A Peregrinação cristã: sofrimento e vida de John Bunyan – Tiago Santos

A década de 1660 foi de muito tumulto e agitação na Inglaterra. Cromwell, o protetor da Inglaterra e do parlamento, morrera três anos antes. Carlos II, filho do rei decapitado, volta do exílio em 1649 e ascende ao trono. A Igreja da Inglaterra ganha mais uma vez o status de Igreja do Estado e põe fim à liberdade de culto que se viu entre os anos de 1640 a 1660. No ano seguinte, 1662, através do chamado ato de conformidade, mais de 2000 ministros puritanos não conformistas foram ejetados de seus púlpitos, suas igrejas foram fechadas e eles foram proibidos de pregar e até mesmo de residir a  menos de 8 km de qualquer vila ou povoado. O novo Parlamento, conhecido coloquialmente como o “Parlamento bêbado”, pelo tipo de homens que o compunha, removeu todo princípio de reforma do ambiente religioso da Inglaterra. Um dos mártires daqueles dias, o Conde de Aryl, do alto de seu cadafalso, diante do seu carrasco, disse o seguinte:

“Estes tempos em que vivemos são ou de muito pecado ou de muito sofrimento. Que os cristãos façam pois sua escolha – PECAR OU SOFRER, e, certamente, aquele que escolher a boa parte, haverá de escolher SOFRER.”

 John Bunyan escolheu sofrer!

Bunyan foi um daqueles heróis da fé que experimentou no corpo e na alma a agudez do sofrimento em suas manifestações mais amplas: desde lutas intensas com sua própria consciência e convicção de pecados, que resultou num longo e doloroso processo de apropriação da fé, até os sofrimentos da miséria, privação, doença e perseguições por causa de sua fé.

O Peregrino, reputado como o livro mais publicado e lido em toda a história depois da Bíblia, é uma fascinante alegoria que conta a história de Cristão rumo à Cidade Celestial. Seu caminho é realizado em etapas, e, em todas elas, Cristão experimenta vários tipos de sofrimento e lutas intensas, passando pelo “pântano do desânimo”, pelo “monte da dificuldade”, pelo “vale da humilhação”, pelo “vale da sombra da morte”, pelo martírio de Fiel, pelo “castelo da dúvida” até chegar ao rio que não tem ponte.

Seu autor, John Bunyan, nasceu na Inglaterra da era puritana em 1628, numa cidadezinha rural chamada Bedford. Teve uma infância pobre, recebeu uma educação precária e se tornou funileiro (latoeiros) por profissão, seguindo a profissão de seu pai. Com apenas 14 anos perdeu, no espaço de um mês, sua irmã caçula e sua mãe. Aos 16, juntou-se ao exército parlamentar onde permaneceu por alguns anos.

O início de seu processo de entendimento da fé cristã se deu através da leitura dos dois únicos livros que tinha em casa; herança recebida pela primeira esposa. Os livros eram “O Caminho do homem ao Céu” de Arthur Dent e “A Prática da Piedade” de Lewis Bayly. A leitura desses livros causou forte impressão em John Bunyan e levou-o a refletir com mais seriedade a sua situação diante de Deus. Bunyan converteu-se debaixo do ministério do pastor batista John Gifford, e conta-nos como foi sua conversão, em meados dos anos 1650.

Apropriar-se das bênçãos da salvação não foi uma tarefa fácil para Bunyan. Em sua autobiografia, “Graça abundante ao principal dos pecadores”, ele dedica mais de dois terços da obra para descrever os altos e baixos de suas lutas internas. Num certo ponto, ele reconhece que suas provações e sofrimentos vinham “do Senhor, de Satanás e de minha própria corrupção”. E suas lutas contra sua consciência acusadora e as tentações e provas de Satanás faziam com que, muitas vezes, ele desejasse ser como um “cachorro, ou um cavalo, por não possuírem uma alma sujeita ao inferno”. Ele sentia grande tristeza por ter sido criado por Deus, crendo que seria condenado por causa de seus pensamentos pecaminosos, pois não cria ser possível alcançar a santidade. Em certa oportunidade, a passagem de Lucas 22.31, que diz “Simão, Simão, eis que Satanás vos reclamou” parecia tão vívida para Bunyan que ele a ouvia como que se alguém a gritasse atrás de seus ombros.

Bunyan lutou com a certeza de seu chamado e salvação. Muitas vezes ele sentia-se como Saul, Caim ou Esaú – um errante, que tendo conhecido alguma coisa da Palavra de Deus, a abandonou por um prato de lentilhas. Seus temores pelo inferno causavam desespero e grandes tumultos em sua alma.

