O pensamento grego e a igreja cristã (Parte 8)

O Principium no Pensamento Grego

A palavra “principium”, que é usada extensamente na ciência e na filosofia, é uma tradução latina do vocábulo grego a)rxh/ (= “princípio”, “começo”, “causa”), que desde o poeta épico Homero (c. IX séc. a.C.) passou a ser “um termo importante na filosofia grega”.[1]

A palavra portuguesa “princípio” provém do latim “principium” e, corresponde, em significado ao a)rxh/ grego, quando denota uma fonte ou causa de onde procede uma coisa.[2]

Anaximandro (610-547 a.C.), como vimos, parece ter sido o “primeiro a introduzir o termo princípio”[3] para explicar o início de todas as coisas, qualificando-o de “Ápeiron” (a)/peiron = “sem fim”, “ilimitado”, “indeterminado”, “indefinido”). O princípio (a)rxh/) de todas as coisas é o “Ápeiron” (a)/peiron = “sem fim”, “ilimitado”, “indeterminado”, “indefinido”).[4] Neste caso, o a)/peiron seria basicamente o “princípio de realidade”.[5]

Anaximandro assinala um grande progresso em relação a Tales, pois, a sua resposta quanto à origem do universo é marcada por uma compreensão de que o elemento primordial, o “a)rxh/” de todas as coisas, não pode ser um elemento material determinado como o Ar, a Água, a Terra, o Fogo, ou mesmo a mistura de dois ou mais destes elementos. Todos eles são gerados, criados. Logo, finitos. (Ver: Dox., 2). A sua filosofia, “é o primeiro ensaio ocidental de explicação do universo por derivação do infinito”, inferem Klimke (1878-1924) e Colomer (1924-1997).[6]

Foi ele, escreve Jaeger (1888-1961), “o único de cuja concepção do mundo podemos obter uma representação exata”.[7] Em outro lugar, diz Jaeger: “Em Anaximandro encontramos o primeiro quadro unificado e universal do mundo, baseado em uma dedução e explicação natural de todos os fenômenos”.[8]

Mora (1912-1991) observa que a partir dos pré-socráticos, a palavra passou a ter dois significados principais: “princípio de todas as coisas” e “aquilo do qual derivamos todas as demais coisas”.[9]

Aliás, a preocupação dominante dos filósofos deste período, é concernente às questões cosmológicas; desejavam desvendar a sabedoria dos cosmos. As suas atenções estão dirigidas preponderantemente para a origem, natureza e transformações do mundo exterior[10] onde  é considerado como tendo uma vitalidade própria.[11]

Aqui a Filosofia grega é eminentemente Filosofia da Natureza, todavia, não se limita à Natureza, visto que quando os gregos “falavam da natureza, pensavam também no espírito, e no ser em geral. Eram, pois, mais metafísicos do que físicos”, conclui Hirschberger (1900-1990).[12] De fato, eles não se limitavam à experiência sensível, antes, buscavam a “causa primeira” da realidade. Contudo, apesar da busca do “imaterial”, a verdade é que eles jamais alcançaram a concepção de “espírito”.[13]

Mesmo a Filosofia Pré-Socrática estando intensamente interessada pelo universo físico, ela não é um bloco monolítico, com uma única perspectiva e respostas semelhantes, antes era um pensamento vivo, com conclusões estupendas, que ampliava cada vez mais o leque de respostas para os fenômenos da natureza.

Cassirer (1874-1945), resume bem isto ao dizer que,

A cosmologia predominava claramente sobre todos os ramos da investigação filosófica. Não obstante, o que caracterizava a profundidade e a amplitude do espírito grego é o fato de quase todo pensador grego representar, ao mesmo tempo, um novo tipo geral de pensamento. Além da filosofia física da Escola de Mileto, os pitagóricos descobriram uma filosofia matemática enquanto os pensadores eleáticos são os primeiros a conceber o ideal de uma filosofia lógica. Heráclito encontra-se nas fronteiras entre o pensamento cosmológico e o antropológico.[14]

