Um apelo ao culto presencial

Dentre as muitas perdas que a pandemia da COVID-19 nos trouxe, uma delas deveria ser sentida de modo especial entre os cristãos.Todos estamos impedidos de repetir, como fazia a nação de Israel a caminho de Jerusalém, quando cantava: Alegrei-me quando me disseram: Vamos à Casa do SENHOR. (Sl 122.1). Milhões de crentes estão agora aquartelados em suas casas, receosos de um inimigo invisível, sem poder congregar, e cultuar ao Senhor apropriadamente nas suas igrejas aos domingos.

Alguns, entretanto, têm se questionado se a tecnologia à nossa disposição não supre esta tarefa de nos trazer o culto, quando não podemos ir até ele. Os apps de vídeo conferência, redes sociais e sites de mídia nos deixam realmente próximos uns dos outros. Será que talvez não deveríamos fazer cultos online, ou até quem sabe ministrar os sacramentos de maneira virtual?

Não, não deveríamos.

Por favor, não me entenda mal. Minha intenção não é recusar os benefícios maravilhosos que a tecnologia tem nos trazido. Dias atrás recebi um vídeo que me emocionou bastante: 48 pessoas, de 14 países diferentes, gravaram suas vozes em suas próprias casas para formar um coral virtual. O resultado é maravilhoso! Os tons estão perfeitamente equalizados e sincronizados na edição, de maneira que é possível quase crer que se trata realmente de um coral de verdade cantando no seu celular.

Quase. Faltam algumas coisas.

Falta a presença real de cada naipe de vozes, falta o ensaio presencial de todos antes da apresentação, faltam os coristas alinhados uns aos outros a espera da ordem do maestro à frente. Quando eu era tenor no coral da minha igreja, muitas vezes eu tapava um ouvido enquanto cantava, pra ouvir não só a minha própria voz, mas também a do meu companheiro ao lado, pra saber se estávamos no mesmo tom. Não dá pra fazer o mesmo quando se está sozinho. A experiência do coral virtual é belíssima, mas não é completa porque não é real, é apenas virtual. Se você duvida do meu argumento, eu lhe pergunto: Você preferiria assistir a final da Copa do mundo no sofá de casa, ou na primeira fila do estádio? Ouvir o CD do seu cantor favorito, ou ir à gravação do show? Seria, por acaso, a pornografia uma relação sexual verdadeira?

A razão para responder “não” a todas essas perguntas é muito simples: somos seres humanos reais, de carne e osso. E ainda que exista alguma discussão sobre a quantidade de “partes” que o homem é feito, não há dúvidas de quais são elas: uma substância material, outra imaterial, e ambas são essenciais no momento do culto. Não é possível dispensar qualquer uma delas quando cultuamos ao Senhor, pois um ser humano não é um corpo inanimado, mas também não é um espírito desencarnado, é uma pessoa individual, ou em uma palavra mais técnica: uma unidade psicossomática. Embora as tecnologias tenham avançado a tal ponto de nos entregar uma qualidade de imagem e vídeo bem próximos do real, transmissões de internet não são seres humanos reais. Por isso não podemos equiparar um culto público a uma reunião via internet.

Ouvi um colega pastor comentar, que se uma igreja quiser fazer um culto online, não haveria problema, pois embora distantes, todos estariam reunidos no mesmo espírito. Mas por que somente “no mesmo espírito”? Por acaso nosso espírito, é mais valioso que o corpo? Isso me parece aquela antiga heresia, o Gnosticismo, que afirmava exatamente isso: o espírito é perfeito, mas a matéria não. Misturando elementos da fé cristã com a filosofia grega, os gnósticos causaram enormes males no primeiro e segundo século, sendo necessário, por exemplo, que os apóstolos reafirmassem que Jesus teve um corpo humano igual a qualquer um de nós (cf. 1Jo 4.1-6 e 2Jo 7-11). [1]

A humanidade de Jesus é um elemento essencial na fé cristã, pois ele precisava tornar-se plenamente homem, para oferecer um sacrifício aceitável ao Pai, pelos nossos pecados, e em nosso lugar (cf. Hb 2. 5-18). O nascimento virginal, vida perfeita e a morte corpórea de Jesus foram o culto perfeito apresentado a Deus, do qual o nosso culto é tão somente uma imitação. Esse é o argumento do autor de Hebreus em 10. 19-25: Temos intrepidez para entrarmos na presença de Deus (v.19), tão somente por causa da morte de Jesus como homem (v.20). A implicação direta do sacrifício cultual de Jesus é clara: Não deixemos de congregar (v. 25).

O Senhor deseja que estejamos presentes de corpo e alma no culto. Aproveitem os recursos que a tecnologia nos dá, mas não ofereça a Deus, menos do que ele deseja de nós. Por isso, “rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional.” (Rm 12.1)


[1] Vale a pena conferir também o ensino das confissões reformadas sobre a pessoa de Cristo em sua humanidade: Confissão de Fé de Westminster cap. VIII, parágrafo 3; Catecismo Maior de Westminster, pergunta 38; Catecismo Menor de Westminster, pergunta 21; Confissão Belga, artigo 19; Catecismo de Heidelberg, perguntas 16, 17; Segunda Confissão Helvética, cap. XI, parágrafo 6, 7.

Por: Cyro Ferreira. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Original: Um apelo ao culto presencial.