O pensamento grego e a igreja cristã (Parte 6)

A Admiração

Os gregos diziam que a admiração conduz o homem à filosofia. Platão (427-347 a.C.) e seu discípulo Aristóteles (384-322 a.C.), estão acordes neste ponto:

A admiração é a verdadeira característica do filósofo. Não tem outra origem a filosofia.[1]

Foi, com efeito, pela admiração que os homens, assim hoje como no começo, foram levados a filosofar, sendo primeiramente abalados pelas dificuldades mais óbvias, e progredindo em seguida pouco a pouco até resolverem problemas maiores: por exemplo, as mudanças da Lua, a do Sol e dos astros e a gênese do universo.[2]

A admiração (assombro, pasmo) do universo e o admirar-se fazem parte da gênese da filosofia. Extasiado com a capacidade do homem, escreve Sófocles (c. 495-406 a.C.): “Muitos milagres há, mas o mais portentoso é o homem”.[3]

Esta admiração nos domina, envolve, absorve, tornando-se senhora de nossos pensamentos e intenções, deixando as suas marcas em nosso ser, não havendo mais o momento do velho conhecido, no sentido de compreensão que não desperta admiração pela sua não novidade. Antes, pelo contrário, somos conduzidos do saber à ignorância e desta àquela num sem-fim de admiração-compreensão-ignorância.

O universo conhecido abre novas portas que revelam a nossa “mais nova ignorância”. A ignorância conscientizada pode ser um forte estímulo à investigação e pesquisa que juntamente com o conhecer trará novas ignorâncias. O maravilhoso é o processo dinâmico do saber-ignorância-saber que percorre a senda da docta ignorantia como disposição que se renova e se aperfeiçoa. Toda ignorância envolve saber. O saber, por sua vez, abre perspectivas que se descortinam em novas ignorâncias que, levadas a sério, nos conduzem a um saber cada vez mais apurado.

“A natureza do homem não é ir sempre em frente; comporta idas e vindas”, pontua Pascal (1623-1662).[4] Por isso, o saber é sempre um ideal, uma busca perseverante que, em muitos casos, engloba o ato de desmontagem do “conhecido”, a fim de que possamos erguer novos edifícios ou, simplesmente, reconstruí-los, tendo como fundamento, uma nova certeza ou, a confirmação da antiga.

A admiração é o a)rxh/ (princípio) e pa/qoj (paixão) da filosofia. A admiração nos conduz de forma apaixonada rumo ao desconhecido pois ela, a admiração, “é a primeira de todas as paixões”.[5] Acrescentaria, e a última. Normalmente o homem ao morrer, continua admirado diante do desconhecido que o cerca; a admiração nos acompanha pela vida, até o último momento.[6]

O teólogo Karl Barth (1886-1968) falando sobre teologia, faz um comentário que nos parece pertinente também em nossa abordagem:

Seria inconcebível imaginar que algum dia o homem possa deixar de aprender – que o desacostumado venha a ser-lhe rotina – que o novo se lhe torne antigo – que consiga domesticar a estranheza (…). Jamais o homem é “demitido” da admiração.[7]

A filosofia se alimenta da admiração. A sua morte está no recebimento passivo, acrítico de um pensamento, sem uma verificação a respeito de seus pressupostos. Filosofar é se admirar com o desconhecido.

Se afirmo que a admiração nos envolve de forma apaixonante, por outro lado, é preciso que deixemos claro que a admiração não age sozinha; há um outro sentimento que também nos acompanha e, mesmo que não queiramos aceitá-lo, ele está aí, à nossa volta, cá dentro pulsando no peito ou martelando no cérebro: a angústia diante da morte.

A Angústia

Na filosofia encontramos também a experiência da fraqueza, da debilidade, das questões sempre recorrentes em momentos diferentes e com conotações próprias: por que o ser e não o nada? Por que existo? Quem sou eu? Qual o sentido da vida? Posso fazer diferença?[8]

Quando o homem se confronta com a situação de impotência, constata que o seu ser está para o não-ser de forma dramática pois, ele se depara como que diante de um espelho que revela a imagem da sua finitude, pobreza e limitação. Este quadro nos conduz à angústia e ao sentimento de perdição. A vida por trás destas lentes mostra-se como incerta e insegura.

Agostinho (354-430), comentando Gênesis, descreve a angustiante entrada da morte na vida humana:

Esta morte teve lugar no dia em que se fez o que Deus proibiu. Com efeito, perderam aquele estado admirável pelo qual não poderiam nem ser atados pela doença, nem ser mudados pela idade (…). Tendo perdido esse estado, o corpo deles contraiu a propriedade doentia e mortífera (…) para que os que nascem sucedam aos que morrem.[9]

Esta preocupação não é “privilégio” do homem do século XXI; Heráclito (c. 544-c. 484 a.C.) já falava da transitoriedade do ser.[10] Parmênides, seu contemporâneo, trata da aparência do ser.[11] Este assunto também não escapou aos escritos de Platão (427-347 a.C.)[12] e de Aristóteles (384-322 a.C.). Os medievais, por outro lado, acentuaram a contingência do ser, e assim por diante.

