Franklin Ferreira – O uso dos Salmos na devoção cristã (1/3)

Durante quase dois mil anos, os Salmos foram centrais para a devoção da igreja cristã, ensinando os fiéis a orar, em resposta ao Deus que se revela, uma confissão e glorificação ao Deus trino, criador, redentor e restaurador. Deste modo, “quando abraçamos Salmos, juntamo-nos a um amplo grupo de pessoas que por quase trinta séculos tem baseado seus louvores e orações nessas palavras antigas. Reis e camponeses, profetas e sacerdotes, apóstolos e mártires, monges e reformadores, executivos e donas de casa, professores e cantores populares – para todos esses e para uma multidão de outros, Salmos tem sido vida e respiração espiritual”.1 Como Eugene Peterson escreve, “não existe outro lugar em que se possa enxergar de forma tão detalhada e profunda a dimensão humana da história bíblica como nos Salmos. A pessoa em oração reagia à totalidade da presença de Deus, partindo da condição humana, concreta e detalhada”. Só que, por volta da primeira metade do século dezenove, com o aparecimento dos métodos críticos de estudos bíblicos, os salmos perderam sua centralidade na devoção cristã. Deixaram de ser a escola de oração que dava forma à oração dos fiéis, em sua resposta ao Deus que se revela. Passaram a ser vistos, na avaliação de Peterson, como a piedade deteriorada de uma religião desgastada.2

1. Os Salmos e a oração

A escola que Israel e a Igreja recorreram para aprender a orar foram os Salmos, que, junto com Isaías, foi o livro mais citado por Jesus e os apóstolos no Novo Testamento, inclusive como apoio de doutrinas centrais da fé cristã. Para os primeiros cristãos, a ordem era: “Enchei-vos do Espírito, falando entre vós com salmos” (Ef 5.18-19). Logo, estes, “como seus antepassados judeus, ouviram a palavra de Deus nesses hinos, queixas e instruções e fizeram deles o fundamento da vida e do culto”.3

Os salmos eram declarações de relacionamento entre o povo e seu Senhor. Pressupunham a aliança entre ambos e as implicações de provisão, proteção e preservação dessa aliança. Seus cânticos de adoração, confissões de pecado, protestos de inocência, queixas de sofrimento, pedidos de livramento, garantias de ser ouvido, petições antes das batalhas e ações de graças depois delas são, todas expressões do relacionamento ímpar que tinham com o único Deus verdadeiro. Temor e intimidade combinavam-se no entendimento que os israelitas tinham desse relacionamento. Eles temiam o poder e a glória de Deus, sua majestade e soberania. Ao mesmo tempo protestavam diante dele, discutindo suas decisões e pedindo sua intervenção. Eles o reverenciavam como Senhor e o reconheciam como Pai.4

Na igreja primitiva e durante a reforma protestante, quando um pastor queria ensinar sua congregação sobre a oração, pregava nos Salmos. Nos séculos IV e V, Atanásio de Alexandria enfatizou que cada Salmo “está composto e é proferido pelo Espírito”, sendo o “um espelho no qual se refletem as emoções” de nossa alma, onde “podemos captar os movimentos da nossa alma e nos faz dizer como provenientes de nós mesmos, como palavras nossas, para que, trazendo à memória nossas emoções passadas, reformemos a nossa vida espiritual”.5 Ambrósio de Milão, que introduziu o canto dos salmos no culto público no Ocidente, chamou-os de “um tipo de ginásio para ser usado por todas as almas, um estádio da virtude, onde diferentes exercícios são praticados, dentre os quais se podem escolher os mais adequados treinamentos para se alcançar a coroa”.6 Agostinho de Hipona, que pregou todo o livro dos Salmos para sua congregação, chamou-os de “escola”, “espelho” e “remédio”, “cantados no mundo inteiro”.7 Quando sua última doença o derrubou, ele pediu aos seus irmãos que fixassem nas paredes de sua cela cópias em letras grandes dos salmos penitenciais (Salmos 6, 32, 38, 51, 102, 130 e 143), para que ele os lesse continuamente.

