Franklin Ferreira – O uso dos Salmos na devoção cristã (2/3)

2. A regra da oração

Como Peterson enfatiza, o modelo básico de devoção é a oração diária baseada nos Salmos, sequencialmente, uma vez por mês.17 Mas precisamos destacar que a oração diária dos salmos não é uma ação isolada. Ela permanece entre outros dois fundamentos: a adoração junto com a igreja no domingo e a oração diária, que são recordações às vezes intencionais, outras vezes espontâneas, em resposta a Deus. Esses três fundamentos formam o ambiente de oração que estimulará a devoção. No diagrama sugerido por Peterson, esses fundamentos aparecem assim:

A adoração na igreja firma nossa espiritualidade na Escritura e na vida em comunidade. Os Salmos nos levam a reaprender a linguagem da oração. E a oração recordada desdobra a oração para todos os pormenores da vida. O alvo é tornar a oração recordada incessante por meio da adoração comunitária junto com a oração dos salmos. Como Peterson escreve, “os Salmos, centrados entre Adoração e Recordação, são o lugar determinado onde habitualmente revisamos a base, o vocabulário e os ritmos da oração”. É esta dinâmica que desenvolverá nossa vida de oração. Por isso, a regra (regula) da devoção é: “Adoração Comunitária/Oração dos Salmos/Oração Recordada é a base de onde começamos e para onde voltamos – sempre”.

3. Os cristãos e o uso dos Salmos

Como aprendemos no Novo Testamento, Jesus Cristo, ao mesmo tempo em que orou os Salmos (Hb 2.12) é o principal tema dos Salmos. “O cristão encontra nos Salmos não somente os santos, mas também a Jesus Cristo, ‘o cabeça dos santos’, com seu sofrimento e sua ressurreição. Portanto, nos Salmos, como o Salmo 22 e 69, o próprio crucificado fala”.18 Portanto, é justamente aqui que é estabelecida nossa confiança de que seremos atendidos na oração: “Se permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós, pedireis o que quiserdes, e vos será feito” (Jo 15.7). Pois como Bonhoeffer escreveu: “Ao repetir as próprias palavras de Deus, começamos a orar a Ele. Não oramos com a linguagem errada e confusa de nosso coração; mas pela palavra clara e pura que Deus falou a nós por meio de Jesus Cristo, devemos falar com Deus, e Ele nos ouvirá”.19 Jesus Cristo ensinou aos seus discípulos que os Salmos proclamam seu nascimento, vida, morte e ressurreição (Lc 24.44). Por outro lado, uma vez que o Filho é “Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro”, os Salmos são dirigidos a ele, assim como ao Pai e ao Espírito Santo (Jd 20-21). Portanto, Jesus Cristo é o alvo da oração dos salmos. E ao orarmos em nome e por meio da mediação de Jesus Cristo, nos unimos a ele, que vive sempre para interceder por nós (Hb 7.25).

Portanto, Jesus Cristo é a chave que interpreta os Salmos e aquele que ora os Salmos deve buscar a Cristo como revelado no saltério. Em vez de tratar as promessas, súplicas, confissões e lamentos de forma analítica, na leitura dos Salmos aquele que ora participa das promessas, súplicas, confissões e lamentos do próprio Cristo. O foco de tal oração será, assim, alcançar uma maior comunhão com Jesus Cristo. “Lutero não sabia nada de um conhecimento da Bíblia puramente objetivo, desinteressado ou erudito. Tal conhecimento, mesmo se possível, seria apenas a letra morta que mata. O Espírito vivifica! Devemos, portanto, ‘sentir’ as palavras das Escrituras ‘no coração’. A experiência é necessária para entender a Palavra. Não é meramente para ser repetida ou conhecida, mas para ser vivida e sentida”.20Num sermão sobre a expressão “invoquei o Senhor” (Sl 118.5), Lutero disse para congregação:

Invocar é o que você precisa aprender. Você ouviu. Não fique aí apenas sentado ou virado de lado, levantando a cabeça e balançando-a, e roendo as suas unhas preocupado e buscando uma saída, com nada em sua mente a não ser como você se sente mal, como você está ferido, que coitadovocê é. Levante-se, seu tratante preguiçoso! Ajoelhe-se! Levante suas mãos e seus olhos para o céu! Use um salmo ou o pai-nosso a fim de clamar sua angústia ao Senhor.21

As Escrituras, dessa forma, não são apenas a perfeita revelação de Deus, mas guia do cristão em suas lutas e vitórias – não apenas atos históricos passados e distantes, mas eventos vivos, aqui e agora. Deste modo, há outro fator que deve levar os cristãos a meditar e incluir os Salmos em sua oração:

O abismo que há entre o cristianismo moderno e a espiritualidade da Bíblia pode ser visto (…) no nosso seletivo uso dos Salmos, que era o hinário do povo de Israel e da Igreja do Novo Testamento. Os Salmos não apenas refletem toda experiência humana (p. ex.: confusão, raiva, medo, ansiedade, depressão, alegria incontida), mas também nos forçam a parar de fingir que tudo esteja bem com o mundo. Os salmos de lamentação (por exemplo, os salmos 10, 13, 35 e 86) são veementes queixas diante de Deus em relação às contradições existentes entre suas promessas e a realidade pela qual o povo passa. Esses salmos raramente são usados no culto cristão hoje em dia. Contudo, esses salmos são atos de uma fé corajosa: corajosa, porque eles insistem em que temos que enfrentar o mundo como ele é, e que temos que abandonar toda ostentação infantil; mas também de fé, porque eles partem da convicção de que não existe assunto proibido, quando se trata de termos uma conversa com Deus. Reter daquela conversa com Deus qualquer coisa da experiência humana, inclusive a escuridão de uma oração não respondida e os aspectos negativos da vida, é negar a soberania de Deus sobre toda a vida. Assim, paradoxalmente, são aqueles que reprimem suas dúvidas com uma série de cânticos alegres que bem podem estar sendo incrédulos: pela recusa de crer que Deus pode cuidar de toda a raiva que eles têm. Assim, os salmos de protesto constituem uma poderosa repreensão ao que passa por fé e louvor na maioria dos grupos cristãos de hoje. O que é irônico é que a vida moderna talvez nos exponha a mais confusão e dor do que qualquer coisa do mundo do salmista; e contudo ignoramos exatamente aquelas orações que vêm de encontro a tal senso de desorientação. Não é de admirar que muito do ensino atual quanto à fé não seja diferente do ‘pensamento positivo’ dos gurus modernos da administração, conquanto vestido com uma roupagem pseudobíblica. A fé bíblica, entretanto, é exatamente o contrário.22

Portanto, “os salmos continuam sendo um tesouro de auxílio espiritual para os cristãos. (…) Seja qual for o nosso estado de espírito, seja qual for nossa situação, as vozes antigas nos convidam a ouvi-las. Elas também já passaram por alegria, tristeza, luto, pecado, ira, confissão, perdão e outras experiências que tocam tão profundamente em nossas vidas. Elas nos chamam a aprender delas enquanto o Espírito Santo usa essas palavras para nos trazer para mais perto do Senhor”.23


17Para esta seção e o gráfico empregado, cf. Eugene Peterson, A vocação espiritual do pastor, p. 96-109.
18Paul Althaus, A teologia de Martinho Lutero (Canoas: Ulbra, 2008), p. 116.
19Dietrich Bonhoeffer, Orando com os Salmos, p. 12.
20Timothy George, Teologia dos reformadores (São Paulo: Vida Nova, 1993), p. 86.
21WA 31, p. 1, em Timothy George, Teologia dos reformadores, p. 87.
22Vinoth Ramachandra, A falência dos deuses: a idolatria moderna e a missão cristã (São Paulo: ABU, 2000), p. 60-61.
23Bill Arnold e Bryan E. Beyer, Descobrindo o Antigo Testamento: uma perspectiva cristã (São Paulo: Cultura Cristã, 2001), p. 312.


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Extraído de: www.teologiabrasileira.com.br