Um blog do Ministério Fiel
Igreja e Estado – Franklin Ferreira (2/2)
Como visto anteriormente, a visão reformada da sociedade não se centraliza no indivíduo nem na instituição, mas na soberania de Deus sobre as esferas da criação, nas quais diferentes instituições estão debaixo do reinado de Deus. Essa posição destaca que “todos os homens vivem numa rede de relacionamentos divinamente ordenada.” Nesse sentido, “as pessoas não encontram sentido ou propósito quer em sua própria individualidade, quer como parte de um todo coletivo.” Na verdade, “elas atendem a seus chamados dentro de uma pluralidade de associações comunais, como família, escola e Estado”, portanto “Deus ordenou cada uma dessas esferas de atividade como parte da ordem original. Juntas, elas constituem a comunidade da vida.”[41]
O gráfico a seguir esboça essa posição:
Nessa posição, a família, o indivíduo e a igreja são esferas independentes, pois existem a despeito do Estado, derivando sua autoridade somente de Deus. O papel do Estado é mediador, intervindo quando as diferentes esferas entram em conflito entre si ou para defender os fracos contra abusos de poder.
Abaixo, é oferecido um desenvolvimento dessa posição por meio de algumas premissas que podem guiar o entendimento evangélico da relação entre o cristão e a política:[42]
Em primeiro lugar, afirma-se a distinção entre igreja e Estado, lembrando que toda autoridade procede de Deus. As tarefas da igreja e do Estado são de dois tipos e são distintas, não podendo ser confundidas. A existência do Estado deve ser reconhecida como um dom e uma ordem de Deus, estabelecida a partir da Queda, por causa do pecado (1Sm 12.17-25; 24.7,11; 26.9-11; 2Sm 1.14-16; Rm 13.1-5; 1Pe 2.13; Ap 13.10). Portanto, os que assumem cargos públicos devem reconhecer que sua autoridade é delegada. O governo estabelecido por Deus é mediado pelo povo, que elege seus governantes. Estes são eleitos para servir ao povo, ao mesmo tempo que cumprem suas tarefas com senso de dever, pois sabem que darão contas de seus atos perante uma autoridade maior.
Em segundo lugar, rejeita-se o conceito de soberania absoluta do Estado e o conceito de soberania absoluta do povo. Para a fé cristã, o poder reside em Deus e em Cristo, que é o Senhor de todo poder e autoridade (Ef 1.21,22) e “o soberano dos reis da terra” (Ap 1.5; 19.16), comandando todas as esferas sociais. Somente
Deus detém o poder absoluto: “Porque o SENHOR é o nosso juiz; o SENHOR é o nosso legislador; o SENHOR é o nosso rei; ele nos salvará” (Is 33.22). Portanto, Deus é a fonte final da lei e de toda autoridade. Logo, prestar fidelidade ou lealdade absoluta ao Estado é idolatria, pois é Deus quem estabelece o certo por meio de sua lei, portanto deve-se compartilhar a lei de Deus por meio da mudança das estruturas sociais. Por isso que, na mesma medida em que as leis estabelecidas numa nação devem ser derivadas da lei de Deus, essas leis devem ser aplicadas a todas as pessoas, incluindo os governantes. Mesmo numa nação que não é cristã, pode-se apelar à lei de Deus escrita na criação e gravada na consciência dos seres humanos, que é coincidente com a lei revelada. Portanto, numa nação, não há ninguém que esteja acima da lei. Esse é o princípio da lex rex (a lei é o rei), que se opõe ao princípio despótico da rex lex (o rei é a lei).
