A representação do mal em Legendarium, de J.R.R. Tolkien, e sua relação com a teologia Cristã

J.R.R. Tolkien foi um autor britânico que fez muito sucesso com sua Magnum Opus: O Senhor dos Anéis. Em O Senhor dos Anéis, Tolkien nos conta a grande aventura vivida por Frodo Bolseiro em direção à Montanha da Perdição para destruir o Um Anel, a arma secreta do maligno Sauron. Toda essa estória fez muito sucesso quando foi lançada pela primeira vez em 1954, e também quando o diretor neozelandês Peter Jackson fez a adaptação para os cinemas no inicio dos anos 2000.

Tudo o que acontece em O Senhor dos Anéis, na realidade, é parte de um universo imenso criado por Tolkien, e que ficou conhecido como Legendarium. O legendarium, além de O Senhor dos Anéis, compreende obras como: O Silmarillion, O Hobbit, Contos Inacabados, As Aventuras de Tom Bombadill, Beren e Luthien, Os Filhos de Húrin, A Queda de Gondolin, e ainda a série de livros, ainda não lançados em língua portuguesa, The History of Middle-earth, composta de 12 volumes.

Tolkien nasceu em um lar anglicano, porém após a precoce morte do pai, sua mãe se converte ao catolicismo. Tolkien tinha apenas quatro anos quando o pai faleceu. Sob a tutoria do padre Francis Xavier Morgan, Tolkien se torna um católico fervoroso. E todo o cristianismo que aprendeu durante sua vida é transportado para sua obra, ainda que de forma indireta e despretensiosa. E em todo o Legendarium percebe-se a cosmovisão cristã do autor.

Nas próximas linhas vamos analisar, especificamente, a ideia do mal presente na subcriação de Tolkien, e sua semelhança narrativa com a Escritura Sagrada. É preciso deixar claro que nunca foi intenção do autor fazer qualquer alegoria, e não pretendo ir contra a ideia do autor, mas o que vou fazer é demonstrar as similaridades entre a obra de Tolkien e a teologia cristã, no que diz respeito a doutrina do mal, demonstrando com isso que a cosmovisão cristã do autor está presente em sua obra, e afirmando os benefícios da leitura de toda a obra tolkeniana, sobretudo para o benefício do desenvolvimento do pensamento teológico.

Criação e Queda

Para chegarmos ao mal, precisamos ter como ponto de partida a criação de todas as coisas. Pensando de forma cronológica, o legendarium de Tolkien começa com a obra: O Silmarillion.

Havia Eru, o Único, que em Arda é chamado de Ilúvatar. Ele criou primeiro os Ainur, os Sagrados, gerados por seu pensamento, e eles lhe faziam companhia antes que tudo o mais fosse criado (TOLKIEN, 2017, p.3).

O livro de Gênesis afirma que “No princípio, Deus criou os céus e a terra” (Gn 1.1). Na teologia cristã temos a ideia de Um Deus criador. Diferente do paganismo, o cristianismo crê em um Único Deus eternamente existente em três pessoas distintas, Pai; Filho e Espírito Santo. Apesar da Trindade ser um mistério e não a compreendermos em sua plenitude, ainda assim, nenhum cristão de verdade a negará. Da mesma forma, não é condizente com o cristianismo ideias como panteísmo e panenteísmo. Há uma clara distinção entre Criador e criaturas. Assim também, o legendarium começa apresentando a criação como obra de uma única divindade[1]. E além de ser obra de uma única divindade, essa divindade não se confunde nem se mistura com sua criação. (CALDAS, 2011).

Eru Ilúvatar cria primeiramente os Ainur, também conhecidos como Valar. Eles são seres celestiais dotados de imenso poder e imensa glória. “Os Valar correspondem aos arcanjos da tradição judaico-cristã” (CALDAS, 2011, p. 55).  Após criar os Ainur, por meio deles Ilúvatar cria Ëa e Arda[2]. Ele compõe uma canção para que os Valar, numa espécie de coral, cantem de acordo com o tema que ele propôs. Percebe-se que o processo demanda uma organização e uma harmonia. Cada Valar recebe um tema para cantar, e na medida em que cantam juntos reproduzem uma belíssima melodia. Como resultado da música dos Valar surge então Arda, que seria o correspondente ao nosso planeta Terra. No entanto, um dos Valar chamado Melkor, o mais poderoso de todos, decide entoar uma canção com um tema aleatório proposto por sua própria mente e isso causa uma certa dissonância.