Apesar de esta temática ser antiga, este sentimento caracteriza de forma marcante o homem do século XXI, possivelmente, pela dificuldade de aceitá-la, pelo problema de relacionamento, de boa vizinhança.

Aqui, os existencialistas, no século XX, de modo especial, encontraram um lauto banquete para os seus escritos: “Descobrir a morte é descobrir a fome de imortalidade”, diz Miguel de Unamuno (1864-1936);[13] Paul Tillich (1886-1965), por sua vez, declara: “A ansiedade ante o destino e a morte controla as vidas mesmo daqueles que perderam a vontade de viver”.[14]

Martin Heidegger (1889-1976) assinala que o homem é o eterno inacabado, estando constantemente à procura de algo que o complete; por isso, ele está sempre de passagem, sempre a caminhar, nunca para, pois ele está a todo tempo precisando de um acabamento; é um projeto, ser incompleto que busca o seu aperfeiçoamento.

A morte que tanto angustia o homem é, ao mesmo tempo, individualizante, pois dá consciência da autenticidade da vida de cada um; ela é minha, individual, intransferível. A morte é coisa personalizada; é aquilo que o homem tem de mais autêntico; afinal, o homem nada mais é do que um-ser-para-a-morte.

O homem vive no mundo da possibilidade, contudo, debaixo de toda possibilidade humana, agradável ou desagradável, se esconde temporariamente (nunca sabemos por quanto tempo) a alternativa imanente do insucesso, do fracasso e da morte, enfim, há a sombria presença da possibilidade de o “impossível” tornar-se possível e vice-versa. Isso gera angústia.

Este sentimento controla o homem como que por controle-remoto e, por mais que não o queiramos, por mais mal-educados que sejamos, ele está sempre à porta, quer batendo, quer entrando discretamente, sem-cerimônia, com bastante intimidade, nos dizendo com a sua presença, que não adianta expulsá-lo; é inútil; afinal, todos nós estamos fadados a ele.

“O que distingue os humanos de todas as outras criaturas é a autoconsciência. Sabemos que estamos vivos e que morreremos, e não conseguimos deixar de questionar por que a vida é assim e qual é o seu significado”, afirmam Colson (1931-2012) e Fickett.[15]

A angústia gera o pensar, o analisar, o “conhece-te a ti mesmo” socrático. O homem com suas incógnitas diante do destino e da morte, é conduzido de forma enfeitiçante pela análise do eu e, num ato subsequente, na correlação eu-mundo-tu-a- partir-de-mim. Deste modo, podemos dizer que na filosofia, num primeiro momento, o “homem é a medida de todas as coisas”, visto que é a partir de minha corporeidade que crio as referências;[16] a minha estrutura de orientação, direção e significação.[17] Por isso as nossas considerações sobre o que tipificamos como grande, pequeno, confortável, distante, próximo, alto, baixo, incômodo etc. Quem mora longe: eu que moro na zona sul ou você que mora na zona leste? O meu corpo determina a distância do outro. Em geral é muito curiosa e surpreendente a visão que passamos a ter da casa de nossos avós quando voltamos nela após muitos anos, já na vida adulta. A impressão que tínhamos na infância sempre era de que ela era maior do que como a percebemos agora.

Todavia, a verdadeira filosofia não se esgota neste primeiro momento; ela reconhece além de si, a sua existência, daí a dimensão do Outro, como fundamento e que confere sentido ao ser.

2. O Espírito filosófico e sua materialização

Jesus Cristo é Senhor do seu chamado filosófico? (…) Os filósofos cristãos deveriam dar o melhor para imitar Cristo, não Sócrates, Platão, Aristóteles, ou quem quer que seja, em sua vocação filosófica. – David K. Naugle.[18]

O conhecimento filosófico é caracterizado pelo esforço da razão em problematizar as questões da vida humana que busca por meio do raciocínio, discernir entre o certo e o errado e estabelece uma concepção geral do mundo.

Filosofar é um ato concreto, inserido na história, marcado, com muita frequência, pelas circunstâncias que nos possuem e, que por vezes, assumem  a condição de onipresença e pretensamente, eviternidade.

O espírito filosófico se caracteriza pela busca da verdade. Deste modo, podemos dizer que o filosofar é o exercício criativo daquele espírito que foi tocado por indagações tais como: “Por que existo?”, “Por que há algo em vez de nada?”, “Que devo fazer?”. O filosofar está presente de forma evidente nas encruzilhadas das opções, ou diante da sensação de vazio deixada pelas oportunidades que nos escaparam, ou,  de fato, nunca existiram. Seja como for, a filosofia está sempre a caminho, em busca de respostas.

Por isso, a filosofia é um ato humano, limitado, apesar de audacioso. O filósofo trabalha com a integração do Eu-Mundo-Outro, buscando uma compreensão do ente em si e de suas correlações essenciais e circunstanciais.

