Um blog do Ministério Fiel
Franklin Ferreira – Entrevista sobre João Calvino
Íntegra da entrevista que Franklin Ferreira concedeu à Revista Igreja, publicada em fevereiro/março de 2009, devido à celebração dos 500 anos do nascimento de João Calvino.
Como situar Calvino na história do cristianismo? Como reformador da fé, como sintetizar seu papel?
João Calvino é considerado um dos mais importantes teólogos da história da cristandade. Somente outros três homens tiveram impacto parecido: Agostinho, Tomás de Aquino e Martinho Lutero. Mas, em termos de genialidade, profundidade, extensão, os dois personagens mais influentes da longa história da igreja são, sem sombra de dúvida, Agostinho e Calvino. As formulações teológicas de ambos foram de longo alcance, com implicações para todas as esferas do pensamento, indo além da influência a uma determinada denominação cristã. Da mesma forma que católicos e evangélicos são devedores a Agostinho, a influência de Calvino se estende a episcopais, presbiterianos, congregacionais, batistas e, mais recentemente, pentecostais e carismáticos! Além disso, quando Calvino surge no cenário europeu, o movimento de reforma estava dividido e sob intensa pressão do catolicismo. E antes de sua morte a fé evangélica se solidificou e se tornou um movimento internacional, alcançando, a partir da Suíça, a França, norte da Itália, centro da Alemanha, Holanda, Inglaterra, Escócia, Espanha, Hungria, Polônia e até o Brasil – para onde ele enviou os primeiros missionários a chegarem às Américas, em 1555.
Calvino foi um gigante por várias razões: por sua ênfase na autoridade e prioridade das Escrituras (sola Scriptura), a solidificação do método histórico-gramatical de interpretação bíblica, sua preocupação com a estrutura da igreja visível, caracterizada pela pregação da Palavra e correta administração dos sacramentos, pela transformação ocorrida em Genebra, que se tornou o modelo de uma república cristã para toda Europa e principalmente por sua imensa contribuição literária. Esta engloba comentários bíblicos sobre quase todo o Novo Testamento e grande parte do Antigo Testamento, milhares de sermões, tratados polêmicos, cartas e escritos litúrgicos e catequéticos. Mas sua grande obra foi a Instituição da Religião Cristã (ou Institutas), que seria “uma chave abrindo caminho para todos os filhos de Deus num entendimento bom e correto das Escrituras Sagradas”. Esta obra é tão importante que recentemente foi publicada pela UNESP, numa ótima tradução. Em resumo, a importância de Calvino é tamanha para a fé cristã e para o ocidente que é reconhecida inclusive em círculos seculares.
Por que a doutrina da predestinação se tornou tão forte em sua teologia?
Na verdade, se criou uma caricatura popular do reformador de Genebra, como se sua única contribuição ao pensamento cristão tivesse sido sistematizar a doutrina da predestinação. Isso está bem longe da verdade. Agostinho, Anselmo, Tomás de Aquino e Thomas à Kempis, antes de Calvino, escreveram sobre esse tema. Agostinho legou à cristandade uma série de tratados refutando a heresia pelagiana, onde esse assunto é desenvolvido e detalhado magistralmente. Lutero escreveu um tratado imenso e virtualmente irrefutável sobre essa doutrina (Da vontade cativa), antes mesmo de Calvino. É quase decepcionante ler sobre a predestinação nos escritos de Calvino, pois não há originalidade alguma no que ele registrou sobre a predestinação. Por exemplo, nas Institutas, o debate sobre a predestinação ocupa pouco espaço. Ela não está na seção onde comumente é abordada nos livros de teologia sistemática, a providência de Deus, mas se encontra no fim do debate sobre a obra do Espírito Santo na salvação. Na verdade, são os últimos quatro capítulos dessa seção (21-24). O único capítulo sobre oração (20), nessa mesma seção, é maior que estes quatro capítulos juntos! E o surpreendente é que o enfoque dessa doutrina é devocional e pastoral; não há um único traço de especulação sobre a mesma. Nos comentários, por exemplo, Calvino trata do tema quando o texto bíblico exige, como em seus comentários das epístolas de Romanos, Gálatas e Efésios. Como alguns eruditos têm sugerido, me parece que o tema central da teologia de Calvino é a união mística do fiel com Cristo.
Como era João Calvino como cidadão?
Para começar, Calvino era cidadão francês, morando na cidade de Genebra. Isso é importante enfatizar, pois ajuda a colocar o reformador em contexto. Supõe-se que ele foi uma espécie de ditador de Genebra – outra tosca caricatura recorrente. Como ele não era cidadão genebrino, ele não tinha influência alguma sobre as decisões acerca do ordenamento civil da cidade e nem tinha direito de voto em decisões políticas ou eclesiásticas no conselho municipal. Toda sua influência foi eminentemente espiritual, especialmente por meio de sua pregação e escritos. E esta influência se estendeu a todas as esferas da cidade. Por exemplo, Genebra se tornou o primeiro lugar na Europa a ter leis especiais que proibiam: jogar fezes, urina e lixo nas ruas; fazer fogo ou usar fogão num cômodo sem chaminé; ter uma casa com sacadas ou escadas sem que as mesmas tenham grades de proteção; permitir que as parteiras se deitem nas camas com os bebês recém-nascidos (a lei visava proteger o nenê da contaminação); alugar uma casa sem o conhecimento da polícia; sendo comerciante, cobrar além do preço permitido ou roubar no peso e também (e isso se estendia aos produtores), estocar mercadorias para fazê-la faltar no mercado e assim encarecê-la.