Em terceiro lugar, Deus delega poder tanto ao governante quanto às pessoas. Ao ocupar um cargo de autoridade, nenhum homem tem poder sobre outro, a não ser quando essa capacidade é delegada por Deus. Mas esse poder é relativo e revogável. Por isso, os cristãos devem opor-se a todo sistema político totalitário. Mais do que um direito, isto é um dever: “É mais importante obedecer a Deus que aos homens” (At 5.29). A fé cristã honra as autoridades, embora negue ao Estado o direito de intervir em matérias de culto, doutrina e ética. O exercício da autoridade é necessário, mas jamais ao custo da liberdade de consciência, pois somente Deus é o único Senhor. Já que o poder não é algo intrínseco ao governante, mas delegado por Deus, os cristãos devem resistir, pelos meios corretos e legítimos, a quem exerce o poder político contra a vontade de Deus. Para a tradição reformada, o governo é governo legítimo quando e na medida em que é servo de Deus. Assim, não devemos identificar um governo, de forma direta e automática, com a vontade de Deus.[43] Nesse sentido, a resistência ao Estado que faça mau uso do poder que lhe foi delegado deve ser entendida como desobediência civil.[44] Desde que exercido dentro de limites aceitáveis, esse é um mecanismo legítimo a que tem direito todo cidadão e, de forma específica, todo cristão, quando em confronto com um Estado totalitário que interfere na esfera litúrgica, doutrinária ou ética, e requer para si o que equivale à adoração. Portanto, a “rebelião contra os tiranos é obediência a Deus” (Rebellion to tyrants is obedience to God).
Em quarto lugar, nenhuma ideologia é absoluta e nem pode ser confundida com o evangelho. Com acerto, a Declaração Teológica de Barmen afirma: “[8.18] Rejeitamos a falsa doutrina de que à Igreja seria permitido substituir a forma da sua mensagem e organização, a seu bel-prazer ou de acordo com as respectivas convicções ideológicas e políticas reinantes.” Sempre que a igreja identifica determinada ideologia com o reino de Deus ou com a mensagem bíblica, essa mensagem não apenas foi distorcida, como também acabou sendo obliterada. Por outro lado, a igreja deve manter vigilância sobre o Estado. Não se pretende com isso substituir o sermão baseado na Escritura pelo discurso político. Adorar a Deus, proclamar sua Palavra e ministrar os sacramentos é a principal tarefa da igreja, além da qual não existe outra. Ao proclamar com fidelidade a Palavra de Deus, a igreja influencia o Estado, fazendo com que suas leis se conformem com a vontade de Deus. De tal fidelidade decorrem consequências políticas e sociais ao chamado primário da comunidade cristã.
Em quinto lugar, o realismo cristão ressalta que a corrupção na política tem origem primariamente no coração dos seres humanos. Se a doutrina da criação afirma a dignidade humana, o ensino bíblico sobre a queda afirma a corrupção humana. Os pecados individuais se tornam pecados estruturais, tais como idolatria, egoísmo, violência, despotismo, corrupção; estes acabam por afetar as estruturas do poder constituído. Por isso, a igreja cristã “prega uma conversão interior dos governantes e dos governados a Deus”, crendo que, a partir do arrependimento e quebrantamento pessoal, as estruturas serão limpas de iniquidades. Por outro lado, a revelação geral e a graça comum ensinam que “há princípios que, se aplicados, produzirão a ética na política.” Essas são as doutrinas que proporcionam a base dos valores éticos em pessoas que não são cristãs. Portanto, “o caminho para a ética na política” não passa pela conversão de todos ao cristianismo, nem consiste “em colocar em cargos políticos quem se professa cristão”, mas em “contribuir para que a lei de Deus seja reconhecida” por todos.[45] Por isso, podemos cooperar com incrédulos como cobeligerantes na esfera política, lutando contra males aos quais também nos opomos.
Em sexto lugar, por causa do pecado na sociedade, a república se torna não apenas o melhor sistema, mas o sistema mais viável. A forma de governo que mais se aproxima do modelo bíblico é a república, na qual a nação é governada pela lei constitucional e administrada por representantes eleitos pelo povo. Porque somente Deus concentra em si todo o poder (cf. Is 33.22), deve haver a divisão e a separação dos poderes executivo, legislativo e judiciário, de modo que nenhum governo ou ramo do governo monopolize o poder. Assim, a república se torna o melhor sistema, pois é a salvaguarda das liberdades individuais, “designada para fragmentar o poder político, de modo que ele não possa ameaçar as vidas, liberdades e propriedades.”[46] Portanto, devido à inclinação humana para a injustiça, advinda do pecado, a república torna-se necessária; e devido à inclinação humana para a justiça, capacitada pela graça comum, a república torna-se possível.
