Sobre espiritualidade, místicos e neoliberais

A espiritualidade, tema antigo da praxis católica, tornou-se ultimamente um assunto da agenda protestante. Quando ouvi pela primeira vez evangélicos propondo a espiritualidade, fiquei curioso, embora não muito interessado. A proposta passava pelos escritos e experiências dos místicos do período medieval e eu não via o que podíamos aprender deles nessa área. As justificativas apresentadas para a busca de uma comunhão maior com Deus pareciam ter algum fundamento. Criticou-se a superficialidade da piedade cristã moderna, o desinteresse atual da Igreja por exercícios espirituais como meditação e contemplação, e a influência nefasta daquele tipo de teologia sistemática tradicional que faz uma abordagem mecanicista da realidade e não dedica espaço para a oração. Mas será que os padres místicos medievais poderiam servir de modelo para o avivamento espiritual tão necessário em nossos dias?

Mais tarde, ouvi a mesma proposta vinda de gente que defendia o diálogo com o catolicismo e a Igreja Ortodoxa via misticismo medieval, que funcionaria como uma espécie de ponte para esse diálogo. Depois me inteirei que vários teólogos católicos modernos estão afinados no mesmo discurso. E quando finalmente ouvi neoliberais se dizendo místicos e espirituais, e defendendo a mesma coisa, fiquei de orelha em pé. Por que neoliberais, que acreditam que a verdade evolui e muda, que são críticos ferozes de tudo que é antigo na Igreja, agora resolveram beber no misticismo medieval?

Preciso esclarecer, de saída, que não estou dizendo que todo mundo que defende aspectos da espiritualidade medieval para hoje é neoliberal. Preciso também esclarecer que, a princípio, estou aberto para aprender com os cristãos do passado, ainda que sejam católicos romanos medievais. Também quero acreditar que os atuais proponentes evangélicos da espiritualidade estão examinando tudo e retendo apenas o que é bom. Não sei, contudo, como conseguirão separar a mística medieval da teologia medieval, eivada do catolicismo que foi denunciado pelos Reformadores.

Mas o meu objetivo nesse post é o interesse dos neoliberais no misticismo medieval. Algo não está batendo direito, a não ser que tenham encontrado no misticismo dos monges semelhanças com a espiritualidade em que acreditam.

A primeira pode ser o foco na experiência, a ausência da Bíblia e o consequente esvaziamento de conteúdo teológico. Sei que alguns místicos citavam a Bíblia, mas vai uma distância muito grande entre fazer isso e desenvolver uma espiritualidade que seja decorrente da teologia bíblica. A piedade ascética certamente não era moldada pelas Escrituras, a começar pelos votos de abstinência, a auto-flagelação, o isolamento social e uma vida dedicada à contemplação. Para não falar na busca de Deus de forma direta. A mística medieval, com raras e notáveis exceções, é voltada para a experiência interior, para a busca do êxtase, do mistério, de uma comunhão com Deus que não tenha troca de conteúdos, onde o homem não fala teologicamente e Deus também não responde teologicamente. A mesma coisa ocorre com os herdeiros pós-modernos de F. Schleiermacher, o pai do liberalismo protestante. Para ele a religião consistia no senso interior de dependência de Deus, não na aderência a qualquer conteúdo doutrinário. Na mesma linha, Paul Tillich, influenciado pelo místico Meister Eickhart, disse, “se a oração é trazida ao nível de uma conversa entre dois seres, é blasfema e ridícula” (Teologia Sistemática, I, 112). Os neoliberais, ao final, também concordam que o âmago da religião é a experiência individual direta com o inefável. E assim, encontraram nos monges suas almas-gêmeas.

Uma segunda semelhança aparente entre a espiritualidade medieval e a neoliberal é a teologia natural. O Deus que desejam encontrar em suas experiências é aquele de quem podem aprender pela natureza ou dentro de si mesmos. A contemplação meditativa e a comunhão mística com a natureza, seus rios, montanhas, florestas e vales (quem não lembra do “irmão sol” e da “irmã lua” de Francisco de Assis?) colabora para a mística medieval, que nesse ponto não somente é similar à religiosidade neoliberal, mas também à espiritualidade pagã, conforme um post de Mauro Meister.