Enquanto o tema se desenvolvia, no entanto, surgiu no coração de Melkor o impulso de entremear motivos da sua própria imaginação que não estavam em harmonia com o tema de Ilúvatar; com isso procurava aumentar o poder e a glória do papel a ele designado. (TOLKIEN, 2017, p. 4).

Surge em Melkor, um desejo de criar coisas por si mesmo, independente do tema de Ilúvatar, e independente da companhia dos outros Valar. Ele coloca esse pensamento em sua música, e essa dissonância gera desânimo nos demais, levando alguns deles a deixar a fidelidade ao tema proposto inicialmente e afinando sua música com a música de Melkor (TOLKIEN, 2017).

Percebe-se que, nesse relato de Tolkien sobre a maldade entrando na criação, existem semelhanças com aquilo que a teologia cristã ensina sobre a entrada do mal no mundo. O Mal, na tradição cristã, tem sua origem em um ser, criado por Deus originalmente bom, e que por causa de seu orgulho e desejo de grandeza cai de seu posto, transformando-se no diabo. Um dos textos muito usados para se referir à queda de satanás é Ezequiel 28.11-19 que diz o seguinte:

A palavra do Senhor veio a mim, dizendo: – Filho do homem, faça uma lamentação sobre o rei de Tiro e diga-lhe: Assim diz o Senhor Deus: “Você era o modelo da perfeição, cheio de sabedoria e perfeito em formosura. Você estava no Éden, jardim de Deus, e se cobria de todas as pedras preciosas: sárdio, topázio, diamante, berilo, ônix, jaspe, safira, carbúnculo e esmeralda. Os seus engastes e ornamentos eram feitos de ouro e foram preparados no dia em que você foi criado. Você era um querubim ungido. Eu o estabeleci. Você permanecia no monte santo de Deus e andava no meio das pedras brilhantes. Você era perfeito nos seus caminhos, desde o dia em que foi criado até que se achou iniquidade em você. Na multiplicação do seu comércio, você se encheu de violência e pecou. Por isso, ó querubim da guarda, eu o profanei e lancei fora do monte de Deus; eu o expulsei do meio das pedras brilhantes. Você ficou orgulhoso por causa da sua formosura; corrompeu a sua sabedoria por causa do seu resplendor. Por isso, eu o lancei por terra; eu o coloquei diante dos reis, para que o contemplem. Pela multidão das suas iniquidades, pela injustiça do seu comércio, você profanou os seus santuários. Por isso, fiz sair do meio de você um fogo, que o consumiu; eu o reduzi a cinzas sobre a terra, aos olhos de todos os que o contemplam. Todos os que o conhecem entre os povos se espantam por causa de você; você se tornou objeto de espanto e deixará de existir para sempre.

Nota-se algumas semelhanças bem interessantes entre os motivos da queda do querubim ungido citado em Ezequiel e as falhas encontradas em Melkor. Enquanto o querubim ungido era o modelo da perfeição, a Melkor “haviam sido concedidos os maiores dons de poder e conhecimento, e ele ainda tinha um quinhão de todos os dons de seus irmãos” (TOLKIEN, 2017, p. 4). Mais adiante o próprio Ilúvatar diz: “Poderosos são os Ainur, e o mais poderoso dentre eles é Melkor” (TOLKIEN, 2017, p.6).

Como progressão da corrupção de Melkor, o texto sempre descreve Melkor como um ser rancoroso, invejoso e desejoso de poder. Sempre desfazendo ou corrompendo as criações dos outros Valar. Sempre tentando tomar o poder, até que acontece a primeira batalha dos Valar contra Melkor pelo domínio de Arda. Melkor, que havia sido criado bom e perfeito como os demais Valar, agora se torna o Inimigo mortal.

