Um blog do Ministério Fiel
Graça pródiga para um pastor moribundo
Este texto é o último de uma série sobre o livro Gilead, de Marilynne Robinson. Para ler o texto anterior, clique aqui.
Leitura sugerida pelo autor essa semana: p. 183 a 262.
Um dos grandes amores da vida de Robert Boughton – e também sua maior aflição – é seu filho Jack. Aqui, a autora de Gilead, Marilynne Robinson, observa um tipo de personagem familiar de uma perspectiva privilegiada. Não vemos o filho pródigo da perspectiva de seu pai, mas da do melhor amigo deste. John Ames, também, possui um papel paternal na vida de Jack (o jovem é seu afilhado), mas se assemelha mais ao irmão mais velho (ver Lucas 15.11ss). Ames descreve-se como o filho bom que nunca deixa a casa de seu pai, “um daqueles justos para quem os júbilos no paraíso serão relativamente restritos” (p. 289) (Ver Lucas 15.7).
O irmão mais velho
Como o irmão mais velho na parábola do filho pródigo, Ames se ofende com a imoralidade desleixada de Jack. “Não sei como um rapaz pôde causar tanto desapontamento”, ele diz, “sem dar a mínima margem para qualquer esperança” (p. 91). Pois até onde ele pode lembrar, houve algo de “diabólico” com os pequenos furtos e outros delitos clandestinos. Suas travessuras juvenis não eram divertidas e ternas, mas malévolas.
Mas o maior de todos os pecados de Jack foi engravidar uma pobre moça do interior fora do casamento, e depois abandonar a criança, que morreu de uma infecção comum. O ato de caridade embaraçado da família de Boughton veio tarde demais para salvá-la. “O que aconteceu com ela foi simplesmente terrível. O que é um fato”, ele diz (p. 231).
Em determinado nível, o Reverendo Ames acredita que “a graça de Deus é o bastante para qualquer delito” (p. 189). Este princípio está profundamente enraizado no próprio engajamento de Robinson com o calvinismo, conforme expresso através de seus ensaios em The Death of Adam (New York: Picador, 2000) e outros lugares. Ela escreve que “todos nós somos absolutamente – em outras palavras, igualmente – indignos e dependentes da livre intervenção da graça”.
John Ames acredita no pecado e na graça tanto quanto Robinson. Ele crê, ademais, que o amor de Boughton por seu filho desobediente – “o mais amado” (p. 91) – exemplifica uma compaixão como a de Cristo. Contudo, ele também está furioso com a extravagância da afeição paternal de seu amigo, que ele considera como indulgência excessiva. Se tivesse a chance, Boughton perdoaria cada um dos delitos de seu filho – passados, presentes e futuros. Ames acha difícil não se ofender com esta graça, mesmo sabendo que seus sentimentos estão em desacordo com sua teologia:
Ao menos uma vez por semana, durante toda a minha vida adulta, disse que há uma efetiva assimetria entre o amor do nosso Pai e o nosso mérito. Mesmo assim, quando vejo essa mesma assimetria entre pais e filhos humanos, sempre fico um pouco irritado (p. 92).
A luta de Ames para conciliar a real gravidade do pecado humano com a livre graça do perdão de Deus é dificultada pelo seu papel especial na vida de Jack. O rapaz nascera muito antes de Ames ter o seu próprio filho, e como um presente de amizade cristã, Boughton deu-lhe o nome de John Ames. Jack é xará de Ames, seu alterego; com efeito, ele é “um outro eu, um eu mais querido”[1].
No entanto, quando Ames realizou o batismo de Jack, ele sentiu seu coração estranhamente frio para com a criança. Para sua própria culpa e vergonha, ele sempre achou difícil amar seu afilhado da forma como seu amigo tencionou, ou da forma que ele entende que um pastor piedoso deveria amar. Ele considera seu xará uma pessoa potencialmente perigosa (para onde levará a amizade crescente entre Lila e Robby?) e provavelmente sem princípios – alguém que “nunca se arrepende e nunca muda para valer” (p. 191).
