Gilead: Uma Nova Visão do Ministério Pastoral

Nota do Tradutor: embora as próximas postagens possam revelar algo do enredo do livro, contudo não se configuram como spoilers, uma vez que Gilead, diferente dos romances que estamos habituados a ler, não possui pontos de virada ou cenas de suspense – nem mesmo um “gran finale” – que exijam maiores sigilos. A beleza e encanto do livro estão mesmo na construção de sua prosa.

Não consigo lembrar quem me indicou Gilead[1], mas me apaixonei pelo livro logo de cara. Em parte, foi devido à escrita, naturalmente, pois Marilynne Robinson está entre as autoras mais talentosas do mundo. Gilead “é tão serenamente belo”, escreveu um resenhista, “e escrito em uma prosa tão gravemente cadenciada e cuidadosa, que dá para se sentir tocado pela graça só de lê-lo”.

Eu também fui cativado pela premissa do romance. Gilead é uma memória ficcional na qual um pastor moribundo escreve uma longa carta a seu jovem filho, contando a história de seus ancestrais, refletindo sobre sua vocação como um ministro e compartilhando toda uma vida de conselhos paternais que ele sabe que não estará por perto para dar ao filho que ama. O resultado é um retrato íntimo de uma vida ministerial que capta as alegrias, bem como as lutas do pastorado.

Pastores nos Clássicos

Mais ou menos na época em que li Gilead pela primeira vez, almocei com um seminarista que tinha dedicado parte de seu verão lendo romances que seu avô recomendara dizendo que todo pastor deveria ler. Eram livros que apresentavam um pastor, um padre ou um pregador como o protagonista. Lembro-me de que Elmer Gantry estava na lista, bem como A Letra Escarlate, de Nathaniel Hawthorne, e, talvez, O Diário de um Pároco de Aldeia, de Georges Bernanos.

A conversa me estimulou porque conciliou duas de minhas paixões na vida: boa literatura e ministério pastoral. Comecei logo a pensar em outros livros já escritos que se incluíam na mesma categoria: Cry, the Beloved Country, de Alan Paton; O Poder e a Glória, de Graham Greene; Godric, de Frederick Buechner e Witch Wood, de John Buchan; e O Silêncio, de Shusaku Endo. Percebi que esses livros vieram de todas as partes do mundo: Estados Unidos, Inglaterra, Escócia, França, México, Japão e África do Sul. Também identifiquei que eles ofereciam uma ampla variedade de perspectivas sobre o pastorado.

Logo passei a sonhar com um curso prático que usasse os clássicos da literatura mundial para ajudar seminaristas a entenderem sua vocação ao ministério do evangelho. Há forma melhor (ou mais agradável) de preparar-se para o pastorado do que ler e discutir grandes estórias de grandes livros?[2]

Finalmente, ministrei meu sonhado curso em um pequeno seminário de doutor em ministério no Westminster Theological Seminary, chamando-o de algo como “O ministério pastoral na literatura mundial”. Mais tarde, trabalhei em conjunto com meu pai, Leland Ryken, e meu amigo Todd Wilson para escrever um pequeno livro sobre alguns desses romances, chamado Pastors in the Classics.

Com essa pequena série de artigos – parcialmente retirados do meu capítulo sobre Gilead no livro supracitado –, volto-me para um dos meus romances favoritos da lista. Faço-o na esperança de que a leitura desse livro excepcional encoraje você a ler outros livros semelhantes.

Ministros que você encontra

Ler boa literatura é essencialmente importante para pastores e outros cristãos que atuam em qualquer forma de ministério no evangelho. Minha lista de razões para afirmar isto é longa, mas aqui está uma das mais importantes: grande literatura nutre a alma. Como Charles Osgood escreveu em seu livro Poetry as a Means of Grace [Poesia como um meio de graça], a literatura que lemos “amplia o campo de visão intelectual, moral e espiritual; amplia o alcance da nossa compaixão; molda nosso discernimento; corrige a nossa avaliação de todas as coisas”.

Grandes obras de literatura que apresentam pastores (ou sacerdotes) como protagonistas têm o poder de fazer exatamente isso por quem está envolvido no ministério. Elas expandem nossa visão do pastorado. Levantam e ajudam-nos a resolver questões morais que surgem no curso do ministério. Cultivam nosso coração para os necessitados. Expõem áreas de tentação e até corrigem aspectos do nosso ministério que não estão agradando plenamente a Deus.

