Solenes sonegadores da beleza

É cada vez mais notória a expansão do pensamento teológico protestante de matriz reformada em nosso país. O movimento se faz ainda mais presente entre os jovens, e desde o advento da celebração dos 500 anos da Reforma Protestante, os pensadores e obras dessa cena teológica têm ganhado ainda mais voz e campo entre os cristãos protestantes. Tudo isso certamente é motivo de grande alegria e de gratidão ao Senhor, que, por Sua graça, tem presenteado a igreja brasileira com gente cada vez mais capacitada e preparada para o ensino bíblico fiel das Escrituras Sagradas e da teologia cristã.

Contudo, um ponto tem me feito refletir a respeito da real compreensão por parte da igreja, sobre a integralidade de vida no serviço a Jesus que a tradição reformada nos ensina, e este ponto em especial diz respeito à estética e à arte. Foi a tradição reformada que nos ajudou a resgatar a supremacia do senhorio de Cristo sobre todas as coisas, e é exatamente para esse sentido que pretendo fazer alguns apontamentos.

Estética? Arte?

Quando falo sobre estética e arte, falo de toda e qualquer iniciativa, atividade e/ou artefato que expresse algo que acreditamos e fazemos. Estou falando de produção cultural como um todo: músicas, filmes, artes plásticas, teatro, pintura, festivais culturais de toda sorte, livros, histórias, eventos, palestras; mas não falo apenas do evento e do artefato em si, falo também da forma como estes eventos e artefatos são apresentados, nisso poderíamos incluir, vídeo, fotografia, sonorização, design, decoração, recepção, comunicação e mais uma infinidade de aspectos que poderiam ser apontados.

Claro que num espaço como este, não temos tempo nem mesmo para arranhar a superfície do que o assunto realmente demanda. Portanto, pretendo falar predominantemente sobre a segunda parte da lista acima, que diz respeito, em especial, à forma como apresentamos e comunicamos os artefatos culturais que produzimos e a mensagem que temos em mãos como igreja e como cristãos.

Cristo é a fonte de toda criatividade e Senhor Supremo sobre toda arte

Com a expansão da teologia reformada em solo brasileiro, expandiu-se também os eventos e as atividades das igrejas reformadas. Esse movimento, no entanto, deixou patente um problema: muitas vezes temos um conteúdo excelente, porém, transmitido de forma despreocupadamente precária. São convites mal elaborados, artes gráficas de gosto duvidoso, organização e recepção atabalhoadas, sonorização dos eventos/cultos de baixíssima qualidade, e até mesmo a hospitalidade em alguns círculos reformados tende a ser mais fria e distante.

Acredito que o fundamento que deva servir de pano de fundo para a compreensão da ideia que pretendo sublinhar aqui, é o fato de que Cristo também é Senhor da arte e da estética. De que existe um padrão revelado na criação daquilo que é belo e bom, e de que Deus se importa com isso. Talvez tenhamos de ser desafiados a olhar para a criação, reconhecendo nela o maior e mais espetacular Artista que já existiu desde toda a eternidade. Tudo de mais belo que existe no universo desde as mais distantes estrelas que decoram as noites sem luar, até as mais suntuosas maravilhas naturais do planeta Terra, são obras das mãos deste Magnífico Artista, e estão gritando bem diante dos nossos olhos revelando o quão interessado Ele é no que é belo.

A todo o momento temos oportunidades reais de contemplar o horizonte, a metamorfose de cores do firmamento, o canto sereno de uma ave, o brilho ofuscante do sol, e as frondosas e, por vezes intimidadoras, árvores as quais não possuem uma única folha sequer idêntica a outra. Diariamente estamos expostos a um festival repleto de cores, traços, linhas, curvas, sons, cheiros e sabores de todos os tipos, pra todos os gostos. Você já parou pra pensar que Deus escolheu que Sua criação fosse assim? Que Ele escolheu agir assim e que Ele é assim? Que Deus é um Deus que se preocupa com o design e com a beleza das coisas, com a organização, com a estética, com a harmonia dos elementos. Que Ele não é e nunca foi um Deus de bagunça, desleixado e indiferente ao que bom e agradável aos olhos?

Além da apreensão deste conceito fundante em nosso coração, é preciso também, que restauremos a central importância da arte na vida humana. Ora, uma parcela avassaladora daquilo que influenciou a humanidade e nos influencia todos os dias até hoje, são artefatos culturais e artísticos: desde as grandes obras clássicas da música e da pintura, as artes plásticas, os grandes clássicos da literatura e do teatro, as incontáveis tradições orais que resguardaram por séculos a fio a história e a cultura de inúmeros povos; até a contemporaneidade e suas séries de televisão, filmes, novelas, peças de marketing e propaganda, stand-up comedys, hits musicais, e tantos outros empreendimentos artísticos, tudo, desde sempre, possuiu e ainda possui um poder incrível de comunicação, sensibilização e influência na vida do homem. Percebam toda cultura que tem sido disseminada por estes inúmeros veículos artísticos e estéticos citados, não são exatamente eles que têm formado a mentalidade secularizada do homem pós-moderno? Como nós cristãos temos nos posicionado na relação com todo esse arsenal de possibilidades criativas bem diante de nós?

