Contabilidade das igrejas: uma questão de ordem e decência

Este artigo contém partes do livro: Direito Religioso: Questões Práticas e Teóricas, de Thiago Rafael Vieira e Jean Marques Regina. Publicado com permissão.

Ah, a movimentação financeira das igrejas…parece que o tema só tem alguma serventia quando estamos tratando de acusar determinado local por atos de corrupção e desvirtuamento do dinheiro. Na verdade, o Brasil está repleto de igrejas protestantes extremamente comprometidas com a sua confissão de fé, mais especificamente, em glorificar a Deus e gozá-lo para sempre, em promover a comunhão dos santos, e em ajudar o órfão, o pobre e a viúva. Aqui não temos números acurados, mas apura-se que, nos Estados Unidos, somente a movimentação financeira de igrejas e organizações para-eclesiásticas supere os 1 trilhão de dólares anuais! Por tais motivos, devemos assimilar que a mesma Igreja preocupada em cumprir as ordenanças bíblicas, também deve estar preocupada em bem administrar suas finanças: a esse instituto, damos o nome de contabilidade.

Não é porque a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 determina a imunidade tributária às igrejas e templos de qualquer culto, que a Igreja ver-se-á como livre de manter seu dinheiro bem coordenado –  não apenas por uma questão de coerência, mas também porque o nosso ordenamento jurídico traz algumas previsões que devem ser cumpridas em determinadas situações, o que no Direito Tributário entende-se por obrigação acessória. A Igreja é imune da obrigação principal, que é pagar o imposto, mas precisa cumprir o múnus periférico, que é o caso da contabilização.

No caso das organizações religiosas, é importante lembrar de dois segmentos no quesito de contabilidade: a escrituração contábil fiscal (ECF) e a escrituração contábil digital (ECD). Cada um desses ramos, possuem uma função específica dentro da organização financeira da Igreja. A Receita Federal trouxe algumas determinações inéditas a respeito desses temas, e consideramos importante que sejam elencadas aqui.  Primeiro, a escrituração contábil fiscal: conforme ensinamos no livro Direito Religioso – Questões Práticas e Teóricas:

A escrituração contábil fiscal substituiu a Declaração de Informações Econômico-Fiscais da Pessoa Jurídica (DIPJ) a partir do ano-calendário 2014, com entrega prevista para o último dia útil do mês de julho do ano posterior ao do período da escrituração no ambiente do Sistema Público de Escrituração Digital (Sped),  sendo uma obrigação acessória imposta às pessoas jurídicas estabelecidas no Brasil.[1]

Ou seja, trata-se de instrumento para demonstrar à receita todas as informações de origem contábil e fiscal da organização religiosa. Seu preenchimento é obrigatório, mesmo que estejamos falando da Igreja que é imune. Sua obrigatoriedade é regida pela Instrução Normativa RFB nº 1595/ 2015. Por se tratar de uma incumbência que não só propicia organização, como também viabiliza a identificação das atividades financeiras realizadas pela Igreja, entendemos que essa exigência não possui nenhuma imprecisão no sentido legal e constitucional.

Não vemos nenhuma ilegalidade neste dispositivo. Na verdade, as organizações religiosas devem se organizar perante o Estado e a sociedade, tendo em vista a duplicidade de sua natureza, a primeira, espiritual (organismo), e a segunda, temporal (organização). A Igreja deve ser passível de identificação até para que possa, com o Estado, cooperar em busca do bem comum do ser humano.[2]

O segundo segmento, é a Escrituração Contábil Digital, que não se confunde com a ECF ao qual acabamos de falar acima. A ECD, é o conjunto unido via arquivo, do qual estão dispostos o Livro Diário, Livro Razão, os Livros Contábeis assinados digitalmente, os balancetes diários, as fichas de lançamento e os balanços atinentes ás atividades realizadas por determinada pessoa jurídica.

Diferente da ECF, que é obrigatória, a ECD deixou de ser obrigatória para pessoas jurídicas imunes cuja receita anual seja inferior a R$ 4.800.000,00 (quatro milhões e oitocentos mil reais). Acreditamos que pela complexidade dessa obrigação acessória, a Receita Federal entendeu pela sua dispensa nesse caso específico (atentando para o valor da receita anual!), consoante o que está disposto na recente Instrução Normativa RFB nº 1984 de 2019.

Tais questões também são importantes quando a organização religiosa compra, vende ou contrata – as escriturações timbram a representação moral e civil necessárias para que tais atos sejam realizados de forma regular. Conforme citamos, tais modalidades de escrituração contábil vem a fim de promover a identificação da Igreja perante o poder público. Apesar de a Igreja cuidar das coisas transcendentais, sendo elas o objeto central de sua existência, enquanto visível na terra, é importante que ela coopere para a manutenção da ordem. Não como uma expressão de submissão, mas como um ato de colaboração para que o Estado e a sociedade estejam seguros de sua postura perante Deus e perante os homens.


[1] VIEIRA, Thiago Rafael. REGINA, Jean Marques. Direito religioso: questões práticas e teóricas. 2. ed. rev. ampl. – Porto Alegre: Concórdia, 2019.

[2] VIEIRA, Thiago Rafael. REGINA, Jean Marques. Direito religioso: questões práticas e teóricas. 2. ed. rev. ampl. – Porto Alegre: Concórdia, 2019.

Por: TR Vieira & Jean Regina. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Original: Contabilidade das igrejas: uma questão de ordem e decência.