Na Escritura Sagrada, o pecado não afetou somente os anjos, que, segundo a tradição cristã, a partir do pecado, passam a ser chamados de anjos caídos. O pecado afetou também os seres humanos. Enquanto a queda dos anjos acontece em algum lugar fora do mundo material, a queda da humanidade acontece no Éden. O texto bíblico afirma que após criar o homem o Senhor Deus planta um jardim e ali coloca o casal. Um ser maligno em forma de serpente aparece no jardim, distorce as palavras que Deus havia falado a Adão e engana Eva. Enquanto Eva foi enganada, Adão por sua vez peca de forma deliberada e desobedece a ordem dada por Deus[3]. Quando o homem desobedece a Deus uma maldição cai sobre ele e a partir de então ele se torna mortal. Além disso, o pecado passa a fazer parte de sua constituição. Ele se torna pecador desde a concepção no ventre materno, e em tudo o que faz o pecado está presente. Como consequência direta do pecado, a segunda geração de seres humanos, ou seja, os filhos de Adão e Eva demonstram o quanto foram afetados. Caim, o mais velho, por inveja e rancor, conduz seu irmão Abel para uma armadilha e o mata. Esse é o primeiro relato de assassinato da história da humanidade, e com o agravante de ser um fratricídio.

O fratricídio dos Noldor

No legendarium, além dos Valar, temos os Filhos de Ilúvatar, que são divididos entre Os Primogênitos, que são os Elfos, e os Sucessores, que são os Homens[4]. O surgimento dos Elfos é motivo de alegria para os Valar, no entanto, para Melkor, o Vala renegado, é motivo de fazer aumentar sua inveja. Com o tempo ele consegue capturar alguns elfos e por meio de torturas e toda sorte de crueldades ele corrompe os capturados dando origem a terrível raça dos orques. Melkor não tem poder de dar vida a nada, o que ele fazia era corromper aquilo que tinha vida. Os elfos conhecem os valar, se encantam com sua beleza e sabedoria e passam a viver juntos deles em Valinor[5].

Havia entre os Noldor[6] um elfo poderoso e criativo chamado Fëanor. Usando sua incrível capacidade, ele cria as Silmarils. As Silmarils tinham a forma de três pedras preciosas, com aparência de diamantes, porém mais duras, de modo que não havia força nenhuma capaz de destruí-las. No interior destas gemas Fëanor colocou a luz das Árvores de Valinor[7]. Não havia escuridão que fosse capaz de esconder o brilho dessas joias e nunca, em todo o legendarium, houve joias mais belas do que essas. Todos ficaram impressionados com a beleza das Silmarils, inclusive Melkor que passou a cobiça-las.

Como resultado de suas várias corrupções e batalhas contra os Valar, Melkor ficou preso durante um longo tempo, quando terminou o período de sua prisão ele foi levado diante dos Valar, e, demonstrando um falso arrependimento, recebeu o perdão. Ele passou a demonstrar uma certa mudança e tinha livre acesso aos Primogênitos de Ilúvatar que vivam ali em Valinor. Esse falso arrependimento servia apenas para mascarar suas reais intenções. Ele queria as Silmarils e queria desfazer a boa relação que havia entre os elfos e os valar.

Quando via que muitos se inclinavam em sua direção, Melkor costumava caminhar entre eles; e, em meio a suas belas palavras, eram entremeadas outras, com tanta sutileza, que muitos daqueles que as ouviam, ao procurar se lembrar, acreditavam terem elas brotado de seu próprio pensamento. Ele fazia surgirem visões em seus corações dos esplêndidos reinos que eles poderiam ter governado por si mesmos, em poder e liberdade, no leste; e então se espalharam rumores de que os Valar teriam atraído os eldar para Aman em decorrência de sua inveja, temendo que a beleza dos quendi e o poder criador que Ilúvatar lhes havia transmitido crescessem tanto, que os Valar não pudessem mais controla-lo, à medida que os elfos crescessem e se espalhassem pelas terras do mundo. (TOLKIEN, 2017, p. 74-75).