Filosofar é ter consciência de que estamos de forma imperativa e incondicional, em busca de respostas, tentando interpretar e explicar os fenômenos.

No verbete Filosofia da Enciclopédia Francesa, encontramos a seguinte definição:

Filosofia é dar a razão das coisas, ou pelo menos procurá-la; porque, enquanto se limita a ver e contar o que vê, não se sai da história […] aquele que se detém a descobrir a razão que faz com que as coisas sejam, e que sejam desta e não daquela maneira, é que é o filósofo propriamente dito.[19]

Filosofar é um ato de ignorância consciente. Por isso, é que a busca de respostas é o resultado da ignorância não conformada: sabedora de si, mas concomitantemente, insatisfeita consigo mesma e,  justamente, por isso, busca de forma criativa as soluções as quais, por sua vez, nos conduzem a novos problemas, que nos despertam para a procura de novas soluções.

Por isso, a dialética – o “equilíbrio dinâmico” – do saber-ignorância, observada em 1952, por Maurice Merleau-Ponty (1908-1961): “O que caracteriza o filósofo é o movimento que leva incessantemente do saber à ignorância, da ignorância ao saber, e um certo repouso neste movimento”.[20]

O filosofar é um ato concreto, real, inserido na cotidianidade. Não é um desligamento da realidade, criando um mundo ideal, uma utopia, uma vida privada, mas, sim, uma intersubjetividade que envolve um relacionamento conosco, com o mundo e com o outro, em uma tentativa humana de conhecer, interpretar e agir no mundo.

O filósofo está comprometido única e invariavelmente com a verdade. Este comprometimento existencial deve ser a própria realidade ôntica da Filosofia. Desta forma, a sua existência é o atestado ou, não, da Filosofia. O filosofar que não se coadune com a realidade essencial da Filosofia, não merece este nome. Por isso, o filósofo deve rejeitar os seus preconceitos, os acordos silenciosos e as pretensas verdades estabelecidas que, com frequência, são sustentadas com o fim de favorecer as ideologias e/ou manter o “status quo”. Um “filósofo” domesticado desconhece o sentido da Filosofia e, na realidade, elegeu um outro senhor. A verdade enquanto verdade verdadeira foi esquecida.


[1]Platão, Teeteto, 2. ed. Belém: Universidade Federal do Pará, 1988, 155d. p. 20.

[2]Aristóteles, Metafísica, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 4), 1973, I.2. p. 214.

[3] Sófocles, A Antígone, 2. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1968, 330.

[4]Blaise Pascal, Pensamentos, VI.354, p. 128.

[5]R. Descartes, As Paixões da Alma, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 15), 1973, II, Art. 53, p. 252. À frente: “A admiração é uma súbita surpresa da alma, que a leva a considerar com atenção os objetos que lhe parecem raros e extraordinários” (Art. 70, p. 255).

[6] A ciência não conhece a causa que faz com que a morte seja uma necessidade. (…) O mistério da morte permanece tão intacto quanto o da vida” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 3, p. 190).

[7]K. Barth, Introdução à Teologia Evangélica, 2. ed. São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1979, p. 51-52.

[8] Vejam-se as pertinentes percepções de McGrath (Alister E. McGrath, Surpreendido pelo sentido: ciência, fé e o sentido das coisas, São Paulo: Hagnos, 2015, p. 164-185).

[9]St. Agostinho, Comentário ao Gênesis, São Paulo: Paulus, 2005, (Coleção Patrística; 21), p. 422.

[10]Veja-se: Heráclito, Fragmentos, 12, 49a, 88: In: Gerd A. Bornheim, org. Os filósofos Pré-Socráticos, 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1977.

[11]Veja-se: Parmênides, Fragmentos, 3: In: Gerd A. Bornheim, org. Os filósofos Pré-Socráticos, 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1977.

[12]Veja-se: Platão, Apologia de Sócrates, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 2), 1972, 28b-29b. p. 20-21.

[13]Miguel de Unamuno, Do Sentimento Trágico da Vida, Porto: Editora Educação Nacional, 1953, p. 81.

[14]Paul Tillich, A Coragem de Ser, 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 9.

[15]Charles Colson; Harold Fickett, Uma boa vida, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 20.

[16] Ver: Jacques Ellul, A Palavra Humilhada, São Paulo: Paulinas, 1984, p. 9 e Battista Mondin, O Homem, quem é ele?, São Paulo: Paulinas, 1980, p. 33.

[17] Cf. Edmond Barbotin, Humanité de L’Homme: Étude de Philosophie Concrète, Paris: Editions Aubier, 1970, p. 53ss.

[18] David K. Naugle, Filosofia: um guia para estudantes, Brasília, DF.: Monergismo, 2014, p. 131,136.

[19]Filosofia: In: Enciclopédia Francesa, (A Enciclopédia: Textos Escolhidos), Lisboa: Estampa, 1974, p. 77.

[20] M. Merleau-Ponty, Elogio da Filosofia, 2. ed. Lisboa: Guimarães Editores, (1979), p. 11.