No século XVI, Martinho Lutero afirmou que o livro dos Salmos “não coloca diante de nós somente a palavra dos santos, (…) mas também nos desvenda o seu coração e o tesouro íntimo de suas almas”, onde aprendemos a “falar com seriedade em meio a todos os tipos de vendavais”, e que o saltério “faz promessa tão clara acerca da morte e ressurreição de Cristo e prefigura o seu Reino, condição e essência de toda a cristandade – e isso de tal modo que bem poderia ser chamado de uma ‘pequena Bíblia’”. Ele também afirmou: “É muito benéfico ter palavras prescritas pelo Espírito Santo, que homens piedosos podem usar em suas aflições”.8 Em seu leito de morte, ele recitava continuamente: “Nas tuas mãos, entrego o meu espírito; tu me remiste, SENHOR, Deus da verdade” (Sl 31.5). Por seu lado, João Calvino, que comentou todo o livro de Salmos, escreveu:

Tenho por costume denominar este livro – e creio não de forma incorreta – de ‘Uma anatomia de todas as partes da alma’, pois não há sequer uma emoção da qual alguém porventura tenha participado que não esteja aí representada como num espelho. Ou melhor, o Espírito Santo, aqui, extirpa da vida todas as tristezas, as dores, os temores, as dúvidas, as expectativas, as preocupações, as perplexidades, enfim, todas as emoções perturbadas com que a mente humana se agita. (…) A genuína e fervorosa oração provém, antes de tudo, de um real senso de nossa necessidade, e, em seguida, da fé nas promessas de Deus. É através de uma atenta leitura dessas composições inspiradas que os homens serão mais eficazmente despertados para a consciência de suas enfermidades, e, ao mesmo tempo, instruídos a buscar o antídoto para sua cura. Numa palavra, tudo quanto nos serve de encorajamento, ao nos pormos a buscar a Deus em oração, nos é ensinado neste livro.9

No século XVII, o puritano Lewis Bayly, ao recomendar o cântico dos salmos pelas famílias cristãs, afirma: “Cantem para Deus com as próprias palavras de Deus”. E o uso do saltério deveria ter este alvo: “E faça uso frequente deles, para que as pessoas possam memorizá-los mais facilmente”. Então, ele oferece a sugestão do uso dos seguintes salmos para promover a piedade em família, nos momentos de oração e devoção:

De manhã, os Salmos 3, 5, 16, 22 e 144. De noite, os Salmos 4, 127 e 141. Implorando misericórdia depois de ter cometido pecado, os Salmos 51 e 103. Na doença em períodos de dura provação, os Salmos 6, 13, 88, 90, 91, 137 e 146. Quando o crente for restaurado, os Salmos 30 e 32. No dia de santo repouso semanal, os Salmos 19, 92 e 95. Em tempos de alegria, os Salmos 80, 98, 107, 136 e 145. Antes do sermão, os Salmos 1, 12, 147 e a primeira e a quinta partes do Salmo 119. Depois do sermão, qualquer Salmo relacionado com o principal argumento do sermão. Na Ceia do Senhor, os Salmos 22, 23, 103, 111 e 116. Para inspirar consolo e tranquilidade espiritual, os Salmos 15, 19, 25, 46, 67, 112 e 116. Depois do mal praticado e da vergonha recebida, os Salmos 42, 69, 70, 140 e 145.10

Desde o princípio, a Palavra de Deus sempre vem em primeiro lugar. Nós somos chamados a responder a Palavra de Deus, com todo nosso ser. E a oração é nossa resposta à revelação de Deus nas Escrituras. Sendo assim, os Salmos são a escola onde os cristãos aprendem a orar, pois como Peterson diz, “é esta fusão de Deus nos falar (Bíblia) e nós falarmos a ele (oração) que o Espírito Santo usa para formar a vida de Cristo em nós”.11 Ou, como Ambrósio escreveu, “a Ele falamos, quando oramos, a Ele ouvimos, quando lemos os divinos oráculos”.12 E Bonhoeffer completa: “Portanto, se a Bíblia também contém um livro de orações, isso nos ensina que a Palavra de Deus não engloba apenas a palavra que Deus dirige a nós. Inclui também a palavra que Deus quer ouvir de nós… (…) Que graça imensurável: Deus nos diz como podemos falar e ter comunhão com Ele! E nós podemos fazê-lo orando em nome de Jesus Cristo. Os Salmos nos foram dados para aprendermos a orar em nome de Jesus Cristo”.13