Melkor age de uma forma muito dissimulada, ele distorce a verdade e inventa mentiras. Suas ações levam os Noldor à confusão e acontecem os primeiros desentendimentos de elfos contra elfos. Esses desentendimentos acabam por culminar em rebelião dos elfos contra os Valar. A rebelião leva Fëanor a liderar os elfos em uma fuga de Valinor, porém, para saírem de Valinor em direção a Terra-Média eles precisam de barcos.

Os elfos desenvolvem várias habilidades distintas, os que vivem no litoral, cuja habilidade era a da construção de barcos, são chamados de Teleri, e esses são fiéis aos Valar. Por serem fiéis eles negam os barcos aos Noldor e por causa da recusa acontece uma grande batalha onde muitos Teleri são assassinados, bem como muitos dos Noldor também.  Por fim, os Noldor se sobressaem, vencem seus irmãos e roubam os barcos. A punição logo vem e os Valar lançam sobre eles uma maldição que os seguiria para sempre. Eles seriam impedidos de retornar para Valinor, e haveria sempre a traição de irmão por irmão. “Vocês derramaram o sangue de seus irmãos injustamente […]. Pelo sangue, irão entregar sangue; e fora de Aman permanecerão na sombra da morte (TOLKIEN, 2017, p.100).

Percebe-se aqui semelhanças com o relato bíblico da queda. O casal primevo dá ouvidos as palavras distorcidas da serpente e se rebelam contra Deus, o desejo de serem independentes cresce em seus corações e eles comem do fruto proibido. Ao fazerem isso são expulsos do Éden, para onde nunca mais poderiam retornar, e cai sobre o homem e sobre todos os seus descendentes a maldição da morte. Como consequência, na primeira geração temos Caim assassinando seu irmão Abel em total rebeldia à voz de Deus, que o havia exortado sobre a maldade que crescia em seu coração. Com isso, uma maldição é lançada sobre Caim também.

O mal nas suas diversas representações

Além da queda, temos diversas manifestações do mal nos principais personagens do legendarium.

Sauron – Sauron é da raça dos Maiar, uma espécie angelical inferior aos Valar, ele era aprendiz de Aulë, o Vala ferreiro. Com o tempo ele se sente atraído pelas ideias de Melkor e torna-se o seu tenente mais fiel. Além de Sauron, vários outros da raça dos Maiar acabam abandonando os Valar e seguindo Melkor. Após a derrota de Melkor, Sauron assume o seu lugar na orquestração da maldade na Terra-Média. Sob uma nova forma, e uma identidade diferente ele consegue a amizade de alguns elfos e convence um elfo chamado Celebrimbor a forjar alguns anéis poderosos, para que, por meio do poder desses anéis, os males causados pelas guerras dos Valar fossem reparados. No entanto, Sauron continuava mal como sempre fora, e seu único intuito era se tornar o senhor supremo da Terra-Média. Enquanto Celebrimbor forjava os anéis, Sauron de forma sorrateira forjou o Um Anel e transferiu para esse anel quase todo o seu poder para que por meio dele pudesse dominar os demais.

Essa sede de poder manifestada por Sauron é muito comum em toda a história humana. Na Bíblia temos homens como Ninrode, Jeroboão filho de Nebate, a dinastia Herodiana e vários outros que manifestaram uma imensa sede de poder e sede de dominação, o que se mostra uma direta rebelião contra o Criador que é o único que detém o poder e o controle de todas as coisas.