O que as pessoas não sabem a respeito de Calvino?
Talvez a maior dificuldade em se aproximar de Calvino reside na falta de empatia entre o leitor e o escritor. Diferente da maioria dos escritores anteriores, como Agostinho e Lutero, para ficar em dois exemplos, o reformador francês fala muito pouco de si mesmo. Até mesmo reconstruir a conversão de Calvino é difícil. Ele dedica no máximo umas duas linhas ao tema, em seu comentário ao livro dos Salmos. O foco de Calvino, como pregador e escritor é o texto bíblico. O que deveria ser uma virtude – a ênfase na Escritura – torna-se um entrave, para a maioria dos leitores. Então, a imagem que fica de Calvino é que ele foi uma pessoa fria, que escreveu sobre predestinação e comandou Genebra com mão de ferro. Só que, como mencionado acima, esta caricatura está longe da realidade. Suas cartas são forte exemplo do caráter modesto, simples e desprendido de Calvino. E também da lealdade que ele devotava a seu grande círculo de amizades. Ele escreveu cartas para colegas reformadores (Farel, Viret, Melanchthon, Bullinger), reis e príncipes (Eduardo VI e Lady Jane Grey, da Inglaterra, Sigismundo Augusto, da Polônia, Duque René de Ferrara e Almirante de Coligny, da França), igrejas perseguidas e cristãos presos, pastores, vendedores de livros cristãos e mártires à espera da sentença. Por exemplo, a carta que ele escreveu a um grupo de presos em Lyon, em 1553, é um forte e comovente testemunho dos interesses pastorais do reformador de Genebra.
Como o calvinismo influenciou as estruturas sociais?
Poucas formulações do pensamento ocidental tiveram tanto impacto sobre a nossa cultura quanto os escritos de Calvino, preparados em virtual luta para submeter toda existência ao comando do Deus que se revela nas Escrituras. Por exemplo, a idéia de um governo republicano e representativo, onde se tem a alternância do poder, e onde o povo está ligado por um pacto, foi introduzida na cultura ocidental por meio de Calvino. Todos os escritores que trataram do pacto social escreveram baseados em suas percepções políticas. Theodore Beza, George Buchanan, Johannes Althusius, Samuel Rutherford – todos eles dependiam dos escritos do reformador francês. E deve-se notar que esses escritores cristãos estavam na vanguarda dos debates políticos nos séculos XVI e XVII. Por exemplo, a idéia do cruzamento fiscalizador entre os poderes (checks and balances) já estavam sendo debatidas nos Estados Unidos em meados do século XVIII por John Witherspoon, exercendo profunda influência sobre James Madison, autor da constituição daquele país. A idéia do voto distrital (um dos pilares dos países mais desenvolvidos do mundo ocidental) também depende em parte dos insights de Calvino. A primeira defesa da liberdade de imprensa e a primeira deposição de um rei tirano, e mesmo sua execução por alta-traição, ocorreram na Inglaterra no século XVII, em círculos fortemente influenciados pelo pensador francês. A revolução americana, que atingiu seu auge em 1776, de onde surgiu a mais antiga e duradoura democracia do ocidente, também foi fruto da influência do pensamento de Calvino. Todos os capelães do Exército Continental eram presbiterianos, sendo que 2/3 dos soldados eram presbiterianos. Conta-se que o rei George III, da Inglaterra, no auge da rebelião nas treze colônias, chamou-a de “aquela pequena rebelião presbiteriana” e depois afirmou que “aqueles malditos presbiterianos estão por trás disso, eles sempre desafiam a monarquia, não importa de onde eles venham”. A ditadura comunista na Romênia caiu em 1989, em grande medida por conta das pregações do pastor reformado László Tőkés para sua comunidade, em Timişoara. Em outras palavras, em países influenciados pelo pensamento calvinista não surgirão ditadores, nem nas esferas política muito menos nas eclesiásticas. Isto é história. Também podemos mencionar que, em alguma medida, a ética protestante do trabalho, com as ênfases na vocação, frugalidade, disciplina, santidade do trabalho e a ênfase nos estudos seculares, também são legado do grande reformador.
O que sua igreja pretende fazer este ano para homenagear Calvino?
Sirvo hoje na Editora Fiel, que tem mais de 40 anos de história no Brasil. Entendemos que a melhor forma de homenagear o grande reformador é publicando suas obras no país. Além da UNESP, a editora Cultura Cristã lançou duas primorosas edições das Institutas (1541 e 1559). Então, em parceria com o Reverando Valter Graciano Martins, ministro da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), estamos reeditando alguns comentários que foram anteriormente lançados, e no decorrer desse ano estaremos lançando comentários e tratados ainda inéditos em língua portuguesa. A igreja batista da qual eu sou membro também está planejando um encontro em agosto para celebrar os 500 anos do nascimento desse importante pensador francês. Mas, no fim, não iremos homenagear o reformador francês, mas Jesus Cristo, o mestre de Calvino.
Por Franklin Ferreira. Cedido gentilmente para ser postado no Voltemos ao Evangelho.