Precisamos levar os liberais a sério

Em 2002 John MacArthur pregou uma mensagem na qual disse que o maior problema da Igreja era não saber e não querer distinguir entre um cristão verdadeiro e um falso. Concordo com ele. Todo mundo se considera cristão. Mórmons, Testemunhas de Jeová, espíritas, católico-romanos, liberais, fundamentalistas, ortodoxos e por ai vai. A não ser que sejamos universalistas e reduzamos o Cristianismo à definição de Schleiermacher (“religião é simplesmente a consciência da dependência de Deus”), temos que admitir que nem todos que se dizem cristãos de fato o são.

Uma das obras mais importantes produzidas no calor do debate entre fundamentalistas e liberais no início do séc. XX foi Cristianismo e Liberalismo de J. Gresham Machen (já publicada em português), provavelmente o mais preparado exegeta da frente conservadora na época. A tese de Machen era que a religião resultante do liberalismo simplesmente não era Cristianismo. Criam noutro Deus, usavam outra Bíblia, seguiam outro Cristo e pregavam outro Evangelho.

Machen estava absolutamente correto, mas não foi ouvido. O “meião” das principais denominações pensava que o liberalismo era apenas mais uma corrente da já fragmentada ala protestante do cristianismo. Pensavam que o confronto entre conservadores e liberais era intramuros, duas legítimas facções cristãs duelando por espaço. Hoje, contudo, fica cada vez mais claro que esse confronto ultrapassa os limites do cristianismo. É um conflito de religiões.

Não me entendam mal. Não estou dizendo que todos os liberais vão para o inferno e nem que todos os conservadores vão para o céu. Estou apenas dizendo que aquilo em que o liberalismo teológico acredita é completamente distinto daquilo que o Cristianismo acredita. Já estou vendo gente levantando a mão e dizendo que os liberais é que se consideram o Cristianismo. Eu respondo que não dá, pois eles ainda não chegaram a um acordo sobre quais estórias e ditos de Jesus nos Evangelhos são verdadeiros ou não e, portanto, não podem dizer se o que crêem é Cristianismo ou não.

Temos que levar os liberais a sério e entender muito bem aquilo em que acreditam. Para eles, a verdade evolui, cresce e muda. E não somente ela, mas nosso entendimento da mesma evolui a ponto de certezas anteriores poderem ser substituídas por novas e contraditórias verdades. Assim, as crenças de ontem não servem para hoje. Liberais realmente acreditam que a fé professada pela Igreja Cristã durante dois mil anos está equivocada e ultrapassada, no todo ou em parte. Acreditam sinceramente que é preciso reinventar a Igreja, refazer a teologia dos pés à cabeça, reformular os antigos credos, criar novas formas litúrgicas e adotar novas posturas em relação à ciência, a cultura e as outras religiões. E desse ponto de vista, os maiores inimigos da verdade são os conservadores, os fechados, obtusos, intransigentes e fundamentalistas que se entrincheiraram nas denominações e seminários e teimam em conservar antigas crenças.

O que o liberalismo propõe não é um remendo do Cristianismo. É uma substituição.

Senão, vejamos. O liberalismo teológico crê que a Trindade e a divindade de Jesus Cristo são frutos da invasão da filosofia grega na teologia cristã nascente, que Deus não se revelou de forma proposicional, que talvez ele seja imanente e não mais transcendente, que a Bíblia é apenas o testemunho escrito (e falível) da fé de Israel e da Igreja primitiva, que Paulo deturpou o cristianismo simples de Jesus e dos Doze apóstolos e inventou a doutrina da justificação pela fé em Cristo. Paulo também inventou que Jesus morreu pelos nossos pecados e ressuscitou fisicamente de entre os mortos. Acreditam que no momento em que a Igreja Cristã começou a elaborar credos e confissões ela se desviou do cristianismo simples do Jesus histórico e nos deu um Cristo da fé, processo que já teria começado com os apóstolos, especialmente Paulo. Acreditam que a Igreja Cristã se perdeu completamente na interpretação da Bíblia através dos séculos e que somente com o advento do Iluminismo, do racionalismo e das filosofias resultantes é que se começou a analisar criticamente a Bíblia e a teologia cristã, expurgando-as dos alegados mitos, fábulas, lendas, acréscimos, como os mitos da criação e do dilúvio, personagens inventados como Adão e Moisés, etc.

Ainda que nem todos os pontos acima sejam professados por todos os liberais, eles expressam razoavelmente o que o liberalismo em geral acredita. E como se pode ver, liberalismo não é Cristianismo, apesar de usar sua forma e linguagem.

Os liberais acreditam que sua missão é permanecer nas igrejas e seminários e lutar por mudanças. Eles têm uma missão, um sonho, um ideal. O messianismo liberal tem como alvo iluminar os ignorantes presos nas trevas da tradição e libertar a Igreja dos obtusos, obscurantistas e inimigos do progresso da verdade. Lutarão até o fim para isso. Não se sentem compelidos a sair de suas denominações. Acham legítimo usar os recursos delas nessa cruzada santa. Até porque, como já disse em outro post, não têm outra forma de suporte ou sustento.
Muitos evangélicos de hoje não conseguem ver a diferença entre liberalismo e Cristianismo. A razão, em parte, é que os liberais continuam a usar as estruturas eclesiásticas tradicionais e o vocabulário cristão tradicional, embora com outro sentido. Outra razão é a falta de convicções doutrinárias do evangelicalismo brasileiro, minada pelo pragmatismo e relativismo de nossa época.

Precisamos levar os liberais a sério. Isso significa reconhecer claramente o grande abismo que separa o que eles crêem do Cristianismo.


Texto publicado originalmente em O Tempora, O Mores, em 2006.