Os Numenorianos a Guerra da Ira, a ilha de Númenor foi dada aos homens descendentes da casa dos amigos dos elfos. Eles também receberam a dádiva de ter o seu tempo de vida prolongado, continuavam mortais, porém, viveriam bem mais que os homens comuns. O reino de Númenor se torna algo belo e muito abençoado, porém, o rei Ar-Pharazôn reúne um grande exército e navega em direção a Terra-Média para confrontar Sauron. Sauron finge se render e é levado cativo até Númenor. Em Númenor ele consegue ascender de prisioneiro a conselheiro do rei. Como conselheiro, ele lança várias mentiras aos numenoreanos. Uma delas era de que os Valar tinham inveja dos grandes numenoreanos, além disso ele convence-os de que se adorassem a Melkor, que segundo Sauron era o verdadeiro Senhor do mundo, eles receberiam a dádiva de viver eternamente. Assim, muitos numenoreanos se voltam para a adoração a Melkor. Os que se recusavam e permaneciam leais aos Valar eram chamados de Fiéis. Esses Fiéis eram perseguidos e sacrificados vivos em honra a Melkor. Não satisfeito com isso, Sauron induz os numenoreanos a rumar com seu grande exército em direção à terra dos Valar, ou seja, a Terra dos Imortais para confrontá-los. Como aos Valar não era permitido agir contra os homens, eles rogam a Erú Ilúvatar e Ilúvatar faz com que a água devore a Ilha de Númenor levando-a para o fundo do mar.

No livro de Êxodo a ordem de Deus é clara: “Não tenham outros deuses diante de mim” (Êxodo 20.2). Em todo o percurso da humanidade, os diversos povos sempre adoraram deuses falsos. O politeísmo era marca registrada; e Israel, nação separada e escolhida de Deus, recorrentemente em sua história, sempre cometeu o pecado da idolatria. O rei Salomão, ainda no período da monarquia unida, introduziu o culto a outros deuses na nação. Influenciado por suas esposas estrangeiras, Salomão não somente tolerou como também participou da adoração aos deuses falsos. “Sendo já velho, suas mulheres lhe perverteram o coração para seguir outros deuses, e o coração dele não era fiel ao Senhor, seu Deus, como havia sido fiel o coração de Davi, seu pai”. (1Rs 11.4). Após a morte de Salomão o reino é dividido, o Norte fica sob a regência de Jeroboão filho de Nebate, e o Sul fica sob a regência de Roboão, filho de Salomão. No Norte, em um período de aproximadamente duzentos anos, cerca de vinte reis reinam e nenhum deles é considerado um rei bom. O que qualificava um rei como bom ou mal era sua fidelidade à Lei de Deus e não somente sua perspicácia administrativa. Ou seja, todos os reis do norte foram infiéis às leis de Deus e cometeram o pecado da idolatria. Em 722 a.C. os assírios marcham em direção ao norte, invadem a cidade, destroem tudo, levam o povo cativo ao ponto de nunca mais retornarem. Ou seja, podemos dizer que, metaforicamente, o pecado e a insubordinação do povo fizeram com que o reino ruísse sob as águas.

O Sul resiste um pouco mais, em um período de aproximadamente trezentos e quarenta e cinco anos, cerca de vinte reis reinam e há uma intercalação entre reis bons e maus. Ou seja, nem todos os reis sucumbiram à infidelidade e idolatria. Temos reis como Ezequias, Josias, Josafá e Asa, que foram bons reis. Ainda assim, o profeta Ezequiel no capítulo 23 de seu livro traz uma repreensão da parte de Deus, usando a metáfora de duas irmãs, Oolá e Oolibá que representavam respectivamente, Samaria e Jerusalém, capitais dos reinos do norte e do sul. Em sua mensagem Ezequiel afirma que Oolibá, Jerusalém, a irmã mais nova, a exemplo de Oolá, Samaria, se prostituiu e por isso seria destruída pelos seus amantes. Essa é uma linguagem comum usada pelos profetas para falar sobre a idolatria. Em 586 a.C., assim como aconteceu ao Norte, os babilônios marcham sobre Jerusalém, destroem a cidade, destroem o templo e levam o povo cativo para a babilônia. A cidade rui, ou seja, é esmagada pelas águas.

Os paralelos entre Israel – o reino escolhido de Deus, onde habitava o seu povo, que tinham a revelação, e que caíram na idolatria, abandonando totalmente, em alguns momentos, o culto a Deus e se entregando a outros deuses, chegando inclusive a sacrificar os próprios filhos –, e Númenor são muito evidentes.

