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Os Miseráveis – Romances seculares que recomendamos [9]
Nota do tradutor: o presente artigo não é exatamente uma recomendação – como os outros da série –, mas uma análise de um ponto aspecto específico do romance. À guisa de leitura complementar, leia o texto O Talento de Victor Hugo, de John Piper, que publiquei na plataforma Medium (link aqui).
Os Miseráveis, de Victor Hugo, ainda é tema de discussão, e por uma boa razão.
Os cristãos, em especial, têm celebrado corretamente o retrato da beleza da misericórdia e da graça nessa comovente estória de mais de 150 anos de idade. A maioria das análises teológicas tem contrastado Javert, o inspetor obcecado pela lei, com Valjean, o ladrão transformado pela graça.
Embora muito dessas análises tenha sido de uma precisão absoluta, é importante que uma realidade bíblica e teológica não se perca. Permita-me colocar deste modo: muitos consideram Javert como um legalista consumado, a personificação de uma preocupação obstinada com a perfeita obediência à Lei justa de Deus. O problema é este: ele não é.
Que lei?
Sem dúvidas, Javert é um legalista de cabo a rabo. Mas a lei que modela a sua obsessão não é a Lei de Deus, a Lei de Moisés ou a Lei de Cristo. É lei, certamente, mas a lei francesa do século 19, coberta com uma camada de religiosidade, mas abrigando apenas uma semelhança passageira com algo bíblico.
O apóstolo Paulo diz que a Lei é santa, justa e boa (Romanos 7.12). Mas não há nada de santo em condenar um homem faminto a cindo anos de prisão por ele ter roubado um pão. Não há nada de justo em estigmatizar esse homem como um bandido perigoso pelo resto de sua vida. Não há nada de bom em uma lei (ou homem da lei) obcecada em capturar um ex-ladrão em liberdade condicional enquanto tolera criminosos tenazes como os Thenardiers.
A lei que Javert ama é uma rede burocrática que enreda o pobre e privilegia o rico. A sociedade que Javert defende oprime viúvas e órfãos, impelindo-os à prostituição e ao roubo como um meio de sobrevivência. A lei de Javert privilegia o depoimento do abastado em detrimento do depoimento de uma mulher trêmula e indefesa (ao mesmo tempo que os poderosos buscam saciar a luxúria deles na parte ralé da cidade). A lei de Javert destina o pobre a uma vida que é vexatória, animalesca e (no caso de Fantine) misericordiosamente curta.
A sedução sutil na estória de Hugo
Para que essa condenação da classe dominante em Os Miseráveis não seja tomada como um endosso aos “homens furiosos” e sua ideologia revolucionária, deixe-me dizer que considero a glorificação da violência revolucionária como uma das seduções mais centrais e sutis do livro de Hugo, algo que os cristãos perspicazes reconhecerão e rejeitarão.
Os Miseráveis romantiza a Revolução e o radicalismo utópico em que ele surfou: a divinização do “Povo”, a glorificação da “barricada”, a obsessão em derrocar o passado e recriar o mundo. Os “homens furiosos” chegam ao “céu” por meio de seu sangue e martírio pela Causa e pelo “Povo”, mas os verdadeiros “homens furiosos” (ou, antes, seus predecessores em 1789) nos legaram a guilhotina e o Templo da Razão em sua jornada pela “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. O regime antigo era medonho, mas os revolucionários foram comprovadamente piores.
O que Jesus diz a Javert
Diferenciar o legalismo de Javert da lei bíblica é mais do que um interesse meramente semântico. Ele pode matizar o modo como nós, como cristãos, lemos o Antigo Testamento. Pode perpetuar a ideia de que as tentativas de obedecer fielmente à Lei de Deus são problemáticas e imperfeitas desde o início, quando tais esforços são de fato dignos e recomendáveis, desde que feitos com base na fé em Jesus e a partir da certeza de que já fomos aceitos por Deus.
Considere desta forma: se Jesus (ou Moisés) viesse a Javert, ele não o condenaria por suas tentativas meticulosas de guardar a Lei de Deus; ele o condenaria por negligenciar a Lei de Deus, especialmente seus tópicos mais importantes: misericórdia, justiça e fé (Mateus 23.23). Em outras palavras, Javert seria condenado como um fariseu, pois é exatamente isso o que ele é.
Mas não nos esqueçamos do cerne da condenação de Jesus aos fariseus. Ele os condena porque transgredem a lei (Mateus 23.2-3), por suas tradições humanas que sobrepujam a Lei de Deus (Mateus 15.3-7), por seu amor ao dinheiro (Lucas 16.14), por oprimirem o pobre e o vulnerável (Mateus 23.14), por não apreciarem a Lei o bastante (pois se o fizessem, reconheceriam Jesus como o seu cumprimento).
E não nos esqueçamos que é Jesus que radicaliza a questão da obediência no Sermão do Monte, chamando de “pecado” aquilo que os supostos “guardiões” teriam desculpado (luxúria, ira, juramento). Tudo isso quer dizer, em se tratando de Os Miseráveis, que não vamos equiparar a obediência de Javert com a obediência à Lei de Deus ou à obediência cristã (em contraste com a graça e a misericórdia cristãs). Na verdade, se pensarmos biblicamente, Valjean é o verdadeiro guardião da lei, que defende os tópicos mais importantes, protege o vulnerável, o pobre e o oprimido, e guarda os Grandes Mandamentos (amor a Deus e ao próximo) porque ele foi comprado pela graça de Deus (nos objetos de prata do bispo).
Os Miseráveis na Escola Dominical
Não estou dizendo que Os Miseráveis não comunica a beleza da misericórdia. Ele certamente o faz – e o faz de forma espetacular. Também não estou dizendo que Javert não é um exemplo de tudo que está errado com a humanidade. Na verdade, esta análise mostra apenas quão difuso é o pendor humano em estabelecer leis falsas. Quer sejam as tradições dos fariseus, a jactância etnocêntrica na lei dos judaizantes, as minúcias burocráticas de Javert, a escrupulosidade excessiva dos fundamentalistas ou os crimes de ódio dos progressistas, os seres humanos adoram quebrar a Lei de Deus erigindo as suas próprias. Somos rebeldes, e isso é o que fazemos.
Portanto, sim, use Os Miseráveis como uma ilustração na Escola Dominical. Apresente-o como uma forma de iniciar um diálogo evangélico com um colega de trabalho. Mas, na medida em que você o fizer, esteja atento ao que você está fazendo. Não equipare Javert com a Lei como Deus tencionou. Ao contrário, tente isto como um exercício: critique Javert e a sociedade que ele representa com base apenas no Antigo Testamento. Limite-se, quem sabe, até mesmo ao Pentateuco.
Lembre-se de que o Deus de toda graça, o Deus de espantosa misericórdia, o Deus dos pecadores redimidos revela-se não apenas em Mateus e Romanos, mas também em Levítico e Deuteronômio. Lembre-se de que “o mundo que ansiamos ver” é um mundo no qual andamos de acordo com o Espírito e, assim, o preceito da lei se cumpre em nós (Romanos 8.4). Lembre-se de que provavelmente seria Valjean, não Javert, que ecoaria o cântico de Davi no Salmo 119: “Oh, como amo a tua Lei!”.