Um blog do Ministério Fiel
Minha pele arrancada de dragão
Li C. S. Lewis pela primeira vez assim que cheguei aos Estados Unidos, aos nove anos de idade. Nascida no Iraque, eu ainda estava aprendendo o inglês quando li, pela primeira vez, O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa, e ele capturou minha atenção e minha imaginação.
O tempo passou, estabeleci-me neste país, tornei-me adulta e, mais tarde, li outros livros filosóficos e de não-ficção de Lewis. Mas o que arrebenta comigo – ainda hoje – são algumas páginas de A Viagem do Peregrino da Alvorada.
Um menino desagradável
Nesse livro, C. S. Lewis nos oferece uma imagem poderosamente pessoal da regeneração.
A cena começa com Eustáquio, um menino desagradável que se vê em posse de uma grande fortuna. Ele fica imaginando a vida e confortos que podia desfrutar agora, e em seus confortos ele adormece com seu tesouro. Quando acorda, Eustáquio não é mais um menino, mas um dragão, a manifestação externa de sua ganância e egoísmo internos.
A bracelete de ouro que ele havia colocado em seu braço de menino agora estava apertando sua pata de dragão, e a dor era lancinante. Pior ainda, a dor física misturou-se com a dor de perceber que ele agora estava desligado da humanidade, isolado e sozinho. Ele começa a chorar muito, lágrimas quentes de dragão.
Um Salvador gracioso
Em misericórdia e compaixão, Aslam chega e conduz o dragão Eustáquio a um jardim no alto da montanha e, depois, a uma nascente de água no centro do jardim.
Eustáquio olha para a nascente e percebe que se ele pudesse tão-somente entrar na água, a dor de sua pata cessaria. Mas Aslam diz que ele precisará ser despido primeiro. Após um momento de confusão, Eustáquio lembra que é um dragão, e que dragões têm peles como cobras, que podiam ser mudadas. Com suas garras afiadas, ele começa a rasgar sua pele de dragão. Ele descama uma camada somente para descobrir outra horrível, escamosa e dura por debaixo. E depois outra. Após três camadas, ele percebe que é tudo em vão – ele nunca se purificará, se livrará de sua dor ou mudará aquela pele horrível sozinho.
Um talho da Graça
“Eu tiro a sua pele”, diz Aslam, o Leão.
Eustáquio estava tão desesperado que até mesmo o seu medo das patas de Aslam não foi suficiente para impedi-lo de deitar de costas. Deitado ansioso no chão, eis como Eustáquio se sentiu.
A primeira unhada que me deu foi tão funda que julguei ter me atingido o coração. E quando começou a tirar-me a pele senti a pior dor da minha vida. A única coisa que me fazia aguentar era o prazer de sentir que me tirava a pele.
Tirou-me aquela coisa horrível, como eu achava que tinha feito das outras vezes, e lá estava ela sobre a relva, muito mais dura e escura do que as outras. E ali estava eu também, macio e delicado como um frango depenado e muito menor do que antes. Nessa altura agarrou-me – não gostei muito, pois estava todo sensível sem a pele – e atirou-me dentro da água. A princípio ardeu muito, mas em seguida foi uma delícia. Quando comecei a nadar, reparei que a dor do braço havia desaparecido completamente. Compreendi a razão. Tinha voltado a ser gente. […] Depois de certo tempo, o leão me tirou da água e vestiu-me[1].
Os aguilhões que curam
Derramei muitas lágrimas de gratidão solene nesta cena. Ela fere rente. Ela ferroa e cura.
Como Tim Keller disse certa vez em um sermão, “o modo de lidar com a culpa não é evitá-la, mas resolvê-la. Eustáquio não apenas percebeu que não podia tirar sua própria pele, mas somente Deus pode vir a tirá-la, e para isso você precisa deixá-lo penetrar fundo. Você deve assumir toda a culpa para si, parar de jogar a culpa nos outros e assumir a responsabilidade pelo que fez de errado. Sem desculpas. Totalmente de frente”.
Olho para o meu pecado de frente. Eu também era um dragão, uma criatura feia, repulsiva e profundamente encascada na miséria que eu mesma criei, solitária e assustada. Mas por causa da graça de Deus, o Leão de Judá me chamou para o jardim construído na Montanha, e para a Fonte e Água Viva.
Ele fez de mim uma nova criatura, e deu um futuro a um pecador desesperançado.
Uma esperança eterna
Quando Cristo rasgou a minha carne, uma carne que eu não podia despojar, ele converteu meu coração de pedra em carne. Pelo sangue de um Cordeiro, fui de um dragão a uma menina.
Como Eustáquio, tenho minhas recaídas. Ainda há muitos dias nos quais eu possa ser chata. Mas a cura começou, e é uma cura que será concluída em tempo oportuno (Filipenses 1.6; 1 João 3.2). E quando isso acontecer, passearei em um jardim novo, para viver com Deus e beber do rio de prazer incessantemente.
[1] C. S. Lewis. As Crônicas de Nárnia. Editora Martins Fontes, 2005. p. 451-452. Tradução de Paulo Mendes Campos.