Se insistirmos em aprender a orar sozinhos, sem depender dos Salmos, nossas orações serão pobres, uma repetição de frases prontas: agradecemos as refeições, arrependemo-nos de alguns pecados, suplicamos bênçãos para nossas reuniões e até pedimos orientação. Por outro lado, toda nossa vida deve estar envolvida na oração. Peterson exemplifica esse fato com o livro do profeta Jonas, que gira inteiramente em torno das relações entre Deus e o profeta.14 Essas relações se originaram por meio do chamado profético, do qual Jonas procurou fugir. Mas este personagem não é entregue a si mesmo. Na primeira parte da historia, Deus deixa que o profeta chegue ao extremo de quase perder a própria vida, somente para em seguida restaurá-lo à posição onde se encontrava antes dele tentar evitar o chamado do Senhor.

No centro da narrativa bíblica está a oração que Jonas proferiu após ser engolido por um grande peixe. Sua primeira reação ao se encontrar no ventre do peixe foi fazer uma oração (cf. Jonas 2.2-9), o que não é surpreendente, pois geralmente oramos quando estamos em situações desesperadas. Mas existe algo surpreendente na oração de Jonas. Como Peterson destaca, sua oração não é original ou espontânea: “Jonas aprendeu a orar na escola, e orava como aprendera. Sua escola eram os Salmos”. Como o mesmo autor demonstra, frase após frase a oração de Jonas está repleta de citações dos Salmos:

“Minha angústia” de Salmos 18.6 e 120.1.

  • “Profundo” de Salmo 18.4-5.
  • “As tuas ondas e as tuas vagas passaram por cima de mim” de Salmo 42.7.
  • “De diante dos teus olhos” de Salmo 139.7.
  • “Teu santo templo” de Salmo 5.7.
  • “As águas me cercaram até à alma” de Salmo 69.2.
  • “Da sepultura da minha vida” de Salmo 30.3.
  • “Dentro de mim, desfalecia a minha alma” de Salmo 142.3.
  • “No teu santo templo” de Salmo 18.6.
  • “Ao Senhor pertence a salvação” de Salmo 3.8.

Cada palavra é derivada do livro dos Salmos. Geralmente achamos que a oração é genuína quando é espontânea, mas a oração de Jonas, numa condição extremamente difícil, é uma oração aprendida, sem originalidade alguma.

Peterson prossegue: “Ter palavras prontas para a oração não é apenas uma questão de vocabulário. Nos últimos cem anos, teólogos deram atenção cuidadosa à forma particular que os salmos têm (crítica da forma) e os dividiram em duas grandes categorias: lamentações e ações de graças. As categorias correspondem às duas grandes condições em que nós nos encontramos: angústia e bem-estar”. De acordo com as circunstâncias e em como nos sentimos, lamentamos ou agradecemos.15 “Os salmos refletem muitas e diversas reações à vida: alegria, tristeza, gratidão e tranquila meditação, para nomear apenas algumas. O adorador israelita tinha uma oração pronta para todas as vicissitudes da vida. (…) Os salmos são orações cantadas para Deus, logo, eles chegam a nós como palavras da congregação dirigidas a Deus, em vez de a Palavra de Deus dirigida ao povo de Israel”.16

Como Peterson enfatiza, “a forma mais comum da oração nos Salmos é o lamento”. Isso não deveria nos surpreender, já que essa é nossa condição mais comum. “Temos muitas dificuldades, então oramos muito em forma de lamento. Um estudioso da escola de oração dos Salmos conheceria essa forma melhor que todas, pelo simples fato da repetição”. Jonas se encontrava na pior situação imaginável. Seria natural que ele lamentasse. Mas ocorre o contrário – ele profere um salmo de louvor. Por isso Peterson escreve: “Uma lição importante surge aqui: Jonas estudou para aprender a orar, e aprendeu bem suas lições, mas ele não era um aluno que apenas decorava. Seus estudos não bloquearam sua criatividade. Ele era capaz de distinguir entre as formas e decidiu orar numa forma adequada às suas circunstâncias que ele enfrentava. As circunstâncias exigiam lamentos. Mas a oração, apesar de influenciada pelas circunstâncias, não é determinada por elas. Jonas usou a criatividade para orar e decidiu orar na forma de louvor”.