Gollum – Gollum é um dos personagens mais emblemáticos de todo o legendarium. Pertencia à raça dos Hobbits e originalmente chamava-se Sméagol. Um dia, quando estava pescando com seu primo Déagol, este cai na água e no fundo do rio encontra um anel brilhante. Sméagol desejoso desse anel, diante da recusa de Déagol em cedê-lo, mata-o. Ao descobrir que o anel o deixava invisível, ele desse artifício para invadir casas, roubar, e por causa disso acaba sendo expulso da vila.

Uma vez expulso ele passa a vagar a ermo, com o tempo começa a odiar todo tipo de luz, principalmente a luz do sol e refugia-se nas profundezas das Montanhas Sombrias. Ali, seu corpo fica desfigurado, seus olhos se modificam e adaptando-se à falta de luz ficam semelhantes aos olhos de répteis. O anel consome sua mente e acaba consumindo-o quase por completo. Todo o seu desejo é para o anel, ele vive pelo anel e para o anel. Para ele não é apenas um objeto, mas, como ele mesmo denomina o anel é o seu Precioso. Quando Gollum encontra-se com Bilbo Bolseiro, é dito que ainda restava nele um pouco de civilidade e uma vaga lembrança de um tempo onde ele era um hobbit comum. Esse é um dos motivos para que ele convide Bilbo para um jogo de advinhas.

“É bem verdade, eu temo”, disse Gandalf. “Mas havia outra coisa aí, creio, que você ainda não vê. Mesmo Gollum não estava completamente arruinado. Ele tinha demonstrado mais resistência do que até um dos Sábios poderia imaginar – como um hobbit demonstraria. Havia um cantinho de sua mente que ainda lhe pertencia, e uma luz passava por ali, como que por uma fresta no escuro: uma luz do passado. Chegava a ser agradável, eu acho, ouvir de novo uma voz bondosa, recuperando lembranças do vento, e das árvores, e do sol na grama, e de tais coisas esquecidas. “Mas isso, é claro, só acabaria enfurecendo mais a parte malvada dele – a não ser que pudesse ser conquistada. A não ser que pudesse ser curada.” Gandalf suspirou. “Ai! Para ele existe pouco esperança disso. Porém, não nenhuma esperança. Não, apesar de ele possuir o Anel por tanto tempo, quase no limite de sua lembrança. Pois fazia muito que ele não o usara por longo tempo: na treva negra raramente era necessário. Certamente ele jamais havia ‘minguado’. Ainda está fino e rijo. Mas é claro que o objeto lhe devorava a mente, e o tormento se tornara quase insuportável.  (TOLKIEN, 2019, p. 108-109).

Posteriormente, assim que ele descobre que perdeu o seu anel e sob a possibilidade de Bilbo estar com ele, ele logo se mostra novamente uma fera raivosa e os traços de civilidade somem outra vez. Ele está totalmente tomado pelo desejo de recuperar o seu Precioso. E assim acontece até o seu encontro com Sam e Frodo. Frodo lhe demonstra bondade, e por um momento Gollum abaixa a guarda e se deixa envolver. Porém, o amor e o ódio pelo anel se mesclavam nele e eram mais fortes do que tudo. Como Gandalf diz: “Ele estava desgraçado por completo. Odiava o escuro e odiava a luz mais ainda: odiava todas as coisas, e o Anel mais que tudo” (TOLKIEN, 2019, p. 109). Um pouco a frente Gandalf completa: “Ele o odiava (o anel) e o amava, assim como odiava e amava a si mesmo. Não podia livrar-se dele. Não lhe restava vontade nesse assunto”. (TOLKIEN, 2019, p. 109).