Noutra ocasião, ele relata que “essas coisas me lançaram ao desespero. Quando essas tentações me sobrevinham com tamanha força, me comparava a uma criança que algum nômade havia levado para longe de seus amigos e de sua terra. Às vezes eu esperneava, gritava e chorava em desespero”

O sofrimento de Bunyan se estendeu por anos. Em algumas ocasiões, ele experimentava algum alívio de suas tentações e consciência, em outras, o desespero era tal que ele não “conseguia orar a Cristo contra quem pecara”.

No Peregrino, Bunyan parece retratar esse tipo de angustia na passagem de Cristão pelo vale da sombra da morte. Lá, ele relata que Cristão encontrou homens que fugiam deste vale, porque lá tinha “sátiros e demônios do inferno. Uivos e gritos contínuos de um povo em aflição indizível, jazendo em sofrimento e cadeias. Por cima do vale, pairam as desoladoras nuvens da confusão, e a morte está sempre com as asas abertas. É tudo completamente terrível, lúgubre e sem ordem”.

Mas Cristão, embora trêmulo e temendo pela vida, desembainhou sua espada e seguiu pelo vale, até ver raiar o dia. Assim foi com Bunyan também, que finalmente viu o fim de suas angustias pela sua alma quando a  “sentiu a convicção da Justiça de Cristo em sua vida”. Ele chamou essa sua convicção de “triunfo da graça”.

Alguns anos depois de sua conversão, ele ficou viúvo e sua esposa deixou-lhe 4 filhos, sendo uma delas cega. Ele casou-se novamente com uma mulher muito piedosa, Elizabeth, que foi sua companheira e ajudadora o resto de sua vida; tornou-se pastor de uma congregação batista e, a partir da década de 1660, com o retorno da monarquia e a proibição do ministério de pregação leiga e não conformista, Bunyan passou a ser encarcerado em inúmeras oportunidades. A soma do tempo em que Bunyan passou na prisão totaliza 12 anos.

Durante seu julgamento, Bunyan defendeu seu direito de pregar lendo a passagem de 1 Pedro 4.10-11, que diz: “Servi uns aos outros cada um conforme o dom que recebeu como bons despenseiros da multiforme graça de Deus; se alguém fala, fale conforme os oráculos de Deus; se alguém serve, faça-o na força que Deus supre, para que, em todas as coisas, seja Deus glorificado, por meio de Cristo Jesus, a quem pertence a glória e o domínio pelos séculos dos séculos. Amém!”

Bunyan foi encarcerado.  E em cada oportunidade de sair da prisão, prometia que voltaria a pregar.  E voltava à prisão.  Seus dias de encarceramento foram de muitas incertezas e dificuldades

A cada dia, Bunyan sentia-se, literalmente, com a corda no pescoço. Ele sabia que poderia morrer a qualquer momento. Além disso, o pensamento das privações e sofrimento que sua família passaria era algo que lhe cortava o coração. Durante seu período de encarceramento, Bunyan registrou o seguinte

“A separação de minha esposa e de meus filhos, sempre me tem sido como arrancar a carne de meus ossos, enquanto estou neste lugar. Isso não somente porque os amo demais, mas porque sou sempre lembrado de suas privações, misérias e da grande falta que minha família terá, se for tirado deles, especialmente minha pobre filhinha cega. Ah, pensar nas privações que minha doce filha cega pode passar quebra meu coração. Pobre criança! Que grandes sofrimentos será sua porção neste mundo. Ela poderá  ser esbofeteada, mendigar, passar fome, frio, não ter o que vestir e milhares de outras calamidades.”

Foi na prisão que Bunyan escreveu sua obra prima, O Peregrino e sua autobiografia, “Graça Abundante ao Principal dos Pecadores.” Mas Bunyan produziu muitas obras e escritos. Segundo o historiador Christopher Hill, Bunyan escreveu cerca de 58 obras!

Bunyan foi alguém que produziu teologia sob o fogo da provação!

A maior parte de seus escritos tinha como propósito ajudar os peregrinos a percorrer o caminho que leva ao Céu. Escreveu obras evangelísticas; escreveu sobre a conversão; sobre a santidade; sobre a edificação dos santos; sobre as batalhas cristãs. Escreveu obras teológicas sobre a pessoa de Cristo, sobre a trindade, sobre a igreja e  escreveu também duas obras importantes sobre o sofrimento, uma delas chamada “Conselho aos Sofredores” e a outra, “As provações dos cristãos – a aflição e seus benefícios”.  Nessas obras, Bunyan encorajou o homem de dores a permanecer íntegro e fiel diante das perseguições e sofrimentos, dizendo que “Não há nada, além de Deus e da graça de Cristo, que mantém firme o homem que sofre, como uma boa vontade e consciência”. Sua consciência, como a de Lutero, estava cativa ao Senhor e por isso, ele dizia que “se tivesse 4500 litros de sangue, derramaria cada gota em favor de seu Salvador”.

