O cristão e a corrupção – devemos apoiar a Lava Jato?

Convenhamos: assistir o cenário que o atual governo está enfrentando, assim como ver operações como a Lava Jato colocadas contra a parede nos causa um tanto de indignação. É como alguém que cumpriu com a sua obrigação perante um povo, ou que fez um ato caridade, ser questionado e colocado na berlinda por tais ações – o certo a ser tratado como errado.

Além desta percepção básica a respeito da nossa situação enquanto cidadãos que carregam a responsabilidade por termos tantos candidatos eleitos que pensam de tal maneira (pondo a moralidade e o bom senso a perder, em prol da liberdade de determinadas figuras políticas), também precisamos lembrar da perspectiva reformada a respeito do combate à corrupção, para fortalecer nossos fundamentos enquanto Igreja, sobretudo porque o modo como a Igreja se posiciona em um país, reflete diretamente nos caminhos que a República haverá de andar –  podemos tomar como base a passagem em que Jesus fala para Pedro: “[…] edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”[1], o que nos conduz a uma premissa simples: da Igreja flui a moralidade para o governo, a tal ponto que as portas do inferno (figura esta que está atrelada à corrupção e outros crimes contra a administração pública) não prevalecerão.

As bases confessionais de uma Nação[2] – a saber, como, e se, a Igreja está edificada na Nação – falam muito sobre como será sua sistemática a respeito de economia, questões sociais, critérios para eleição, e participação do povo na construção de medidas para refrear pecados como a corrupção (impossível de combater em sua totalidade, diante da nossa natureza pecaminosa, mas possível de ser minimizado, a depender do compromisso do povo e das suas motivações na hora da escolha dos governantes).

Isto porque, o trato com as riquezas (motivador primário quando o assunto é crimes contra a administração pública) é uma lição alinhada para todos dentro do alerta sobre fugir do abuso. Conforme observa Justo L. González, ao tratar sobre a perspectiva Agostiniana de economia, ele nos lembra que “Uso tem a ver com utilidade, e utilidade requer uso apropriado. Portanto, aqueles que abusam, ou não usam bem, de fato não usam. E, como a posse é para o uso, o abuso ou uso inapropriado invalida a posse.”[3] Sendo a lição de Agostinho uma demonstração de seu desacordo com a lei Romana, em que o uso da propriedade incluía o direito de abuso[4], ele fala sobre o uso das riquezas da seguinte maneira:

“O outro e a prata, portanto, pertencem àquele que sabe como usá-los, pois, conforme se costuma dizer, a pessoa é digna de ter alguma coisa quando a usa bem. Por outro lado, quem quer que seja que não a use de forma justa não a possui legitimamente, e se quem não possui legitimamente reivindicar a posse, então essa reinvindicação não será a de um proprietário justo, mas a mentira de um usurpador desavergonhado.”[5]

É o que González identifica como a percepção Agostiniana do uso das coisas. Dentre os componentes do conceito Romano de propriedade privada, ao qual encontramos “o direito de usar, o direito de desfrutar e o direito de abuso”[6], veremos que a lição de Agostinho rejeita a terceira, com base na premissa do uso apropriado das coisas, tendo em vista que tal modelo é o mais adequado para desfrutar do que Deus concedeu aos homens.

Tal linha de pensamento, deve inspirar nossa motivação eleitoral – sobretudo, quando escolhemos um governante, e quando defendemos alguém: “será que determinada figura política está comprometida com o uso apropriado do poder que tem em mãos?” – tal pergunta não deve ser feita apenas por que estamos tratando da Administração Pública e do dinheiro público que custeia tais gestores, mas porque, antes de tudo, trata-se de uma reflexão que dispensamos sobre nós. Ou que deveríamos dispensar.

