Um blog do Ministério Fiel
Você é um calvinista supersticioso?
João Calvino usa um termo surpreendente para descrever o nosso desleixo para com a doutrina da providência de Deus no curso do nosso cotidiano. Ele o chama de superstição.
Pessoas supersticiosas erroneamente atribuem poderes sobrenaturais a coisas que realmente não os possuem: gato preto, espelho quebrado, passar embaixo de escadas, jogar sal sobre os ombros, chinelo emborcado.
Mas o que a superstição tem a ver com a Providência? A visão reformada clássica da Providência ensina que Deus está no controle último de tudo no universo, incluindo as livres escolhas e ações (boas ou más) de todas as pessoas. Se este entendimento está correto, é supersticioso pensar, sentir e agir como se outros seres humanos possuíssem a causalidade última naquilo que fazem. Estamos atribuindo-lhes o papel de Deus.
Mas não é assim que pensamos, sentimos e agimos muitas vezes – mesmo nós, os calvinistas? Vivemos como se as pessoas que nos machucam e prejudicam estivessem escrevendo os seus próprios roteiros para nos prejudicar, em vez de cumprirem o plano soberano de Deus.
Observando o fruto mau da superstição
Em suas Institutas da Religião Cristã, Calvino apresenta o fruto mau da nossa superstição:
Digo que sentimos um temor supersticioso se, cada vez que as criaturas nos ameaçam ou incutem outro terror, assustamo-nos, como se tivessem por si força e poder para causar dano, ou por acaso pudessem nos ferir e machucar, ou se em Deus o auxílio não fosse suficiente para nos defendermos[1].
Nossa superstição nos torna tímidos e medrosos. No início do meu ministério pastoral, uma mulher influente na congregação criticava a minha pregação e liderança com regularidade. Até mesmo suas declarações casuais eram ataques maliciosos. Certa feita ela elogiou um de meus sermões, dizendo que foi muito melhor do que qualquer sermão medíocre que eu havia pregado recentemente.
Ao longo do tempo, desenvolvi uma sensibilidade irritadiça em relação a ela. Percebi que estava sendo supersticioso, atribuindo-lhe um poder que ela realmente não possui, esquecendo da soberania de Deus sobre todas as palavras que ela falou e seu propósito de operar algo bom em minha vida por meio delas. Não preciso temer o que ela disse. Como diz Calvino, “seja a potência, seja a ação ou o movimento, não são erráticos nas criaturas, mas são regidos pelo secreto desígnio de Deus, de modo que nada aconteça a não ser o que por Deus, com conhecimento e por vontade, for decretado”[2]. O fruto da minha falha em viver à luz desse conhecimento foi o medo.
Sintomas de um calvinista supersticioso
O uso da categoria de superstição de Calvino não é perfeito. Ele pode ser equivocadamente interpretado para implicar que os homens não possuem nenhuma agência real. Mas penso que seja um meio útil de expressar um problema comum. Muitos de nós somos calvinistas supersticiosos. Acreditamos na providência exaustiva e meticulosa de Deus, mas em nossa experiência real do dia-a-dia, não vivemos a partir de tal convicção. Nossa superstição nos torna:
1. Evitadores de pessoas
Pessoas supersticiosas evitam gatos pretos, espelhos quebrados, escadas e sexta-feira 13. Calvinistas supersticiosos evitam pessoas que nos intimidam com suas palavras e ações.
2. Manipuladores de pessoas
Pessoas supersticiosas desemborcam os chinelos revirados para que suas mães não morram. Calvinistas supersticiosos tentam manipular pessoas. Fazemos o que achamos necessário para fazê-las felizes conosco. Massageamos seus egos ou evitamos dizer coisas duras. Por que? Porque estamos atribuindo-lhes poder demais.
3. Adoradores de pessoas
Pessoas supersticiosas dão crédito às estrelas, aos seus pés de coelho da sorte, trevos de quatro folhas ou à ferradura sobre a porta. Calvinistas supersticiosos dão graças e crédito demais aos outros (algumas vezes a si mesmos) quando as coisas vão bem, e não o crédito suficiente a Deus.