Percebe-se o quanto Gollum foi corrompido pelo anel, e o quanto ele perdeu de sua origem e sua essência. Isso nos leva a analisar o quanto, segundo a cosmovisão cristã, o ser humano foi corrompido e consumido pelo pecado. De acordo com as Escrituras o ser humano foi criado bom, e foi criado segundo a imagem e semelhança de Deus. O homem era perfeito e estava no jardim onde, como um mordomo de Deus, deveria cultivar e guardar o jardim. Havia docilidade, havia harmonia, havia amor e confiança entre o homem e sua mulher. Porém, após cair em pecado, toda a sorte de males entra no mundo e a história da humanidade nos mostra o quanto o ser humano entrou em declínio. Mortes, roubos, idolatria, perversidade, opressão, abusos, enfim toda essa caixa de pandora se abriu e o homem se desfigurou.

A teologia Cristã não afirma que o homem perdeu completamente a imagem e semelhança de Deus com a qual fora criado, no entanto, a teologia cristã afirma que tudo isso foi desfigurado. O homem é simplesmente um reflexo pálido do que fora criado para ser. Assim como Gollum era uma lembrança vaga e disforme daquilo que um dia havia sido.  Assim como em Gollum, a teologia cristã afirma que um facho de luz ainda penetra numa fresta da alma e da vida desse ser humano, e esse facho de luz impede que os homens sejam tão maus quanto tem capacidade de ser. Alguns são salvos e preservados pela graça especial de Deus, sobre outros, repousa apenas aquilo que é chamado de graça comum, eles não são regenerados, sobre eles permanece toda essa corrupção, toda essa deformação e o fim deles é a morte eterna.

Vários outros personagens da obra poderiam ser citados como por exemplo Sauron e Os Espectros do Anel, na mesma categoria da corrupção causada pelo mal. O ponto a ser notado é que a literatura fabulosa de Tolkien dialoga bastante com a teologia cristã, e pode ser usada tanto para entretenimento quanto para aprofundamento no pensamento teológico dialogando com a cultura à nossa volta. Isso mostra a contribuição que a literatura tem para a vida do cristão. Por meio dela o crente glorifica a Deus, fala de Deus aos homens tendo o fabuloso como ponto de contato e com isso consegue acesso a diversos locais para proclamar as verdades das Escrituras, sem contar que, de forma geral, também demonstra a graça de Deus sobre suas criaturas.

Referências bibliográficas

CALDAS, C. (org.). O Evangelho na Terra-média: leituras teológico-literárias da obra de J.R.R. Tolkien. São Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2011.

FERREIRA e MYATT. Teologia Sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. São Paulo. Vida Nova, 2007.

TOLKIEN, J. A Sociedade do Anel: primeira parte de O Senhor dos Anéis. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2019.

______ O Silmarillion. 5ª Edição. São Paulo: WMW Martins Fontes, 2011.


[1] Ainda que no Ainulidalë a criação é fruto da canção entoada pelos Valar, o criador dessa canção é Eru, Ilúvatar. Sendo assim, a criação é obra dele.

[2] Ëa corresponde ao universo e Arda corresponde ao planeta Terra.

[3] 1 Tm 2.14

[4] Os Anãos são criados pelo vala Aulë. Porém ele cria os anãos em segredo e à parte dos outros valar. Eru Ilúvatar quando descobre que Aulë os havia criado, ordena que Aulë os destrua. Porém, no momento que Aulë vai destruir sua criação, os anãos demonstram medo e um enorme pavor o que faz com que Ilúvatar desista de destruí-los.

[5] Valinor era o reino dos Valar, era conhecido também como as Terras Imortais. Ali os Valar fizeram sua habitação. Ficava a oeste da Terra-Média e o acesso era comente pelo mar.

[6] Os Noldor são um dos vários clãs de Elfos existentes no Legendarium.

[7] As Árvores de Valinor eram duas, Telperion a prateada e Laurelin a dourada. Como o nome diz, elas ficavam localizadas em Valinor, e eram responsáveis pela iluminação do continente, antes da existência do Sol e da Lua. As duas árvores foram destruídas por Melkor, acompanhado da terrível Ungoliant, um espírito perverso em forma de aranha, ancestral de Laracna a terrível aranha que Frodo e Sam encontram no túnel à caminho de Mordor. A única luz que sobrou das Árvores de Valinor estava contida nas gemas das Silmarils.