Diante disso, nos deparamos com o conceito de corrupção endêmica, definida pelo Psicólogo Luiz Hanns como “algo esparramado, capilarizado por todos os confins da sociedade, […] corrupção em pequena escala, na vida privada”[7], ou seja, é uma modalidade de corrupção, constatada nos atos corriqueiros do dia a dia, seja em casa, no trabalho, entre outros. Trata-se de um ato de corrupção considerado como normal, ou até uma falha que se regularizou como acerto devido a frequência em que é praticado. Podemos reparar que é uma expressão do relativismo do nosso tempo, subvertendo as definições clássicas do que é errado.  Podemos constatar esta corrupção como fruto do pecado original, na alçada de David Platt:

Quando compreendemos esse primeiro pecado, percebemos que o relativismo moral do século não é nenhuma novidade […]. As cosmovisões ateias […] deixam-nos com uma subjetividade inútil em relação ao bem e ao mal, pois totalmente dependemos de construtos sociais. […] nós não cremos mais que certas coisas sejam inerentemente boas ou más. Em vez disso, o certo e o errado são determinados pelos desdobramentos sociais à nossa volta.[8]

Superado este primeiro estágio da corrupção, vamos ao segundo, que é a corrupção sistêmica: refere-se ao desvirtuamento dos atos referentes ao governo, praticados por todos os envolvidos na Administração Pública, tratando do dinheiro público, da moralidade, transparência e eficiência como pontos suscetíveis a gestões fraudulentas ou temerárias de instituições financeiras, funcionamento irregular, desvio de dinheiro ou outros itens que sejam de uso exclusivo do Poder Público e que estejam [ou melhor, deveriam estar] a serviço do povo.

Em suma, se a corrupção endêmica é acobertada, somos sujeitos potenciais para perpetuar a corrupção sistêmica – e no caso em questão, mais especificamente quanto ao tratamento desprendido contra operações que tem por fim o combate a corrupção – o que traz consigo consequências como as da semana passada[9]: estamos sob a gerência de algumas (ou muitas) pessoas no Congresso Nacional que são contrárias a qualquer tentativa de combate a crimes investigados no âmbito da Operação Lava Jato, sobretudo aqueles crimes que são contra a administração pública e de lavagem de dinheiro, feitos muitas vezes com auxilio de doleiros e de outros operadores financeiros. É verdade que muitos deputados estão lutando contra a corrupção com todo empenho e dedicação, mas, o que nos causa estranheza e outros sentimentos ainda piores e a união de muitos deputados contra o combate à corrupção pelos motivos mais insignificantes. Um “parêntese” necessário: nosso propósito com o presente artigo não é “fazer política”, muito menos política partidária, todavia bons exemplos devem ser louvados. Nesta toada, cito Marcel van Hattem, que tem realizado sua vocação de forma exemplar, ensinando aos seus pares, como lutar o bom combate (especialmente contra a corrupção), vale muito a pena acompanhar seu trabalho a serviço da nação[10].

Retornando ao texto: o que leva figuras políticas se posicionarem [e lutarem] contra uma operação que protagoniza o combate aos crimes de colarinho branco? E por que temos cidadãos que defendem esses mesmos gestores? Crimes cometidos por pessoas de alta posição social e que, em muitos casos, possuem cargos políticos, estão relacionados a um severo esquecimento do que consta no Salmo 5, versículo 4, que trata de um Deus que não tem prazer na injustiça. Esquecem, também, da lição de Provérbios 22:8, que trata das consequências de quem semeia a injustiça.

Por tais razões, é que Wayne Grudem sugere uma influência Cristã expressiva sobre o governo: porque é na cosmovisão cristã que encontramos a solução para tantas intempéries em nosso tempo – cabendo a nós entender, praticar e orientar nossos irmãos sobre o que caracteriza, de fato, o povo que se diz portador da cosmovisão cristã, caracterizado por ser “firme no que se refere à veracidade e à excelência moral dos ensinamentos da palavra de Deus”[11]. Se não temos o chamado para estar na vida pública, somos coparticipantes no ato de escolha, valendo lembrar que:

“os padrões morais de Deus revelados na Bíblia são os padrões com base nos quais as pessoas terão de prestar contas a Deus. Não se referem apenas ao modo como as pessoas se conduzem no casamento e na família, na vizinhança e na escola, no trabalho e nos negócios. Dizem respeito também ao modo como se conduzem em cargos de governo. As pessoas fiéis a Deus têm a responsabilidade de dar testemunho dos padrões morais da Bíblia com base nos quais todos terão de prestar contas, inclusive quem ocupa cargos públicos.”[12]

Como tratamos a corrupção é um convite a autorreflexão sobre quais compromissos tem conduzido nossas bandeiras. Uma idolatria tão cega ao ponto de nos fazer flexibilizar a punição dos governantes que andam errado? Uma paixão política que te faz abrir mão da defesa da probidade administrativa? Buscar inspiração nos exemplos bíblicos é um bom começo para retornamos ao caminho correto no que tange ao nosso papel em prol da boa governança, permeada pela transparência:

“Sem dúvida, “todos os males que [Herodes] fizera incluíam muitos atos perversos como governante no Império Romano. João Batista o repreendeu por todos eles. Falou com ousadia a funcionários públicos do império sobre como suas políticas governamentais eram moralmente certas ou erradas. […] De acordo com o Novo Testamento, as atitudes de João Batista foram atitudes de “um homem justo e santo” (Mc 6.20). Ele é um excelente exemplo de uma pessoa fiel a Deus que exerceu influência expressiva sobre as políticas de um governo […]”[13]

Desta forma, é possível ter um padrão para seguir que 1) represente a nossa regeneração em Cristo; e 2) contribua para melhorar a situação da corrupção no Brasil – apoiar figuras que estejam comprometidas com a legalidade, isonomia, moralidade, publicidade e eficiência (conhecido como LIMPE, na teoria da Administração Pública) é apenas uma consequência do processo de redenção que Cristo produz em nós. Não é a toa que o Cristianismo é uma bússola moral que abençoa os ímpios e os salvos: um bom governo, fruto de um povo consciente do seu dever, beneficia todos que estão embaixo do sol.

Então, devemos apoiar a operação Lava Jato? Você sabe qual é a resposta.

[1] Mateus 16:18.
[2] A Nação pode ser teísta cristã, enquanto o Estado pode ser Laico colaborativo. O primeiro corresponde ao povo, seus valores e cultura, o segundo a estrutura de poder e a organização destes poderes.
[3] GONZÁLEZ, Justo L. Economia e fé no início da era cristã. São Paulo: Hagnos, 2015. p. 326
[4] Ibidem.
[5] DE HIPONA, Agostinho. Sermones 50.4 em PL, volume 38. p. 328
[6] GONZÁLEZ, Justo L. Economia e fé no início da era cristã. São Paulo: Hagnos, 2015. p. 327
[7] DO SABER, Casa; É possível derrotar a corrupção? ; Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vAZZ93JPUnw&t=87s
[8] PLATT, David. Contracultura: um chamado para confrontar um mundo de pobreza, casamento com pessoas do mesmo sexo, racismo, escravidão sexual, imigração, perseguição, aborto, órfãos e pornografia. São Paulo: Vida Nova, 2016. p. 26.
[9] Caso Intercept – Oitivas do Ministro da Justiça Sérgio Moro na Comissão de Constituição e Justiça no Senado Federal e nas Comissões de Constituição e Justiça, de Trabalho, Administração e Serviço Público; de Direitos Humanos e Minorias na Câmara dos Deputados, em 02 de julho de 2019.
[10] https://www.youtube.com/user/marcel11022
[11] GRUDEM, Wayne. Política segundo a Bíblia: princípios que todo cristão deve conhecer. São Paulo: Vida Nova, 2014. p. 77.
[12] Ibidem, p. 83.
[13] Ibidem, p. 84

Por: Thiago Rafael Vieira & Jean Marques Regina. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Traduzido com permissão. Original: O cristão e a corrupção – devemos apoiar a Lava Jato?