O cabeça da mulher

Qual é o real papel da autoridade do marido na Bíblia?

Nos círculos acadêmicos e nos debates do Twitter, cristãos discutem sobre a relação entre cônjuges, sobre complementarismo vs. igualitarismo. O que significa que o marido é “cabeça da mulher”? Diante de tantas manifestações de machismo e opressão da mulher, o que a Bíblia fala sobre o real papel da liderança do marido?

O perigo do abuso de autoridade dos maridos

Primeiro, é importante não nos esquecermos que, pelo menos em Efésios 5, o peso da argumentação não repousa sobre “mulheres sejam submissas ao seu próprio marido”. Isso era já, de certa forma, uma realidade cultural.[1] Paulo argumenta mais sobre o papel dos maridos:[2] “amai vossa mulher, como também Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela”.

Há um motivo para isso. Autoridade na mão de pecadores rapidamente se torna em opressão (falta de amor, provocação à ira e maus tratos no contexto de Efésios 5.22–6.9). Então, precisamos aprender com Deus a como usar a autoridade que ele concedeu.

Como Deus usa sua autoridade

Vemos, inicialmente, Deus utilizando sua autoridade em Gênesis 1. A terra era sem forma e vazia. Deus, exercendo poder espiritual e verbal, fazendo devidas separações e atribuições, em seis dias dá estrutura à terra para receber vida e enche a terra de vida. Após, Deus avalia e abençoa a sua boa criação. Percebemos já no primeiro capítulo de Gênesis que o uso divino de autoridade envolve abençoar aquilo sobre o que se domina. É trazer ordem e vida — beleza — sobre os que lhe estão submissos.

Gênesis 1 e 2 também descrevem como homem e mulher recebem a bênção de Deus para exercer esse tipo de “sujeição” e “domínio”. Não uma opressão sobre a Criação, mas uma liderança abençoadora que expande o jardim (o ápice de ordem e vida).

Como a autoridade foi distorcida em autoritarismo

Com a Queda, o pecado contamina o nosso uso de autoridade. Adão não protege sua esposa, mas a deixa exposta ao perigo, tanto junto à serpente, quanto diante do Senhor. Caim em vez de cuidar, assassina seu irmão mais novo. Lameque e os “filhos de Deus” acumulam mulheres segundo seus desejos. A violência e maldade se multiplicam na terra. Moisés alerta contra reis que exerceram sua autoridade para benefício próprio.

Mas no meio desse cenário terrível, um homem segundo o coração de Deus, inspirado pelo Espírito do Senhor, afirma:

“Aquele que domina com justiça sobre os homens, que domina no temor de Deus, é como a luz da manhã, quando sai o sol, como manhã sem nuvens, cujo esplendor, depois da chuva, faz brotar da terra a erva.” (2Sm 23.2-4)

O correto uso da autoridade, debaixo do temor do Senhor, é abençoadora. Ela traz condições favoráveis para que outros possam florescer. Mas até mesmo o rei Davi falhou ao usar sua autoridade para usurpar a esposa de um de seus soldados mais leais. O resultado foi maldição sobre a família real.

Como Cristo restaura o correto uso da autoridade

Esse ungido apontava para o Cristo, que trouxe o exemplo perfeito de liderança servil. O Filho eterno, digno de toda honra e glória, poderia vir de forma justa e demandar a submissão e adoração de todos nós. Mas não é isso que ele faz. O “Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mt 10.45).

Jesus ensinou que seus seguidores não deveriam ser chamados como os reis e poderosos que dominam e exercem autoridade sobre o povo para serem exaltados como benfeitores. Antes, eles não deveriam brigar por reconhecimento, mas “o maior entre vós seja como o menor; e aquele que dirige seja como o que serve” (Lc 22.26).

Além de ensinar, Cristo também exemplificou. Diante da angustiante sombra da morte, Jesus escolheu amar seus discípulos até o fim, lavando seus pés (Jo 13.1-17) e servindo à mesa (Lc 22.27). Essa atitude servil de Cristo não diminui sua autoridade. Ele continua a ser Senhor e Mestre, e fazemos bem em reconhecê-lo assim (Jo 13.14). Essa atitude servil de Cristo resgata o que significa exercer autoridade: amar de forma que haja mais ordem e vida naqueles que estão submissos à sua liderança. Esse é o belo paradoxo da liderança cristã: é estar posicionalmente acima de alguém, tendo autoridade sobre a sua vida, mas usar seu domínio (no sentido bíblico positivo e não cultural negativo) de forma servil para o benefício do liderado.

Como o marido deve ser cabeça da mulher

Quando chegamos em Efésios 5, o apóstolo Paulo não instrui os maridos a dominarem suas mulheres. Isso seria o oposto esperado ao falar da submissão da mulher, não? Antes, o apóstolo corrige o entendimento do que significa ser cabeça da mulher. Ele traz o paradoxo da liderança. De forma bem chocante para a cultura da época, apresenta Cristo como mais do que um herói que dá a vida por sua amada: um servo que lava a sua igreja (função normalmente de servos e mulheres). Liderança heroica, sacrificial e servil.[3]

Paulo também ilustra o que significa ser cabeça da mulher com a realidade bem notória do que é a cabeça para o corpo. A cabeça exerce autoridade e comanda o corpo, mas não para destruição do próprio corpo, pois isso seria loucura, seria prejudicar a si mesma. A cabeça lidera o corpo para o cuidado e nutrição do corpo, e por consequência de si mesma. De forma similar, Cristo, o cabeça, cuida da sua igreja e alimenta os membros do seu corpo.[4]

