Incapacidade moral e natural

A distinção escolástica que Witherspoon empregava mais robustamente tinha uma longa e complicada história. O debate em torno da natureza da vontade humana – seria ela cativa ou seria ela livre? – remonta, pelo menos, ao tempo de Agostinho (354-430). A fim de compreender essa questão recorrente, escolásticos medievais como Pedro Lombardo (1096-1164) e Bernardo de Claraval (1090-1153) criaram distinções entre diferentes tipos de necessidade, distinções que Calvino usou para explicar como o homem poderia ser escravo do pecado e, ao mesmo tempo, responsável pelo seu pecado. Nosso pecado, que a vontade caída escolhe por necessidade, é também voluntário, porque a escolha é devida à nossa própria corrupção.[1] Não há nenhuma coerção externa, nenhuma compulsão exterior que nos faça pecar. A vontade, por mais cativa à impiedade que esteja, ainda é autodeterminada.[2]

Turretin argumentava no mesmo sentido, ao postular seis diferentes tipos de necessidade. Pode-se dizer que a vontade é livre, mesmo que ela seja cativa a uma necessidade moral (juntamente com a necessidade de dependência de Deus, a necessidade racional e a necessidade de evento), contanto que ela seja livre da necessidade física e da necessidade de coação. Significa dizer que, se o intelecto tem o poder de escolha (liberdade de coação física) e a vontade pode ser exercida sem uma compulsão externa (liberdade da necessidade de coação), então nossos pecados podem ser considerados voluntários e nós podemos ser responsabilizados por eles.[3]

Não é surpreendente que Witherspoon sustentasse a mesma distinção básica, embora com muito menos nuance escolástica. Em diversas ocasiões, Witherspoon defendeu a natureza necessária, ainda que voluntária, do nosso pecado, ao explicar a diferença entre incapacidade natural e moral. Veja-se, por exemplo, Witherspoon discutindo o assunto a certa altura do seu Tratado acerca da Regeneração:

Novamente, o pecador talvez diga: “Mas por que a sentença haveria de ser tão severa? A lei pode ser justa em si mesma, mas é difícil, ou até impossível para mim cumpri-la. Eu não tenho forças; não posso amar o Senhor com todo o meu coração. Sou completamente insuficiente para aquilo que é bom”. Oh, que vocês possam tão somente considerar a que tipo de incapacidade de guardar os mandamentos de Deus estão sujeitos. Seria ela natural, ou seria ela moral? Seria ela de fato a falta de capacidade, ou seria apenas a falta de vontade? Seria ela outra coisa senão a depravação e corrupção dos seus corações, a qual é em si mesma criminosa, e a fonte de todas as transgressões? Acaso vocês não têm as faculdades naturais, e entendimento, vontade e afeições, uma maravilhosa estrutura corporal e uma variedade de membros? O que é que os impede de se consagrarem completamente a Deus?[4]

Ao usar essa distinção mais simples entre incapacidade natural e moral, Witherspoon estava alinhado com Pictet, o qual sustentava que “a impotência do pecador não lhe serve de pretexto para pecar, uma vez que não é involuntária e meramente física, emergindo de uma deficiência de poder natural, mas sim voluntária e moral, emergindo de uma natureza depravada”.[5]

A distinção tem sido objeto de controvérsia na tradição reformada, com alguns teólogos definido “capacidade natural” de tal maneira que se atribui ao homem não regenerado o poder de, em si mesmo, arrepender-se e crer. Isso foi o que o “Triunvirato Suíço” ouviu na doutrina vinda de Saumur e é por isso que a Formula Consensus Helvetica sustentava uma incapacidade que era moral e natural (Cânon XXI-XXII). O Consenso não estava rejeitando a distinção por completo – afinal, a Fórmula foi idealizada por Turretin com o apoio de Pictet. Os teólogos suíços desejavam se proteger da noção de que a fé era, de algum modo, auto-originada (Cânon XXII). Essa controvérsia na Europa do século XVII não era diferente da controvérsia que envolveu a teologia reformada nos séculos XVIII e XIX nos Estados Unidos.