Mais tarde Platão (427-347 a.C.), no Fedro, usa o mesmo termo indicando a ideia de movimento: “O início é algo que não se formou, sendo evidente que tudo que se forma, forma-se de um princípio. Este princípio de nada proveio, pois se proviesse de uma outra cousa, não seria princípio”.[15]

Aristóteles (384-322 a.C.) definiu “princípio”, como sendo “o que não contém em si mesmo o que quer que siga necessariamente outra coisa, e que, pelo contrário, tem depois de si algo com que está ou estará necessariamente unido”.[16]

Conforme acentua Bavinck, na filosofia de Aristóteles em geral, a palavra, se refere “as primeiras coisas em uma série e particularmente às primeiras causas que não podem ser atribuídas a outras causas”.[17]

Eisler (1873-1926) apresenta a seguinte definição de “Princípio”:

Princípio é aquilo que dá origem, ou que forma a base do pensamento e do conhecimento (princípio real, princípio de existência), como também aquele sobre o que necessariamente se apoiam o pensamento e o conhecimento (princípio de pensamento, princípio de conhecimento, considerados como aspecto formal e aspecto material de um princípio ideal); e também um ponto de vista básico, isto é, uma norma para atuar (princípio prático).[18]

Os modos de entender a realidade fizeram com que surgissem na história, o “princípio do ser” (principia essendi ou princípio formal) e o “princípio do conhecer” (principia cognoscendi ou princípio real).[19]

Os filósofos “realistas” – admitindo a independência do ser em relação ao conhecimento – dão primazia ao “princípio do ser”, entendendo que o princípio do conhecimento vem em decorrência do conhecimento da realidade, da essência.

Os “idealistas” – reduzindo a realidade ao pensamento – priorizam o “princípio do conhecer”, afirmando que os princípios do conhecimento da realidade determinam a realidade enquanto conhecida ou cognoscível.[20]

Devido ao fato de que a existência do ser em si não depende de nosso conhecimento – o ser é o que é, independentemente da nossa consciência de sua existência –[21] e de que o nosso conhecimento só é possível se houver um objeto, o ser.[22]

Podemos, então, dizer como Fleming (1794-1866), que:

Os principia essendi podem também ser principio cognoscendi porque o fato de que as coisas existam é a base ou razão para que sejam conhecidas. Porém, o contrário não resulta certo porque a existência das coisas de nenhuma maneira depende de que tenhamos conhecimento delas.[23]

Os princípios das ciências não teológicas têm algo em comum com os princípios das ciências teológicas. No entanto, também têm pontos divergentes.[24]  Por ora, devemos ter em mente que os princípios de uma ciência são as suas proposições características que dirigem a sua pesquisa, às quais, portanto, todo o seu desenvolvimento posterior está subordinado.[25] Deste modo, em qualquer abordagem que fizermos, devemos estar conscientes de que os pressupostos são fatores fundamentais na nossa aproximação do assunto estudado.[26]


[1]D. Müller, Começo: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 1, p. 446. Vejam-se: Gerhard Delling, a)rxh/, etc.: Gerhard Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982, v. 1, p. 479-480; F.E. Peters, Termos Filosóficos Gregos: Um léxico histórico, 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1983), p. 36-38.

[2]Condillac (1714-1780) resume, dizendo: “Princípio é sinônimo de começo e é com este sentido que foi empregado desde o primeiro instante: mas, sem seguida, pela força do hábito, se serviu dela maquinalmente, sem ligar ideias, e se tiveram princípios que não são o começo de nada” (Étienne B. de Condillac, Lógica ou os Primeiros Desenvolvimentos da Arte de Pensar, São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores, v. 27), II.6. p. 121). No entanto, Bavinck, faz uma distinção que nos parece pertinente: “Causa é um tipo particular de principium. Toda causa é um principium, mas nem todo principium é uma causa” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Prolegômena, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 211).

[3]Simplício, Física, 24.13. In: Victor Civita, ed. Os Pré-Socráticos, São Paulo: Abril Cultural, 1973, (Os Pensadores, v. 1), p. 21. G.S. Kirk; J.E. Raven, Os Filósofos Pré-Socráticos, 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1982, p. 103-104 e Werner Jaeger, A Teologia de los Primeiros Filosofos Gregos, México: Fondo de Cultura Económica, 1992, 31ss., discutem se este é o sentido correto do texto de Simplício interpretando Teofrasto (Cf. Dox., 1).