Terceira, a abertura para novas revelações. Grande parte das experiências dos místicos medievais consistia em visões ou contemplações diretas de Deus. A famosa mística medieval, a freira beneditina Hildegard (1098-1179), por exemplo, teve visões de Deus desde os três anos, nas quais Deus revelou-lhe a natureza dele e do universo. Sua obra Scivias, um clássico do misticismo medieval, relata essas visões. Já o famoso Inácio de Loyola, depois de ler o livro Vida de Cristo do monge místico Ludolfo da Saxônia (séc. XIV), experimentou visões místicas de Cristo e da virgem Maria. A própria Teresa de Ávila, ícone da espiritualidade medieval, narra em Castelo Interior como, em uma série de experiências místicas, Jesus veio a ela pessoalmente, a partir das quais ela começou a amá-lo apaixonadamente. Neoliberais não têm visões, mas acreditam que a verdade sempre está evoluindo, que Deus está sempre revelando coisas novas à Igreja. Em ambos os casos, místicos e neoliberais buscam a Deus sem a mediação das Escrituras.

A quarta semelhança pode ser o messianismo não-conformista. Muitos místicos se isolaram em protesto contra a corrupção da Igreja de sua época. Eles queriam reformá-la e livrá-la de suas corrupções. Inconformados, retiraram-se em busca de maior comunhão com Deus. O misticismo deles vem dessa vida de isolamento, dedicado à contemplação, fechados em seus mosteiros ou perdidos em cavernas e desertos. Os neoliberais também são messiânicos e se julgam comissionados a reformar por inteiro a Igreja de seus dias, embora adotem a tática de ficar dentro dela, em vez de sair.

Uma quinta semelhança é a crença última na salvação por obras. O misticismo medieval era ascético – algo bastante diferente da doutrina paulina da justificação pela fé somente. Sua busca da espiritualidade nascia da crença medieval de que o homem colaborava ativamente para a sua salvação e ascensão a Deus. Os neoliberais, da mesma forma, acreditam que a salvação não será pelo sacrifício vicário de Cristo, mas pela evolução pessoal do homem.

A última semelhança é o ateísmo linguístico. Muitos místicos seguiram a idéia de Plotínio de que Deus está acima da razão e das palavras e que só pode ser conhecido quando alguém transcende esse mundo e se torna um com ele, numa união mística. Não se pode falar sobre Deus e nem se escrever sobre ele. De maneira incrivelmente semelhante, o neoliberalismo rejeita a proposicionalidade da revelação bíblica e insiste que não se pode falar de Deus ou se escrever sobre ele de forma significativa (é por isso que neoliberais acabam se tornando poetas, pois só lhes resta a poesia como forma de comunicação). Uma linguagem onde não se pode falar sobre Deus, ou o ateísmo linguístico, une as duas espiritualidades.

Não me admira que os neoliberais tenham tanto interesse nos monges. Afinal, são pássaros da mesma plumagem. E não é de estranhar que os Reformadores rejeitaram em geral o misticismo medieval. Calvino e Lutero, tinham profundas diferenças com relação aos conceitos dos místicos sobre Deus, o homem e a salvação.

Como reformado calvinista, ainda tenho escrúpulos quanto a buscar modelos de espiritualidade em místicos ascetas medievais, cuja teologia estava impregnada de conceitos errados sobre essas coisas. Se eles oravam mais, jejuavam mais e contemplavam mais, não me impressiona. Como Calvino, digo que deveriam trabalhar mais para não viver às custas dos outros, enquanto ficavam contemplando, meditando e cantarolando.

Creio que o misticismo bíblico – união com Cristo realizada na sua morte, vivida pelo Espírito, celebrada na Ceia e vivenciada pelo uso dos meios de graça – continua sendo o padrão para os cristãos. O que falta em muitos é a disposição para vivê-lo.


Texto publicado originalmente em O Tempora, O Mores, em 2006.