O problema é que somos chamados a ministrar a essas mesmas pessoas por quem nutrimos superstição. É como se um homem supersticioso quanto a espelhos quebrados fosse enviado para trabalhar numa fábrica de espelhos. Será que daria certo?
Saboreando o fruto bom da Providência de Deus
Vencer a superstição através da meditação na verdade da providência divina traz um fruto maravilhoso. O Catecismo de Heidelberg pergunta (Questão 28): “Para que serve saber da criação e da providência de Deus?”. E a resposta é:
Para que tenhamos paciência em toda adversidade e mostremos gratidão em toda prosperidade e para que, quanto ao futuro, tenhamos a firme confiança em nosso fiel Deus e Pai, de que criatura alguma nos pode separar do amor dele. Porque todas as criaturas estão na mão de Deus, de tal maneira que sem a vontade dele não podem agir nem se mover.
A crença na providência de Deus nos torna totalmente gratos porque tudo o que acontece torna-se um motivo para dar graças. Há alguns anos, nossa família foi nadar no lago. Estávamos todos sem clima e com a moral baixa. Enquanto encostamos em um drive-thru para um café, descobrimos que uma amiga estava na nossa frente na fila. Fizemos-lhe uma surpresa ao pagar pelo seu pedido, e isso mudou o clima da família pelo resto do dia.
Será que Deus arranjou essa situação? Se eu acreditasse em qualquer outra coisa que não na visão clássica da providência divina, não teria certeza. Ela estava ali por livre e espontânea vontade. Mas crendo, como eu creio, na providência meticulosa de Deus, reconheço que a presença dela ali à nossa frente foi pura graça divina para com pessoas mal-humoradas. Portanto, agradeço-o por isso.
Um exemplo de Calvino derrotando a superstição
A crença na providência de Deus também nos dá força e confiança na vida e no ministério. João Calvino não apenas escreveu sobre os benefícios da providência divina; ele, de fato, os experimentou.
Calvino e seu ex-amigo Sebastian Castellio envolveram-se em uma séria disputa teológica nos anos 1500. Em 1558, Calvino publicou seu livro A Providência Secreta de Deus (sua terceira resposta a Castellio). Em sua carta aberta de resposta a Calvino, Castellio, como de costume, zombou dele. Disse que os livros de Calvino eram “fracos e ineficazes” porque seu raciocínio era “obscuro e rude”.
Ele terminou sua carta com esta alfinetada: “Espero que não fiques irritado com as considerações desta carta. Se fores justo e sincero, ela não parecerá desagradável. Em primeiro lugar, é de fato para teu proveito que possas ser admoestado por ela; segundo, se entendes (como dizes) que todas as coisas acontecem por necessidade, deves também crer que eu não poderia ter evitado a escrita desta carta”. Ai!
No finalzinho de sua resposta a Castellio, Calvino diz:
No que respeita ao ardil que soltaste por último – de que não devo ficar irritado com teus insultos, uma vez que creio terem sido necessários –, para mim esta é, verdadeiramente, uma séria e eficaz exortação à paciência.
Calvino continua a recordar o exemplo do Rei Davi, que acreditava que a providência secreta de Deus governou as maldições e insultos de seu inimigo Simei, e, portanto, não se vingou pessoalmente dele. Calvino escreve: “Homem algum jamais suportará os insultos do diabo e do ímpio com serena moderação, a menos que tire seus pensamentos deles e volte-os para Deus somente”.
Abaixo a superstição! Enquanto desenvolvemos uma apreciação mais profunda pela providência divina, oro para que conheçamos a ação confortante, poderosa e libertadora da mão paternal de Deus em cada evento de nossas vidas.
[1] Institutas da Religião Cristã. 1.XVI.3. Editora UNESP, 2008. Tomo 1. p. 187-88.
[2] Idem.