Romances pastorais fazem tudo isto ao nos dar retratos convincentes do ministério através da vida dos pregadores que atuam como seus personagens principais. Tais personagens vêm em diversos tipos principais. Existem pastores fiéis – não tantos quantos se espera, mas alguns. Mais frequentemente, o ministro no centro da estória é um completo pecador. Um exemplo notável é o pregador que comete adultério perto do início de A Letra Escarlate. Mas Arthur Dimmesdale é apenas o primeiro de uma longa linha de clérigos depravados a aparecer nas páginas da literatura americana. Quer pela ganância, luxúria ou hipocrisia, pode-se praticamente traçar o declínio moral da cultura americana através dos ministros que povoam sua literatura.

Por outro lado, existem as figuras cômicas – os ministros que servem como objeto de hilaridade. Hoje, estamos familiarizados com tais personagens do inepto e decadente clero que normalmente aparecem nos filmes e seriados humorísticos de TV. Mas divertir-se às custas de ministros é uma tradição de longa data nas letras americanas. Um exemplo notável do século 19 é o reverendo caprichosamente chamado de Cream Cheese (no drama de Irving Browne, Our Best Society), o descendente direto do pregador huguenote francês Crème de la Crème, que sucede ao Dr. Polysyllable no púlpito!

Felizmente, muitos dos melhores romances clericais apresentam um ministro integralmente. Retratam um pastor ou sacerdote fiel ao chamado de Deus, embora lutando, ao mesmo tempo, com questões reais no ministério e demonstrando falhas genuínas de caráter. Os ministros nesses romances ilustram o que Barbara Brown aprendeu de um de seus mentores:

Ser ordenado não diz respeito a servir a Deus perfeitamente, mas a servi-lo visivelmente, permitindo que outras pessoas aprendam tudo quanto possam ao observar atentamente a sua ascensão e queda. Você provavelmente não será pior do que os outros, e certamente não será melhor, mas terá de deixar as pessoas olharem para você. Terá de deixá-las ver como você é.

Começando

O protagonista em Gilead – o Reverendo John Ames – não serve a Deus de maneira perfeita, mas o faz de maneira visível. O retrato multidimensional que Marilynne Robinson faz de seu respeitável ministro capacita-nos a vê-lo como ele é. Vemos tanto sua paixão em proclamar o evangelho quanto sua nítida decepção em perceber que sua pregação nunca faz justiça plena à Palavra de Deus. Vemos sua gentil compaixão pelas pessoas às quais Deus o chamou para servir, mas também a profunda luta que enfrenta ao ministrar a um paroquiano rebelde e difícil de amar. John Ames nos mostra, portanto, o que é melhor e mais difícil no ministério pastoral.

Esta introdução é um convite para aprender a partir da vida e ministério de Ames pela leitura de Gilead, no qual Marilynne Robinson dá ao ministro a sua cativante voz. Consoante à sua forma literária – uma autobiografia fictícia –, Gilead não possui capítulos. Ele apresenta o fluxo de consciência de um homem, em vez de um enredo rigidamente construído. Por conseguinte, em vez de examiná-lo sequencialmente ou por episódio, os próximos posts explorarão temas variados a partir do romance.

Sua estrutura torna difícil saber como dividir a leitura de Gilead em porções adequadas. Talvez a melhor sugestão para esta primeira parte seja ler ao menos até à página 27. Você vai ficar tão fascinado com o texto de Robinson que vai ser difícil largar o livro.



[1] O livro, publicado em português pela Editora Nova Fronteira (2005), encontra-se esgotado na editora. Mas é possível encontrá-lo em sebos de livros usados (como a Estante Virtual, por exemplo). (Nota do Tradutor.)

[2] Em O Pastor como Teólogo Público (Ed. Vida Nova, 2016), o teólogo Kevin Vanhoozer diz que está disposto a defender que “é possível aprender mais sobre a vida de um pastor com a leitura de Gilead do que com a leitura de muitos livros de teologia pastoral” (p. 158). (Nota do Tradutor.)

Por: Philip. G. Ryken. © 2013 The Gospel Coalition. Original: Gilead: A Novel View of Pastoral Ministry

Tradução: de Leonardo Bruno Galdino. © 2016 Ministério Fiel. Todos os direitos reservados. Website: MinisterioFiel.com.br. Original: Gilead: Uma Nova Visão do Ministério Pastoral.

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