[4]Dox., 1,2,6. Segundo Anaximandro, o a)/peiron é ilimitado, eterno, indissolúvel e indestrutível (Frags., 2,3; Dox., 2,3). Ele dirige todas as coisas (Dox., 2,3). É possível que Anaximandro tenha derivado o seu a)/peiron do xa/oj de Hesíodo, quem atribuía ao xa/oj o início de tudo (Hesíodo, Teogonia: A Origem dos Deuses, São Paulo: Roswitha Kempf/Editores, 1986, 116ss. p. 132). Para Hesíodo, o xa/oj era espaço indefinido entre o céu e a terra. (Veja-se: Damião Berge, O Logos Heraclítico: Introdução ao Estudo dos Fragmentos, Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1969, p. 139-140). Uma discussão mais completa sobre a visão de Heráclito, temos em G.S. Kirk; J.E. Raven, Os Filósofos Pré-Socráticos, , 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1982, p. 18ss.

O “Ápeiron” tem a possibilidade de se transformar em qualquer coisa. Abbagnano comenta:

“Embora não possa encontrar-se em Anaximandro o conceito de um espaço incorpóreo, a indeterminação do ápeiron, reduzindo-o à espacialidade, faz dele necessariamente um corpo determinado somente pela sua extensão. Ora esta extensão é infinita e como tal englobante e governante do todo. Estas determinações e sobretudo a primeira fazem do ápeiron uma realidade distinta do mundo e transcendente: aquilo que abraça está sempre fora e para além do que é abraçado, ainda que em relação com ele. O princípio que Anaximandro estabelece como substância originária merece pois o nome de ‘divino’” (Nicola Abbagnano, História da Filosofia, 4. ed. Lisboa: Editorial Presença, (1985), v. 1, § 9, p. 36. Da mesma forma, Jaeger, quando diz que: “Só um Deus pode ‘governar’ o todo” (W. Jaeger, Paideia: A Formação do Homem Grego, 2. ed., São Paulo; Brasília, DF.: Martins Fontes; Editora Universidade de Brasília, 1989, p. 138)).

[5]Cf. José Ferrater Mora, Princípio: Dicionário de Filosofia, São Paulo: Edições Loyola, 2001, v. 3, p. 2371.

[6]F. Klimke; E. Colomer, Historia de la Filosofía, 3. ed.  rev. amp., Barcelona, Editorial Labor, 1961, p. 22. Veja-se também, G.S. Kirk; J.E. Raven, Os Filósofos Pré-Socráticos, p 139; F. Nietzsche, A Filosofia na Época Trágica dos Gregos, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 32), 1974, § 4, p. 42.

[7]Werner Jaeger, Paideia: A Formação do Homem Grego, São Paulo; Brasília, DF.: Martins Fontes; Editora Universidade de Brasília, 1989, p. 136.

[8]Werner Jaeger, A Teologia de los Primeiros Filosofos Gregos, México: Fondo de Cultura Económica, 1992, p. 29. (Ver: Dox., 1,2,6).

[9]José F. Mora, Diccionario de Filosofia Abreviado, Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1970, p. 342.

[10]A própria palavra empregada, fu/sij, adquire o sentido entre os Pré-Socráticos, de “verdadeira natureza das coisas” e “origem de todas as coisas” (Veja-se: Helmut Köster, fu/sij: In: Gerhard Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, 8. ed. Grand Rapids, Michigan: WM. B. Eerdmans Publishing Co., (reprinted) 1982, v. 9, p. 252 e 256). “No conceito grego de physis estavam, inseparáveis, as duas coisas: o problema da origem – que obriga o pensamento a ultrapassar os limites do que é dado na experiência sensorial – e a compreensão, por meio da investigação empírica (historíë) (‘procurar’, ‘investigar’), do que deriva daquela origem e existe atualmente (tà ónta)(“a realidade”)” (W. Jaeger, Paideia: A Formação do Homem Grego, 2. ed. São Paulo; Brasília, DF.: Martins Fontes; Editora Universidade de Brasília, 1989, p. 135. Veja-se também, p. 132). (Do mesmo modo: Werner Jaeger, A Teologia de los Primeiros Filosofos Gregos, México: Fondo de Cultura Económica, 1992, p. 26ss.;198)

