O pensamento grego e a igreja cristã (Parte 10)

O Pensamento Grego e a fé Cristã

A Grécia foi o berço verdadeiro da filosofia. Pela primeira vez no mundo ocidental, compreendeu e realizou a filosofia como investigação racional, isto é, como investigação autônoma que em si mesma encontra o fundamento e a lei do seu desenvolvimento.  – Nicola Abbagnano (1901-1990).[1]

Todas as esperanças que mantemos em meio às confusões e perigos do presente se fundamentam, positiva ou negativamente, direta ou indiretamente, nas experiências do passado. Dessas experiências, a mais ampla e mais profunda, no que diz respeito aos homens ocidentais, estão indicadas pelos nomes das duas cidades de Jerusalém e de Atenas. O homem tornou-se aquilo que é, e é aquilo que é, por meio da reunião da fé bíblica e do pensamento grego. – Leo Strauss (1899-1973).[2]

Alguns antecedentes históricos

No Novo Testamento, o apóstolo Paulo registra com plena convicção: “Vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho” (Gl 4.4). A sua percepção era resultante de sua fé convicta no Deus da história e, certamente em suas observações históricas.

Passemos em revista alguns desses antecedentes que tornam ainda mais eloquente a interpretação teológica do apóstolo Paulo:

1) Contribuições dos Gregos

Os gregos, liderados por Alexandre, o Grande (356-323 a.C.) levaram a cultura grega a quase todo o mundo conhecido. Os povos conquistados, além de suas línguas maternas, passaram a falar o grego, uma língua riquíssima, constando de 200 mil palavras.[3] Este fato veio facilitar posteriormente a difusão do Evangelho, visto que os missionários poderiam ir às regiões mais longínquas certos de que a mensagem transmitida no idioma grego seria entendida.

Outro fator importante, foi a Filosofia grega, que por meio dos três maiores filósofos da Antiguidade – Sócrates (469-399 a.C.), Platão (427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.) –, a palavra tornou-se um instrumento eficiente na elaboração e transmissão de um pensamento mais apurado e preciso. Não nos esqueçamos que o Novo Testamento foi escrito em grego, usando termos com uma gama rica de significado para aquele povo. Todavia, em muitos casos, os escritores do Novo Testamento, inspirados por Deus, dão às palavras já conhecidas, sentido novo e mais profundo, que ultrapassa em muito os limites do seu emprego comum, daí a necessidade de estudar os termos não apenas na literatura clássica mas, também, dentro do seu emprego comum nas Escrituras.

2) Contribuições dos Romanos

O espírito meditativo e reflexivo dos gregos, foi substituído pelo pragmatismo executivo romano. A partir de 146 a.C., os romanos consolidaram o seu domínio sobre a Grécia e a Macedônia, tornando-as Províncias Romanas. Os romanos se impuseram pela força. Contudo, a cultura grega permaneceu em todo o grandioso Império Romano, a ponto do poeta sátiro Juvenal (60?-140 AD), criticando a decadência da sociedade Romana, escrever: “Não posso suportar, romanos, uma Roma grega”.[4]

Todavia, as contribuições romanas foram muito importantes num campo eminentemente prático:

a) Estradas: Os romanos foram pródigos na construção de boas estradas.

Tenney  (1904-1985) resume:

Os romanos construíram as suas estradas tão direitas quanto possível, fazendo cortes através dos montes e usando viadutos para transpor vales e rios. Na construção das suas estradas escavavam o solo e enchiam o leito da estrada com três camadas diferentes de material, elevando o centro para escoamento das águas e pavimentando a parte superior com pedra. As estradas tinham, por vezes, uma largura superior a cinco metros mas eram lisas e duráveis. Algumas delas ainda hoje são usadas.[5]

Além dessas boas estradas, os romanos praticamente eliminaram os ladrões das estradas e os piratas dos mares, facilitando a unificação do Império e, também, melhorando as condições de locomoção dos paladinos do Evangelho, que empunhavam o estandarte da mensagem salvífica de Deus pelas regiões mais distantes que, até então eram praticamente inatingíveis.

b) As Leis: As leis romanas são conhecidas e admiradas até os nossos dias pela sua precisão e imparcialidade. Foram estas leis, por exemplo, que facultaram liberdade a Paulo, como cidadão romano (Cf. At 16.35-40; 22.22-30) e, também, o seu “apelo à César” (At 25.11,12).[6]

c) A Paz Romana: No início do cristianismo, encontramos um dos poucos momentos da história, em que o mundo estava quase que totalmente em paz: O Império Romano era a grande potência que controlava quase todo o mundo conhecido. Este fato facultava aos missionários cristãos viajarem sem maiores problemas: Se, porventura, houvesse uma guerra na Europa, isto impediria que eles viajassem por aquelas regiões com segurança.

Resumindo: Quando o Messias veio e evangelizou o mundo, havia, pela providência de Deus, condições favoráveis para a transmissão da mensagem: assim, os seus discípulos puderam transmitir num único idioma, viajando com segurança através de diversas cidades e países, sendo o cristianismo, durante cerca de três décadas, não molestado pelos governantes romanos.

Surpreendentemente, encontramos em Orígenes (c. 185-255), uma clara compreensão de que Deus preparou a situação mundial para o advento do cristianismo. Em 248, ele escreveu:

Porque ‘a justiça surgiu em seus dias, e abundância de paz começou com seu nascimento; Deus estava preparando os povos para sua instrução, de modo que estivessem sob o governo de um imperador, para que a hostilidade entre os povos, por serem muitos reinos, não dificultasse aos apóstolos de Jesus cumprir a ordem: ‘Ide por todo o mundo’. Está bem claro que Jesus nasceu no reino de Augusto, aquele que uniu todos os reinos na terra em um só império. Se houvesse muitos reinos, isto teria atrapalhado a difusão do ensino de Jesus por todo o mundo, não só pela razão mencionada, mas porque em todos os lugares os homens estariam sendo obrigados a prestar serviço militar e lutar para defender seu país, Isto era assim antes do tempo de Augusto. Por esta razão, como poderia este ensino, que prega a paz e não permite nem mesmo que as pessoas se vinguem de seus inimigos, ter sucesso, se a situação internacional não tivesse mudado em termos globais, fazendo surgir uma atmosfera menos hostil, que Jesus encontrou quando nasceu?[7]


[1] Nicola Abbagnano, História da Filosofia, 3. ed. Lisboa: Editorial Presença, (1984), v. 2, § 128, p. 97.

[2] Leo Strauss; Eric Voegelin, Fé e filosofia política: a correspondência entre Leo Strauss e Eric Voegelin, São Paulo: É Realizações, 2017, p. 135.

[3]William Barclay informa-nos que o vocabulário hebreu dispunha de menos de 10 mil palavras e o grego de 200 mil. (W. Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora, 1974, v. 5, p. 35).

[4]Juvenal, Sátira, Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1996, III.60-61.

[5] Merrill C. Tenney, O Novo Testamento: Sua Origem e Análise, 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1972, p. 91.

[6] A carta de Festo se constitui num bom exemplo da justiça romana (At 25.13-22).

[7]Origen, Against Celsus, II.30. In: Alexander Roberts; James Donaldson, eds. Ante-Nicene-Fathers, 2. ed. Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1995, v. 4, p. 443-444.