Dignidade da Pessoa Humana: entre a vida e a liberdade religiosa (Parte 2/2)

Na primeira parte deste artigo elucidamos a importância do direito à vida para os cristãos, mas sem esquecer o ambiente de liberdade religiosa que desfrutamos no Brasil e a possibilidade de outras fés pensarem de forma distinta da nossa, mas, sempre, conformando-se à dignidade da pessoa humana, que é a pedra de toque de todas as liberdades e direitos naturais.

O Estado ao não intervir na esfera individual do fiel maior e plenamente capaz (maior de 18 anos e lúcido), garantindo que exerça a sua opção litúrgica, conforme convicção íntima de fé,  está cumprindo o preceito constitucional e fundamento republicano da dignidade da pessoa humana, pois, para este fiel, só existe vida com dignidade se perfeitamente conformada pelos valores de seu credo religioso. Viver sem esta conformação implicaria total ruptura de seu núcleo de valores, os quais justificam sua existência[1]. Cumpre destacar a noção de que, como seres humanos racionais, a vida não se restringe à concepção biológica, compreendendo, também, a concepção moral[2].

Para que não sobrem dúvidas: a doutrina das testemunhas de Jeová entende a abstenção de sangue como um ato de obediência a Deus, e por isso, com base em sua perspectiva doutrinária, basilar para sua confissão de fé (mesmo que incompatível com a tradição de Igreja Evangélicas, Protestantes e da Igreja Católica Apóstolica Romana), eles devem ter seu direito de exercitar a fé garantido. O que entendem os testemunhas de Jeová:

“Isso é mais uma questão religiosa do que médica. Tanto o Velho como o Novo Testamento claramente nos ordenam a nos abster de sangue. […] Além disso, para Deus, o sangue representa a vida. […] Então, nós evitamos tomar sangue por qualquer via não só em obediência a Deus, mas também por respeito a ele como Dador da vida.”[3]

Importante continuar destacando: quando o procedimento médico anda em conformidade com a liberdade fundamental de crença da Testemunha de Jeová, ele não está comprometendo o pensamento daqueles que entendem a transfusão de sangue como um procedimento médico legítimo (que é o caso das Igreja Evangélicas e Protestantes). Não há que se falar em relativismo do direito à vida, tendo em vista que tal abstinência é um componente de uma determinada crença religiosa. Ser incompatível com as premissas bíblicas é uma coisa, ter sua liberdade religiosa monopolizada é outra, deixa de ser liberdade para ser imposição religiosa.

Gozando plenamente da capacidade civil, a saber, a maioridade, o fiel que decide não receber o tratamento por motivos religiosos e consciente dos riscos, deverá ter sua vontade respeitada. Se é um ato equivocado? Segundo o cristianismo sim! Mas foge da alçada de ser exclusivamente um debate apologético, para um direito que é garantido no âmbito constitucional brasileiro.

A mesma ponderação entretanto, não é válida quando o fiel for incapaz ou ainda quando estamos diante da ameaça à vida de uma coletividade. Isso porque, ao confrontar a liberdade de crença do primeiro, não se verifica a preservação de sua dignidade ao permitir o exercício de sua convicção íntima, visto que sua autonomia de vontade não é plena.

No mesmo sentido, a deliberação do Juiz Clauber Costa Abreu, de Goiás, que permitiu a transfusão de sangue em recém-nascido, que era filho de testemunhas de Jeová, um trecho da decisão é salutar para corroborar o tema:

“Importante destacar que não se está a negar que as liberdades de consciência e de culto religioso sejam garantias fundamentais em nossa Carta Magna. Entretanto, o que se coloca em jogo, no caso, não é a garantia de um direito individual puro e simples, mas a garantia do direito de uma pessoa ainda incapaz, com natureza personalíssima e, portanto, irrenunciável.”[4]

Assim, se lhe negar este exercício não se estará negando a dignidade de pessoa humana. No caso do segundo exemplo, se permitir o exercício de convicção íntima de uma pessoa estar-se-ia negando o Direito de tantas outras que não manifestaram sua opção de preservar seu credo religioso em detrimento à vida.

É o caso da necessidade de Plano de Prevenção Contra Incêndio, conquanto alguns ou ainda muitos fiéis possuam a convicção máxima de que é fundamental para sua existência cultuar seu Deus, mesmo sem condições de segurança e assim a dignidade da pessoa humana de cada um estaria preservada, não podem os mesmos fiéis decidir pelos vizinhos lindeiros à prática litúrgica ou transeuntes que circulem nas proximidades, ou ainda curiosos ou visitantes que porventura estejam frequentando tal culto mais por curiosidade do que por fé ao credo propriamente dito. Neste caso, o direito à vida e a dignidade da pessoa humana em razão do interesse coletivo se sobrepõe ao direito individual.

A relevância moral do incapaz é extremamente maior do que aquele que pode decidir sobre si mesmo. Diferentemente dos defensores do livre abortamento, que não atribuem valor à vida que está no ventre materno, entendemos que o incapaz e o menor deverão ter suas vidas protegidas, pelo fato simples de não haver capacidade plena de escolha sobre os seus próprios atos, sendo apenas conduzidos por outros à caminhar e compreender a respeito de uma religião – a escolha de professar a fé só é devidamente consolidada com o arbítrio do sujeito, e só com a maioridade é que tal poder de escolha será o dirigente[5]. Mas isto é apenas a solução jurídica! Não podemos confundir a proteção de uma religião com o desvirtuamento das confissões de fé reformadas (que entendem pela necessidade de submissão aos cuidados médicos, em casos de necessidade do corpo) – uma coisa não implica na outra.

Por mais que a proteção a liberdade religiosa possa contrariar não apenas nossas convicções de fé, mas também o sistema legitimado pela comunidade médica, assim como nossa visão ontológica sobre o valor da vida, ela deverá ser respeitada nos casos que envolvem um fiel, consciente do resultado de sua decisão religiosa, e que sua escolha implique dano, exclusivamente, sobre si mesmo. O fiel decide por si, nunca pelos outros.

[1] Discorda: SOLER, Marcos. A Igreja e o Direito Brasileiro. São Paulo: LTr, 2010, p.114-115.
[2] […] a moralidade é a única condição que pode fazer de um ser racional um fim em si mesmo. Pois só por ela lhe é possível ser um membro legislador no reino dos fins. Portanto, a moralidade, e a humanidade enquan- to capaz de moralidade, são as únicas coisas que têm dignidade. (KANT, Imanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p.234.)
[3] Porque as Testemunhas de Jeová não aceitam transfusão de sangue? Disponível em: < https://www.jw.org/pt/testemunhas-de-jeova/perguntas-frequentes/por-que-testemunhas-jeova-nao-transfusao-sangue/ > Acesso em 01/06/2019
[4] Ação Tutelar Antecedente nº 5112276.40.2019.8.09.0051 (Comarca de Goiânia – 15ª Vara Cível e Ambiental) / Disponível em: < https://www.tjgo.jus.br/images/docs/CCS/testemunhasdejeova.pdf
[5] Aqui sem entrar em aspectos teológicos (eleição pela graça, servo-arbítrio, graça resistível, pelagianismo, etc) mas apenas e tão somente na manifestação externa da vontade.

Por: Thiago Rafael Vieira & Jean Marques Regina. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Traduzido com permissão. Original: Dignidade da Pessoa Humana: entre a vida e a liberdade religiosa (Parte 2/2).