[11]Collingwood (1889-1943), diz que para os gregos, a ciência natural, “baseava-se no princípio de que o mundo da natureza está saturado ou penetrado pela mente, pelo entendimento. (…) Encaravam o mundo da natureza como um mundo de corpos em movimento. Os movimentos em si mesmos (…) eram devidos à vitalidade, ou ‘alma’; mas, achavam eles, o movimento em si mesmo é uma coisa e a ordem outra. (…) O mundo da natureza era não só vivo como inteligente; não só um vasto animal dotado de ‘alma’, ou vida própria, mas também animal racional, com ‘mente’ própria” (R.G. Collingwood, Ciência e Filosofia, 5. ed. Lisboa: Editorial Presença, (1986), p. 9-10).

[12]Johannes Hirschberger, História da Filosofia na Antiguidade, 2. ed. São Paulo: Herder, 1969, p. 29; A afirmação de Hirschberger é inspirada entre outros, em Jaeger. Vejam-se: Werner Jaeger, Paideia, p. 135; Werner Jaeger, A Teologia de los Primeiros Filosofos Gregos, p. 27)..

[13]Veja-se: Guillermo Fraile, Historia de la Filosofía I: Grécia y Roma, 3. ed. Madrid: La Editorial Catolica, S.A., 1971, (Biblioteca de Autores Cristianos), p. 139.

[14] Ernst Cassirer, Antropologia Filosófica, 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1977, p. 19.

[15] Platão, Fedro, Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint, (s.d.), 245. p. 224.

[16]Aristóteles, Poética, São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores, v. 4), VII, 1450 b 26, p. 449. Abbagnano apresenta os significados que o termo “princípio” tomou em Aristóteles. (Veja-se: N. Abbagnano, Dicionário de Filosofia, 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982, p. 760). Ver também: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Prolegômena, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 211.

[17]Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Prolegômena, v. 1, p. 211.

[18]Rudolf Eisler, Handworterbuch der Philosophie, Apud L. Berkhof, Introduccion a la Teologia Sistematica, Grand Rapids, Michigan: T.E.L.L., (1973), p. 95. (Veja-se mais detalhes na obra de R. Eisler Handworterbuch der Philosophie, verbetes: Kausalität e Prinzip. Disponível em: https://archive.org/details/eislershandwrte00fregoog/page/n187/mode/2up (p. 497-498).(Consulta feita em 28.06.2020).

[19] Para um exame mais detalhado do conceito de princípio e de suas classificações, veja-se: William Fleming, The Vocabulary of Philosophy, Mental, Moral, and Metaphysical, 2. ed. New York: Sheldon & Company, 1869, p. 399-402.

[20]Cf. Princípio: In: José Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, v. 3, p. 2371.

[21]Como dizia Agostinho “O verdadeiro é o que é em si (…) é o que é” (Agostinho, Solilóquios, São Paulo: Paulinas, 1993, II.5.8. p. 76-77).

[22] Não se conhece o “nada” porque ele não é. A afirmação positiva que podemos fazer a respeito dele, é que ele é a ausência da coisa. Caso a ausência da coisa tivesse algum conteúdo, o nada seria cognoscível. O nada só pode ser enunciado a partir da coisa por via negativa. O nada é, portanto, nadificado em sua própria “essência” de nada.

[23]William Fleming, The Vocabulary of Philosophy, Mental, Moral, and Metaphysical, 2. ed. New York: Sheldon & Company, 1869, p. 399.

[24] Tratei desse assunto em outro lugar: Hermisten M.P. Costa, Introdução à metodologia das ciências teológicas, Goiânia, GO.: Editora Cruz, 2015, p. 83-110.

[25]Veja-se: Princípio: In: A. Lalande, Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 861.

[26] Sobre pressupostos, veja-se: Hermisten M.P. Costa, Introdução à metodologia das ciências teológicas, Goiânia, GO.: Editora Cruz, 2015, p. 73-82.