Portanto, os cristãos defendem os fatores que definem uma república, que são aqui esboçados e que podem ser deduzidos ou inferidos da Escritura:
- ênfase nas funções primordiais do Estado, em que os governantes têm a obrigação de zelar pela segurança do povo, afinal, pagamos impostos por ela (cf. Rm 13.1-7);
- limitação da extensão e do poder do Estado, pois, a partir das Escrituras, entende-se que o governo não tem autoridade para estabelecer impostos exorbitantes, redistribuir propriedades ou renda, criar zonas francas ou confiscar depósitos bancários;
- separação e cruzamento fiscalizador (checks and balances) entre os poderes executivo, legislativo e judiciário, para que nenhum poder possua poderes absolutos, e para que sempre haja equilíbrio;
- oportunidades de ascensão social para todas as pessoas, investindo e promovendo educação e serviços médicos;
- promoção de uma ética protestante do trabalho, pois “o que Max Weber chama de trabalho ético protestante é um conjunto de virtudes econômicas [bíblicas]: honestidade, pontualidade, diligência, obediência ao quarto mandamento — ‘seis dias trabalharás’, obediência ao oitavo mandamento — ‘não furtarás’, e obediência ao décimo mandamento — ‘não cobiçarás’”, reconhecendo que a ênfase no “trabalho produtivo origina-se da Bíblia e da Reforma”;[47]
- direito à propriedade privada como direito fundamental (cf. Êx 20.15,17; 1Rs 21);[48]
- alternância do poder civil, que impede que um partido ou autoridade se perpetue no poder, assim como a defesa do pluralismo político e partidário;
- centralidade do contrato social, que é um acordo entre os membros de uma sociedade pelo qual reconhecem a autoridade sobre todos de um conjunto de regras; a constituição, que limita o poder, organiza o Estado e define direitos e garantias fundamentais;
- garantia das liberdades individuais, por meio do estabelecimento de normas gerais de conduta, que redundem em liberdade de expressão, associação e de imprensa;
- voto distrital para o poder legislativo, em que o país ou o estado é dividido em distritos eleitorais com aproximadamente a mesma população; cada distrito elege um deputado e, assim, completam-se as vagas no parlamento e nas câmaras estaduais.
Esses são o conjunto de princípios que a tradição reformada tem afirmado ao tratar da relação dos fiéis e da comunidade cristã com o Estado. Que, à luz desse ensino, os cristãos orem e intercedam pelos governantes, “para que tenhamos uma vida tranquila e serena, em toda piedade e honestidade” (1Tm 2.1-3).
41. Gordon Spykman, “The principled pluralistic position”, em Gary Scott Smith (ed.), God and Politics: Four Views on the Reformation of Civil Government. Phillipsburg, NJ, Presbyterian and Reformed, 1989, p. 79, citado em Greg Johnson, O mundo de acordo com Deus, p. 93.
42. Pontos básicos extraídos de: Augustus Nicodemus Lopes, Ética na política e a universidade: Carta de princípios 2006. São Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2006; Eberhard Busch, “Igreja e política na tradição reformada”, em Donald McKim (ed.), Grandes temas da tradição reformada, p. 160-175; “Um manifesto cristão”, em Francis Schaeffer, A igreja no século 21. São Paulo, Cultura Cristã, 2010, p. 157-239; André Biéler, A força oculta do protestantismo. São Paulo, Cultura Cristã, 1999; Abraham Kuyper, Calvinismo. São Paulo, Cultura Cristã, 2002, p. 85-115; Greg Johnson, O mundo de acordo com Deus, p. 92-101; Johannes Althusius, Política. Rio de Janeiro, TopBooks, 2003; David W. Hall, The Genevan Reformation and the American Founding. Lanham, MD, Lexington, 2005.
Teologia Cristã: Uma introdução à sistematização das doutrinas (Franklin Ferreira)
Esta obra fornece uma compreensão básica e necessária das doutrinas centrais do cristianismo. Além de uma pesquisa bastante cuidadosa das Escrituras e da história da teologia cristã, o leitor é brindado com as visões de vários teólogos que ao longo da história se dedicaram a ensinar os princípios mais caros e essenciais da fé cristã.
No final de cada capítulo, há uma bibliografia de apoio e uma série de questões cuja finalidade é rever as teses mais elementares nele defendidas. No final do livro o leitor encontrará um glossário de importantes teólogos e documentos da igreja cristã e também um apêndice com alguns desses principais documentos.
Por Franklin Ferreira. Trecho do 6º Capítulo do livro “Teologia Cristã” (Edições Vida Nova)