umwertung aller Werte]. Ele se via como uma espécie de João Batista, alguém responsável em preparar o caminho do “homem do futuro”, o Übermensch; aquele que, quando vier, dará uma tratamento definitivo ao problema do valor e da determinação da hierarquia dos valores. Em suas palavras: “Todas as ciências devem doravante preparar o caminho para a tarefa futura do ser humano, sendo esta tarefa assim compreendida: o homem do futuro deve resolver o problema do valor, deve determinar a hierarquia dos valores.”

Afinal, por que Nietzsche considera o problema do valor como o desafio mais importante do homem do futuro? Eis a resposta de Nietzsche: porque Deus está morto.

Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? — E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? Disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? — gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós os matamos — vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? — também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós os matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais — quem nos limpará esse sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? (…) O que são ainda essas igrejas, se não mausoléus e túmulos de Deus? (Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência, aforismo 125)

Em um dos pedaços do Muro de Berlin, espalhados pela cidade, há uma pichação assim:

“Deus está morto!” – Nietzsche

Alguém pichou embaixo:

“Nietzsche está morto!” – Deus

A consequência da morte de Deus é a irrupção do “niilismo” ou daquilo que chamamos de “sociedade anaxiológica” [ἀνάξιος “de modo indigno” o oposto de άξιος]. Que significa niilismo? Que os valores supremos se desvalorizaram. Falta o fim; falta a resposta ao porquê.

Ou seja, estes valores supremos, pelos quais o homem consagrava a sua vida, e que eram considerados como mandamentos de Deus, como “realidades”, como mundos “verdadeiros”, como esperança e vida futuras se desvalorizaram. Hoje, em regime de niilismo mais ou menos consciente, o universo encontra-se desvalorizado, isto é, “carente de sentido”.

1. A sociedade axiológica nos diz que a verdade é relativa, depende da cultura., cada pessoa pode escolher aqui e agora se quer ser homem ou mulher.

2. A sociedade axiológica nos diz que o belo é 90 latinhas de fezes do artista etiquetadas “Fezes do artista”, como é o caso de Piero Manzoni, que inclusive esteve exposta no MAM, em São Paulo, em 2015.

3. A sociedade axiológica nos diz que o bom é relativo, depende da cultura. O infanticídio dos Yanomami pode não ser bom aos nossos olhos, mas pode ser uma atitude boa do ponto de vista ético dos Yanomami.

O que a Bíblia nos diz sobre viver numa sociedade anaxiológica?

Fp 1.27 Vivei [πολίτης exerçam a sua cidadania], acima de tudo, por modo digno [άξιος] do evangelho de Cristo

Ef 4.1 “que andeis de modo digno da vocação a que fostes chamados”

Cl 1.10 “a fim de viverdes de modo digno do Senhor”

1Ts 2.12 “para viverdes por modo digno de Deus”

Apenas Fp 1.27 caracteriza o verbo como referente ao que é público, i.e., referente à sociedade, ou à vida em sociedade. O cristão deve viver em sociedade de tal modo (άξιος) que seu valor supremo (o evangelho) seja visível. Ou seja, os atos dos cristãos devem espelhar os valores do EVANGELHO.

A axiologia de Jesus: “porque onde está o teu tesouro aí estará também o teu coração.” Mt 6.21 — Responda essas perguntas O que é a verdade?, O que é o belo? e O que é o bom? e eu saberei onde está o seu tesouro…