Por isso, não é suficiente expressar nossos sentimentos na oração, como resposta a Deus: “Precisamos de um longo aprendizado de oração”. Por isso, a melhor escola para a oração é o livro dos Salmos. “Em sua oração”, Peterson continua, “Jonas demonstra ter sido um aluno aplicado na escola dos Salmos. Sua oração se origina de sua situação, mas não se reduz a ela. Sua oração o levou a um mundo muito maior que sua situação imediata”. Ele orou de maneira adequada à grandeza de Deus, que o chamara, nos oferecendo um forte contraste com a atual prática de oração. Nossa cultura nos apresenta formas de oração que são em grande parte centradas em nós mesmos. Mas a oração que é resposta ao Deus que se revela nas Escrituras é dominada pela percepção de Sua grandeza.


1William S. LaSor, David A. Hubbard e Frederic W. Bush, Introdução ao Antigo Testamento (São Paulo: Vida Nova, 2009), p. 465.
2Para um resumo desse processo, cf. Eugene Peterson, em Um pastor segundo o coração de Deus (Rio de Janeiro: Textus, 2001), p. 21-40.
3William S. LaSor, David A. Hubbard e Frederic W. Bush, Introdução ao Antigo Testamento, p. 484. Para uma introdução ao estudo dos Salmos, cf. Carl J. Bosma, “Discernindo as vozes nos Salmos: uma discussão de dois problemas na interpretação do Saltério”, Fides Reformata IX, Nº 2 (2004), p. 75-118 e N. H. Ridderbos and P. C. Craigie, “Psalms”, em G. W. Bromiley (ed.), The International Standard Bible Encyclopedia, v. 3 (Grand Rapids, MI: Eerdman, 1986), p. 1030-1038.
4William S. LaSor, David A. Hubbard e Frederic W. Bush, Introdução ao Antigo Testamento, p. 483.
5Cf. Carta a Marcelino sobre a Interpretação dos Salmos.
6cf. Ambrose, Explanatio Psalmorum XII.
7cf. Santo Agostinho, Comentário aos Salmos, 3 v. (São Paulo: Paulus, 1997).
8cf. “Prefácio ao Livro dos Salmos 1545”, “Sumários sobre os Salmos e razões da tradução”, “Trabalhos do Frei Martinho Lutero nos Salmos apresentados aos estudantes de teologia de Wittenberg” e “Os sete Salmos de Penitência”, Martinho Lutero – Obras selecionadas, v. 8: interpretação bíblica, princípios (São Leopoldo: Sinodal & Porto Alegre: Concórdia, 2003), p. 33-37, 224-233, 331-492, 493-548.
9João Calvino, O livro dos Salmos, v. 1 (São José dos Campos: Fiel, 2009), p. 26-27.
10Lewis Bayly, A prática da piedade (São Paulo: PES, 2010), p. 225-226.
11Eugene Peterson, Uma longa obediência na mesma direção (São Paulo: Cultura Cristã, 2005), p. 150.
12Ambrósio, De officiis ministrorum I, 20, 88: PL 16, 50, em Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a Revelação Divina.
13Dietrich Bonhoeffer, Orando com os Salmos (Curitiba: Encontrão, 1995), p. 14-15.
14Para toda essa seção, cf. Eugene Peterson, A vocação espiritual do pastor (São Paulo: Mundo Cristão, 2006), p. 75-110.
15Para mais informações sobre o método de estudos bíblicos conhecido como crítica da forma (Formgeschichte), e em como ela foi aplicada aos estudos dos salmos, cf. William S. LaSor, David A. Hubbard e Frederic W. Bush, Introdução ao Antigo Testamento, p. 467-478 e Derek Kidner, Salmos: introdução e comentário, v. 1 (São Paulo: Vida Nova, 1992), p. 18-29.
16Raymond B. Dillard & Tremper Longman III, Introdução ao Antigo Testamento (São Paulo: Vida Nova, 2005), p. 207, 217.


Por Franklin Ferreira. Copyright ©. Todos os direitos reservados à Edições Vida Nova.

Extraído de: www.teologiabrasileira.com.br