“Não o perdôo”, diz Ames. “Não saberia nem por onde começar” (p. 200).
O irmão mais novo
Como o Reverendo Ames, Jack Broughton teme que ele seja imperdoável. Embora seja um agnóstico, (“me encontro em estado de descrença categórica”, ele chama: “Na verdade, nem mesmo acredito que Deus não exista” – p. 267), Jack ainda se pergunta se existe alguma graça para ele. Esta é a questão pessoal que está por trás da pergunta filosófica que ele faz sobre predestinação em um dos diálogos centrais do livro: “O senhor acha que algumas pessoas são propositada e irremediavelmente destinadas à perdição?” (p. 183).
Ames e Boughton erram em tomar esta questão como primariamente teológica, em vez de intensamente pastoral. Mas Jack realmente está perguntando sobre si mesmo: pode ele ser salvo, ou está além de qualquer esperança de redenção? Supreendentemente, é Lila – não os pastores – quem entende a verdadeira questão e dá a resposta mais útil: “Uma pessoa pode mudar. Tudo pode mudar” (p. 187).
A bênção do pai
Embora o Reverendo Ames falhe em dar a Jack a ajuda espiritual que ele necessita, isso não se dá sem receios. Ele acredita que é chamado para salvar o filho pródigo e conceder-lhe graça, esse “fogo extático” (p. 239), mas está lutando dentro de sua alma: “Sinto profundamente não poder conversar com ele enquanto pastor” (p. 227).
Ames começa a desejar poder, de alguma maneira, compensar o batismo frio do menino; que “gostaria de pôr a mão na sua testa e afastar a a culpa” (p. 244). Dadas as circunstâncias, ele faz a única coisa que sabe fazer e ora por Jack, rogando a Deus por sabedoria para cuidar dele como um bom pastor.
Essas orações são respondidas na cena culminante do livro, que traz o bálsamo para Gilead. Após revelar que tem uma esposa “de cor” [negra] e um filho (p. 263), Jack decide, por bem, deixar Gilead, ainda que isso signifique abandonar seu pai em seus últimos dias – um pecado que Ames sabe que “erao tipo de coisa que somente seu pai poderia perdoar” (p. 291). O Reverendo Ames encontra Jack na parada de ônibus e pede para abençoá-lo, para orar pela proteção de Deus e pronuncia uma última bênção: “Senhor, abençoe John Ames Boughton, esse filho, e irmão, e esposo e pai tão amado” (p. 292).
Estas são palavras carinhosas da graça pródiga que que Deus generosamente concede sobre todos os seus filhos pródigos. São palavras de bênção para ambos: para John Ames bem como para John Ames Boughton, o Irmão Mais Velho e o Irmão Mais Novo. Para o Reverendo Ames, proferir essas palavras em favor de seu xará vale o seminário, a ordenação e todos os seus anos de ministério. É, também, a preparação final que ele precisa para ter uma morte tranquila.
Para reflexão e discussão: Todos os relacionamentos entre pai e filho em Gilead são marcados por alguma forma de estranhamento e abandono. De acordo com o Reverendo Ames, “um homem pode conhecer seu pai, ou o seu filho, e, mesmo assim, pode não haver nada entre eles a não ser lealdade, amor e incompreensão mútua” (p. 14). Isto é verdade para próprio Ames, cujo pai não consegue entender por que ele permanece em Gilead, e cujo filho é jovem demais para compreender a maior parte do que seu pai quer transmitir.
De que maneira o seu relacionamento com seu pai (ou algum outro membro da família) tem impedido o seu progresso espiritual ou ajudado você a entender a graça de Deus? Como um pai pode derramar graça sobre seus filhos sem escusar seus pecados ou tornar-se excessivamente indulgente? Quem são alguns dos filhos e filhas pródigos em sua lista de oração? Em que lugares você tem visto a graça de Deus agindo para restaurar os filhos que se afastaram dele?
[1] “Another self, a more cherished self”, no original. “Um outro ser, um ser mais querido”, na tradução de Maria Helena Rouanet (p. 230). (Nota do tradutor.)