A relação cabeça-corpo traz ao mesmo tempo a ideia de interdependência e autoridade. A mulher, criada igualmente à imagem de Deus, é tirada do lado do homem e o complementa como aliada e ajudante. É sua metade. Assim, no Senhor, “nem a mulher é independente do homem, nem o homem, independente da mulher” (1Co 11.11)

Essa complementaridade, entretanto, não anula a autoridade do marido. A interpretação apostólica é que “Cristo [é] o cabeça de todo homem, e o homem, o cabeça da mulher, e Deus, o cabeça de Cristo” (1Co 11.3). Ao olhar a ordem da criação, Paulo afirma que “a mulher é a glória do homem”, porque “o homem não foi feito da mulher, e sim a mulher, do homem” e porque “também o homem não foi criado por causa da mulher, e sim a mulher, por causa do homem” (1Co 11.7-9).

Como podemos observar, interdependência e autoridade são expostas lado a lado. Se só pensarmos em autoridade, esqueceremos que opressão é ódio a si mesmo. Se só pensarmos em interdependência, negaremos a iniciativa servil da cabeça de alimentar o corpo. É essa junção, esse paradoxo da liderança que de forma bela testemunha da relação de Cristo com a sua igreja. Assim, o marido deve viver esse paradoxo mostrado na liderança de Cristo. O marido possui autoridade do lar, como cabeça da mulher, da esposa e dos filhos, mas é o lavador de pés da família. Isto é ser, biblicamente, o cabeça da mulher.

Como é a sua liderança no lar?

Marido, como está o paradoxo da liderança em seu casamento? Fotos antigas mostram somente o pai da família assentado. A ele somente era reservado o lugar mais confortável — a cadeira do papai. E certamente não há nada de errado em o marido ser honrado — aliás, é um mandamento bíblico.

Contudo, na foto de Cristo com a sua igreja não vemos ele sentado e todos de pé — não durante sua primeira vinda de humilhação, que é o padrão para os maridos. O retrato da liderança de Cristo é ele ajoelhado e todos sentados, enquanto ele lava os pés de sua família. É o Senhor se colocando como servo para que haja mais ordem e vida, mais beleza em sua Noiva. É Jesus entregando a sua vida para fornecer as condições para que seus súditos possam germinar, brotar e crescer. É o Rei-servo, cheio de autoridade, humilde em serviço. É esse o nosso retrato?

Eu confesso que, muitas vezes, esse não foi o retrato de minha atitude em meu lar. Um livro que me ajudou muito foi “Homens de Verdade”, de Richard D. Philips. O argumento dele é que Adão é colocado no jardim para cuidar e guardar e que isso se estende para todas os relacionamentos e atividades do homem. No livro, o autor aplica isso à família, esposa, filhos, ao trabalho, aos amigos, à igreja. É um bom livro para você que quer se aprofundar no assunto.


[1] Seria tolice, entretanto, ignorar o desejo de algumas mulheres de usurpar autoridade — cf. 2Tm 2.12.

[2] No grego, mais do que o dobro de palavras.

[3] Alguns entendem que o amor servil de Cristo ilustra uma submissão mútua entre marido e mulher anunciada no versículo 21. A Escritura em nenhum outro lugar diz claramente para o marido se submeter à esposa (cf. 1Co 14.34; Cl 3.18; Tt 2.5; 1Pe 3.1-6). Assim, é melhor interpretar uma passagem mais complicada à luz das mais simples. Além disso, todas as relações do código familiar de Efésios 5 e 6 retratam diferenças de autoridade. Além disso, é necessário definir o que é submissão. Se envolve somente serviço, sim, Cristo (e maridos) se coloca em posições de serviçais. Mas como João 13.14 bem aponta, isso não anula a diferença de autoridade. Pelo contrário, ressalta a beleza do Rei-servo. O uso de submissão no Novo Testamento tem relação com posições de autoridade, e é mais utilizado para Deus e suas criaturas, Cristo e sua exaltação e maridos e mulheres:

  • Deus — Rm 8.7; 8.20; 10.3; 1Co 15.27-28; Hb 12.9; Tg 4.7
  • Cristo — 1Co 15.27-28; Ef 1.22 Fp 3.21; Hb 2.5, 8; 1Pe 3.22;
  • Discípulos e demônios — Lc 10.17, 20;
  • Governadores e súditos — Rm 13.1, 5; Tt 3.1 1Pe 2.13;
  • Maridos e mulheres — 1Co 14.34; Ef 5.22, 24; Cl 3.18; Tt 2.5; 1 Pe 3.1, 5
  • Pais e filhos — Lc 2.51;
  • Senhores e servos — Tt 2.9; 1Pe 2.18;
  • Mais velhos e jovens — 1Pe 5.5;
  • Profetas e espírito profético — 1Co 14.32;
  • Mútua na igreja e à líderes – 1Co 16.16; Ef 5.21.

[4] “Cabeça” inclui noções de provisão, mas não exclui de autoridade. Paulo coloca essas duas questões juntas em Efésios 1.22-23 (cf. 1Co 11.2-16, esp. v. 10; Cl 2.10). Aliás, como argumentado neste artigo, estão interrelacionadas. Cabeça é o exercício de autoridade para o benefício do corpo.

Autor: VINICIUS MUSSELMAN. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Revisão e Edição por Vinicius Lima.