Martinho Lutero e as 14 consolações aos que sofrem

Em 1516, mais exato, 28 de junho, ao voltar da eleição do imperador alemão, Carlos V, Frederico, o Sábio, príncipe eleitor da Saxônia, nobre e cooperador da reforma da igreja adoece gravemente aos 56 anos. Na ocasião, o capelão da corte, Jorge Espalatino solicita ao reformador Martinho Lutero que escrevesse algum conteúdo para o consolo do príncipe.

Frederico era um homem muito supersticioso, e Lutero aproveitou a ocasião para discípula-lo, utilizando da criatividade característica de seu pensamento. Tal escrito, Quatorze consolações para os que sofrem e estão onerados, “evidencia Lutero como cura d´almas.”[1] Essa característica “é  pessoal”[2] Aliás, como tudo em Lutero, que tinha uma personalidade bem intensa e ainda experimentou muitas provações em sua peregrinação.

Em 1520, “foi ameaçado pela Peste Negra e sofreu com a morte de sua jovem filha.”[3] Ficou claro que “essas provações moldaram e fortaleceram Lutero para que ele se tornasse o líder resiliente e tão necessário do Movimento Protestante.”[4] Em 1527, já com a reforma em curso, Lutero se revela um pastor fiel, com a fé solidificada pelas provações que passou. “Em agosto, a Peste Negra se espalhou rapidamente entre o povo de Wittenberg. (…) Lutero, contudo, considerava que era seu dever moral permanecer, a fim de ministrar aos enfermos.”[5] Apesar de experimentar limitações e fraquezas humanas, “Lutero encontrou forças renovadas em Deus.”[6]

Embora um homem de fé e um homem cujo coração e mente estavam cativos a Palavra de Deus, Lutero não negligenciava os aspectos do conhecimento científico, sobretudo, acerca da saúde pública, em seu tempo. “Lutero também defendia a abordagem do bom senso, em oposição ao abuso da fé.”[7]

Ao discipular e ministrar ao Príncipe Frederico, Lutero, então, revela o seu forte coração pastoral, conduzindo o coração do seu eleitor a fonte de todo consolo.

“Os santos nada mais são do que exemplos no discipulado sob a cruz. Lutero leva o príncipe do culto às relíquias a Cristo. A Escritura fica sendo a fonte do verdadeiro consolo. Com isso fica claro que o objetivo da cura d´almas é a libertação interior do ser humano de tudo aquilo que o acorrenta. Essa libertação é conseguida pela palavra de Deus.”[8]

Fica nítido aqui o caráter poimênico, ou seja, pastoral, de Lutero no seu escrito, descrevendo com maestria o coração humano, “pecado, medo, perigo, morte, inferno, injustiça, tentação e cruz. Essa situação é limitada pela solidariedade de Cristo com os sofrimentos, mas também amá-lo.”[9] Para Lutero, apesar do mal, Deus age através dele e o cristão, através da fé em Deus e do consolo comunitário, proporcionado pela comunhão com os santos em Cristo, pode atravessar o vale da sombra da morte.

Afinal, a “justiça de Deus é um carro, no qual estou sentado e que me leva ao céu. A justificação dada por Cristo, é o maior fundamento do consolo.”[10] Em seu texto, Lutero afirma que a consolação deve ser buscada nas Sagradas Escrituras.[11]

As quatorze consolações

O texto se divide em duas partes, sete consolações apontando para o mal dentro de nós, à nossa frente, atrás de nós, à nossa esquerda, à nossa direita, abaixo de nós e acima de nós. Do mesmo modo, o bem, na mesma sequência, é a segunda metade, ou como chama o próprio Lutero, a segunda imagem.

O mal dentro de nós, Lutero salienta o que é estar sem Deus, condenado ao inferno, por causa do pecado. O mal à nossa frente, Lutero afirma que é o pecado, o mal e a morte. O mal atrás de nós é a angústia e o sofrimento causado pelas tragédias e tempestades da vida, por exemplo, ao sermos atacados por uma doença ou outro mal qualquer. Aqui, Lutero fala sobre nossa impotência no auto-cuidado, diante das calamidades. O mal abaixo de nós é a realidade do inferno e da morte. O mal a esquerda representa os inimigos pessoais, aqueles que nos causam o mal. A direita, salienta do mal que sofrem os amigos ou queridos. O mal acima de nós é a necessidade do sofrimento e crucificação de Jesus Cristo para a nossa redenção.

Quanto à segunda parte, o bem interno é a alegria que vem da fé em Deus, que são superiores as alegrias proporcionadas pelas coisas terrenas, como a riqueza, por exemplo. O bem futuro, ou a nossa frente se refere a esperança, que é a vitória sobre o pecado, a morte e o mal. O bem passado ou atrás de nós é o cuidado de Deus para com as nossas vidas, em nossa narrativa pessoal. Aqui, Lutero cita Agostinho de Hipona e seu clássico, Confissões, como exemplo.

O bem inferior ou abaixo de nós, se referem aqueles que já se foram, mas morreram em Cristo. Ele fala que nisso, Deus deve ser louvado em sua justiça e misericórdia. O bem esquerdo se refere ao juízo de Deus sobre os inimigos, mesmo que sejam prósperos. O bem à direita, se refere a Igreja de Deus, a comunhão dos santos, nossos irmãos no Senhor Jesus, que são instrumentos para a nossa consolação.

A última imagem, o bem acima de nós, se refere a glória de Cristo, em sua humilhação e exaltação para a nossa redenção e a imputação da justiça de Cristo em nós.

Lutero tem consciência que este escrito, que foi impresso de 1520 até 1525, apontou para Jesus Cristo como cura e transformação para os males causados ou como consequência de um mundo caído. Hoje, o povo de Deus espalhado por toda a face da terra, experimenta uma quarentena e uma pandemia, por causa do Covid-19, que tem trazido inúmeros prejuízos e perdas aos amados por Deus.

Os reformadores não foram teólogos de gabinete, escrevendo em conforto, pelo contrário, eles experimentaram, peste, perseguição, morte, inimizades, guerras, limitações pessoais, dentre tantas outras coisas. Eles continuam a encorajar, instruir e edificar o povo de Deus através de seus escritos ao longo dos séculos. Que continuemos a “ouvir as suas vozes” através das letras que apontam para a fonte de todo consolo em meio ao mal, o Senhor Jesus Cristo, Todo-poderoso.


[1] DREHER, Martin. Introdução. In. LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas: o programa da Reforma – escritos de 1520. Tradução de Martin Dreher, Claudio Molz et al. – São Leopoldo: Sinodal ; Porto Alegre : Concórdia, 2011.  P. 11.

[2] Ibid. P. 12.

[3] Sproul, R.C.. O Legado de Lutero (pp. 65-66). Editora Fiel (www.editorafiel.com.br). Edição do Kindle.

[4] Ibid.

[5] Ibid. P. 87.

[6] Ibid. P. 88.

[7] Nichols, Stephen. Além das 95 teses: A vida, o pensamento e o legado de Martinho Lutero (p. 183). Editora Fiel (www.editorafiel.com.br). Edição do Kindle.

[8] DREHER. Op. Cit. P. 13

[9] Ibid. P. 13.

[10] Ibid.

[11] Ibid.