À época de Witherspoon, o teólogo mais famoso a falar acerca de incapacidade natural versus moral era Jonathan Edwards (1703-1758), que usou a familiar distinção como uma parte importante de seu ataque ao arminianismo em Freedom of the Will (1754).[6] Nos anos que se seguiram, os teólogos da “Nova Teologia” inspirados por Jonathan Edwards fariam da noção de capacidade natural a pedra fundamental do seu pensamento, atribuindo maior poder volitivo ao homem não regenerado e, em alguns casos, rejeitando a doutrina da imputação do pecado de Adão. Esse foi um passo que Edwards não deu e nem teria encorajado.[7] Tamanha foi a controvérsia ao longo do século seguinte que, em 1863, Lyman Atwater recorreu às páginas da Biblical Repertory and Princeton Review de Charles Hodge para explicar que, quando Witherspoon falava acerca da capacidade natural e da incapacidade moral, ele utilizava o termo em seu sentido clássico, ortodoxo, tomado de Turretin.[8]

Notas:

[1] Calvino cita Bernardo – em harmonia com Agostinho, mas em oposição a Lombardo – com esse fim nas Institutas, II.iii.5. Cf. Inst. II.v.1; Bondage and Liberation, 143-44; Comentário de Rm 7.14.

[2] Calvino sustenta esse ponto à exaustão. Cf. Bondage and Liberation, 67-70, 103, 115, 118, 122, 182, 200, 204; Inst. II.iii.14, II.v.7,14-15; Comentário de Fp 2.13. Além disso, a veemente rejeição de Calvino a qualquer idéia de necessidade que pudesse implicar coerção ou compulsão não é de modo algum original. Cf. Augustine, City of God, V.x (Nicene and Post-Nicene Fathers, First Series, ed. Philip Schaff [Peabody: MA: Hendriksen, 2004], 2:92-93); Aquinas, Summa Theologica I q.82 a. 1; D. Martin Luthers Werke: Kritische Gesamtausgabe, Abteilung Werke (WA), (Weimar, 1883-),18:634.

[3] Elenctic Theology, X.xii.3-12; cf. Van Asselt, Introduction to Reformed Scholasticism, 160-163.

[4] Works, 1:215; cp. 1:142. Witherspoon também usa a distinção na obra Essay on Justification (Works, 1:53) e no seu sermão perante a Sociedade pela Promoção do Conhecimento Cristão (SSPCK), em 1758 (Works, 2:357).

[5] Christian Theology, 200 (Theologia Christiana V.x.12). Os itálicos estão no original em Latim e na tradução para o inglês. A distinção pode ser encontrada em outros autores da tradição reformada, entre os quais William Twisse (1578-1646), moderador da Assembleia de Westminster, e Thomas Manton (1620-1677), um dos delegados da Assembleia (William Twisse, The Riches of God’s Love unto the Vessells of Mercy[Oxford: Printed by L.L. and H.H. for Tho. Robinson, 1653], 1.1.72; Thomas Manton,The Complete Works of Thomas Manton [London: James Nisbet and Co., 1873], 21:332).

[6] Veja a Parte I, Seção 4 em The Works of Jonathan Edwards, Volume 1: Freedom of the Will, ed. Paul Ramsey (New Haven: Yale University Press, 2009). Não há nenhuma indicação de que Witherspoon estivesse se abeberando de Edwards ao usar a distinção. Embora John Erskine, colega de Witherspoon no Partido Popular, fosse próximo a Edwards, este último jamais é citado por Witherspoon e o único volume de Edwards arquivado em sua biblioteca é a obra devocional The Life of David Brainerd (1749 [Witherspoon’s edition, 1765]).

[7] Veja E. Brooks Holifield, Theology in America: Christian Thought from the Age of the Puritans to the Civil War (New Haven: Yale University Press, 2003), 127-156.

[8] Lyman Hotchkiss Atwater, “Witherspoon’s Theology,” The Biblical Repertory and Princeton Review (1863), 598-599. Ashbel Green refutou a mesma alegação em sua biografia de Witherspoon, respondendo à reivindicação “afirmada publicamente e por escrito de que o Dr. W. seria favorável à idéia de que homens não santificados possuíssem a capacidade natural de amar a Deus e guardar os seus mandamentos”. Green defende que as afirmações de Witherspoon acerca da capacidade natural e da incapacidade moral não eram diferentes “do credo de qualquer teólogo calvinista bem informado da Escola Clássica, isto é: que na regeneração nenhuma nova faculdade é importada, mas tão somente há uma renovação e santificação das faculdades possuídas por natureza; e, também, que todo homem não regenerado é responsável por qualquer ato de desobediência às exigências divinas e por qualquer omissão dos deveres ordenados, pois, em todos, ele age voluntariamente e por escolha” (Life of the Rev. John Witherspoon, 265-266).

Por: Kevin DeYoung. © The Gospel Coalition. Website: thegospelcoalition.org. Traduzido com permissão. Fonte: Moral and Natural Inability.

Original: Incapacidade moral e natural. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Tradução: Vinícius Silva Pimentel.