Soli Deo Gloria?

Não somos nós que prezamos pela teologia que subscreve o Soli Deo Gloria, a Soberania de Deus sobre todas as coisas, a Supremacia de Cristo, o comer e beber e o fazer qualquer outra coisa para a glória de Deus? De que adianta haver tanta ortodoxia bíblica se não existir o mínimo entendimento dos desdobramentos mais elementares desta tão maravilhosa compreensão que aponta Cristo como Senhor de absolutamente cada palmo do que fazemos e de cada segundo em que existimos?

Como falar tanto na glória de Deus quando, por vezes, não conseguimos refletir essa consciência na confecção de um simples anúncio de um evento que organizamos? Numa simples arte para internet, num banner, num outdoor, num cartaz, num vídeo, na gravação, mixagem e masterização de uma música? Como anunciar com nossas bocas e livros que tudo pertence a Deus e deve ser feito para Sua glória e continuar apresentando toda essa riqueza de forma tão precária e medíocre? O que perdemos no meio desse processo todo?

Como, diante do Deus que criou toda a beleza estonteante que pode ser contemplada na criação, continuamos com nossas igrejas visualmente pensadas e ornamentadas de forma tão desleixada? Por que tanta pobreza estética? Por que os músicos nas igrejas reformadas geralmente parecem ser os menos aplicados e ensaiados? Por que o som em igrejas reformadas, predominantemente, é tão precário e mal equalizado? Por que sempre que vamos exibir algum vídeo no datashow as coisas nunca dão certo de primeira? Por que temos de ser sempre tão atrasados e retrógrados em todos estes aspectos? Será que já não passamos da hora de perceber o quanto isso é vergonhoso e o quanto uma mudança em nosso comportamento poderia contribuir para o avanço da poderosa mensagem que temos em mãos?

É triste quando somos tomados de assalto por um pragmatismo doentio, onde conclui-se que todo esse universo estético tem menos importância para Deus, ou pior, nem importância tem. Por isso, gostaria de encorajar você a, de agora em diante, esmerar-se o máximo possível em qualquer atividade que colocar as mãos. Encarar o mundo desta perspectiva pode mudar a sua vida. Quando você for organizar um evento que envolva a mensagem do Evangelho, não deixe para última hora, não seja negligente, monte uma equipe disposta a trabalhar, planeje-se em todos os detalhes, não subestime a arte, o design, a ordem, nem a estética, eles comunicam muito mais a seu respeito e a respeito de sua comunidade de fé do que você pode imaginar.

Mas podemos ainda ir muito adiante, quando você for arrumar e organizar a cozinha, o guarda-roupa, seus livros, a estante, o quintal, o escritório, quando for decorar um ambiente, fazer uma propaganda, um folheto, um cartaz, um site, um vídeo, quando for consertar a próxima torneira, trocar o próximo chuveiro, organizar seus documentos, quando for fazer aquela pintura em casa, pôr a mesa para o almoço de domingo, lembre-se do Deus a quem você serve e o quão detalhista e caprichoso Ele é. Comece a reparar nos detalhes, nos sabores, nas cores, nas letras, nos tamanhos, nos timbres, nas pequenas coisas feitas com excelência, dê valor a tudo isso. Não relativize o belo, ainda existe e sempre existirá beleza no mundo de Deus. Ele mesmo deu uma incrível capacidade criadora e embelezadora a todos nós, Ele nos fez assim porque Ele é assim, e somos criados a Sua imagem e semelhança. Não jogue isso fora.

Estou falando que a eficácia da mensagem do Evangelho depende destas coisas? Claro que não. O Espírito faz o que quer, como quer, quando quer e do jeito que quer, entretanto, isso não abre precedente para que sejamos desleixados esteticamente. É importante dizer também que nada do que foi apontado aqui precisa necessariamente depender de muito dinheiro, é bem possível sermos organizados e esteticamente comprometidos, dispondo de poucos recursos, a questão tem muito mais a ver com o coração e com a forma de encarar as coisas do que com dinheiro. O ponto é que nós temos um padrão estético a seguir, e o padrão é de altíssimo nível, é o padrão da criação.

É hora de valorizar e encorajar nossos músicos, compositores, fotógrafos, sonoplastas, decoradores, poetas, designers gráficos (estes são muito necessários), artesãos, artistas plásticos, iluminadores, escritores, engenheiros de áudio, pintores, escultores, roteiristas, produtores musicais, enfim, designers e artistas de toda a sorte. Temos de erradicar de nossas concepções aquela ideia tão peculiar aos círculos evangélicos de que no Reino de Deus não existem artistas. Deus não é contra os artistas, pelo contrário, Deus é um deles. O maior de todos eles.

Que o Senhor desperte as igrejas reformadas para este aspecto do Senhorio de Cristo e que possamos glorificá-lo com muito mais fidelidade na esfera da arte, da estética e do design.

Por: Lucas Freitas. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Original: Solenes sonegadores da beleza.