Sobre ele, era dito que seu sangue era composto de versículos bíblicos. Tudo que Bunyan escrevia era repleto da Bíblia. Na verdade, a Bíblia era o livro que ela carregava consigo a maior parte do tempo e o único a que tinha acesso durante os dias de prisão.

Bunyan morreu aos 60 anos de idade, em 1688, quando, já com saúde debilitada depois de envolver-se num enorme esforço que resultou na publicação de 6 livros, cavalgou da cidade de Reading  para Londres debaixo de forte tempestade. Contraiu um pneumonia e, depois de dez dias de enfermidade, expirou – cruzando como verdadeiro peregrino o rio que leva à Jerusalém espiritual.

Tirando proveito das lutas

Alguns desses episódios de sua vida nos ajudam a entender as diferentes formas de sofrimento e qual deve ser nossa resposta a eles. Bunyan disse que seu sofrimento trouxe-lhe muita “convicção, instrução e entendimento”. Vejamos como ele tirou proveito das lutas que travou em sua vida e como nós também podemos ter esse proveito.

Autoconhecimento: As provas serviram para Bunyan conhecer melhor seu coração. Ele disse haver encontrado sete abominações contra as quais teve de lutar:

  • inclinação à descrença;
  • esquecimento súbito do amor de Deus;
  • inclinação às obras da Lei;
  • distração e frieza na oração;
  • esquecer de observar aquilo porque orei;
  • inclinação por murmurar pelo que não tenho mais e de abusar daquilo que tenho; e
  • incapacidade de fazer o que Deus me ordena sem que a natureza pecaminosa me faça sentir sua presença.

Crescimento Espiritual: As aflições serviram também ao crescimento de Bunyan e, segundo ele via, conforme ensina Romanos 8.28, essas coisas aconteciam para seu bem. Deus as ordenava para que:

  • eu negue a mim mesmo;
  • eu seja impedido de confiar em meu coração;
  • eu seja convencido da insuficiência de toda retidão inerente;
  • eu veja a necessidade de vigiar e ser sóbrio;
  • eu seja estimulado a orar a Deus, por meio de Cristo, para que me auxilie e conduza neste mundo.

Algumas conclusões:

1) Somos convidados a confiar em Deus em todas as circunstâncias e lutas da vida por causa dos sofrimentos de Jesus, na Cruz. – A cruz, instrumento de sofrimento, é nosso quinhão. Cristo nos convida a tomarmos a nossa cruz diariamente, a morrermos para nós mesmos e vivermos para ele, pois ele morreu por nós para que pudéssemos nele ter vida. Precisamos de nos crucificar para este mundo.

2) O sofrimento é o cadinho de Deus. Prova a nossa fé e nos refina. Somos amadurecidos e crescemos na medida em que colocamos nossos olhos em Cristo e nos sofrimentos dele, quando nós mesmos passamos por sofrimentos: (Hb 12.2): “olhando firmemente para o Autor e Consumador da fé, Jesus, o qual, em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz, não fazendo caso da ignomínia, e está assentado à destra do trono de Deus.”

3) O sofrimento desta vida ajuda-nos a lembrar da esperança do porvir. A ressurreição e os novos céus e nova terra – a eternidade – fica diante de nossos olhos quando olhamos para as durezas da vida com perspectiva. Bunyan, descreve assim a cidade celestial: “ Ora, no momento que as portas foram abertas, olhei para dentro. Eis que a cidade brilhava como o sol e as ruas eram pavimentadas com ouro. Nelas, andavam muitas pessoas com coroas nas cabeças, palmas nas mãos e harpas douradas, para com elas cantar louvores. Haviam também seres que tinham asas e clamavam incessantemente uns aos outros dizendo: Santo, Santo, Santo é o Senhor. Tendo visto essas coisas, desejei muito estar entre eles”.

Que diante do sofrimento, tenhamos, finalmente, uma resposta como a de Jó:

 “Bem sei que tudo podes, e que nenhum de teus planos pode ser frustrado”.  Jó 42.2

Vincit qui patitur (O que sofre conquista).

Por Tiago Santos. © 2013 Ministério Fiel. Original: A Peregrinação cristã: sofrimento e vida de John Bunyan – Tiago Santos

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