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O Estrangeiro – Romances seculares que recomendamos [16]
Não há figura intelectual mais representativa de meados do século 20 do que Albert Camus. Além de ser um ficcionista influente, Camus estava no centro da contracorrente intelectual que agitou a Europa e atravessou os Estados Unidos. Os princípios subjacentes desses movimentos permanecem difundidos na cultura ocidental, e esta é parte da relevância de Camus para nós hoje.
Nascido na Argélia, em 1913, Camus foi um espírito inquieto que se manteve em movimento e buscou muitos caminhos intelectuais e profissionais. Como uma figura literária, Camus é considerado um autor francês. Ele é tão famoso como filósofo quanto como ficcionista, e, de fato, seus romances são uma encarnação de suas perspectivas filosóficas. Ele morreu instantaneamente num acidente de carro em 1960, quando tinha 46 anos.
A natureza multifacetada da vida de Camus faz dela um genuíno compêndio sobre o secularismo moderno. Camus foi um ativista político, pacifista e revolucionário. Foi casado duas vezes, mas desdenhava do casamento como uma instituição. Ele viveu uma vida sensual e desordenada. Essa vida caótica é, em si mesma, instrutiva para os cristãos. Se quisermos ver um homem moderno “em escala maior”, Camus preenche a nossa figura representativa.
Mas meu tema é por que devemos ler Camus. A vida de Camus é o refrão de fundo (um refrão útil) para sua produção literária. Essa produção abrange uma gama muito ampla, que eu não conseguirei abordar neste breve ensaio. Consequentemente, focarei na obra mais conhecida de Camus, seu romance de 1942 O Estrangeiro (L&PM Pocket, 2010), um marco da literatura moderna. Camus tinha apenas 29 anos quando esse livro foi publicado.
O contador de histórias
Meu primeiro contato com O Estrangeiro aconteceu quando eu estava num culto na capela da faculdade, na Central College, em minha cidade natal Pella, Iowa. Um palestrante de cerimônias em ocasiões especiais fez uma referência fortuita à obra-prima de Camus, citando a premissa central da estória, a saber, que o protagonista foi achado culpado não porque ele assassinou um homem, mas porque ele não chorou no funeral de sua mãe. Achei essa premissa narrativa completamente intrigante.
Li O Estrangeiro pela primeira depois do meu segundo ano na faculdade, enquanto fazia trabalhos eclesiásticos na Califórnia. Outro membro de minha equipe tinha acabado de ler o romance e o recomendou. Achei a famosa abertura cativante e inesquecível. “Mamãe morreu hoje. Ou, talvez, ontem; não estou bem certo. O telegrama da família diz: SUA MÃE FALECEU. FUNERAL AMANHÃ. MEUS PÊSAMES. O que deixa dúvidas sobre o caso; poderia ter sido ontem”. Thomas Hardy certa vez afirmou que uma estória deve ser formidável o bastante para ser digna de ser contada. O Estrangeiro satisfaz esse critério.
Camus conserva a genialidade da escrita durante todo o romance. A última frase é tão formidável quando a primeira: “Para me sentir menos só, tudo o que restava era a esperança de que no dia de minha execução tivesse uma enorme multidão de expectadores e que eles me cumprimentassem com uivos de maldição”.
A primeira razão por que os cristãos devem ler Camus o romancista é, portanto, uma razão narrativa e estética: Camus é um grande contador de histórias e fornece os subsídios e a ocasião para o entretenimento artístico. Vale a pena ler O Estrangeiro só pela genialidade do seu estilo. O exemplo de John Milton é esclarecedor nesse ponto. Embora Milton, com o tempo, passasse a deplorar a perspectiva moral dos poetas romanos que excitaram sua imaginação juvenil, ele, não obstante, lembra que “a arte deles ainda é aplaudida”. Afinal de contas, a imagem de Deus nas pessoas é o que as capacita a criar forma e beleza. Sempre apreciei o talento artístico de O Estrangeiro, apesar da distância que eu sinto da cosmovisão que ele oferece para o meu consentimento.
Voz da autêntica experiência humana
O tema da literatura, eu digo repetidamente aos meus alunos, é a experiência humana. A literatura raramente nos fornece uma informação nova. O que ela faz, em vez disso, é nos colocar em contato com a experiência humana, elucidando essa experiência no processo. O Estrangeiro desempenha essa função em um grau proeminente.
O protagonista da estória se chama Meursault. Suas ações e reações são anormais ao extremo. Sobretudo, ele é incapaz de atribuir sentimento e significado humano normais aos eventos externos de sua vida. Ele assassinou um homem e não sente nenhum remorso. Quando sua namorada Marie lhe pede em casamento, o narrador em primeira pessoa registra: “Eu disse que não me importava; se era isso o que ela queria, nós nos casaríamos”.
Escrever isso como sendo tão anormal a ponto de ser irrelevante é perder o ponto. A imaginação sempre salienta o que ela toca. Como resultado, as experiências de vida ficam evidente com clareza mais do que comum. A vida de Meursault é uma representação cem por cento fiel de como muitas pessoas ao nosso redor vivem – uma representação intensa e exagerada, sem dúvidas, mas fiel.
Esta é uma segunda razão para os cristãos lerem Camus: seus personagens fictícios e os eventos de suas vidas são uma janela para o nosso mundo. O noticiário diário também é uma janela para o nosso mundo, mas está desatualizado em 48 horas. Meursault, em contraposição, assombra nossa memória e se torna um conhecido inesquecível. Enquanto refletimos nele, passamos a entender algo das pessoas em nossas próprias vidas.
Camus, o filósofo moderno
Camus também é um grandioso filósofo moderno. É verdade que ele repetidamente repudiou pertencer à escola moderna de pensamento. Contudo, essas tradições são evidentes em seus escritos e entrevistas. Tudo o que posso dizer à guisa de explicação é que Camus era desconfiado com sistemas organizados. Consequentemente, quando ele afirma não ser um existencialista, isso significa que ele não queria ser identificado com todas as facetas desse movimento e seus adeptos. Adicionalmente, precisamos ler as suas declarações com cuidado. Quando ele afirmou, em um ensaio de 1950, que passou toda uma vida tentando “transcender o niilismo”, não significa necessariamente que sua tentativa foi bem-sucedida.
Já em seus dias, e subsequentemente, Camus foi considerado como um existencialista. O protagonista de O Estrangeiro (cuja admiração Camus professou) é um herói existencial: fechado num mundo de total subjetividade, encarando sua própria existência do momento como a única realidade, negando a possibilidade de realidade sobrenatural e suas consolações, vivendo sob a sombra da morte e trabalhando com a premissa de que a vida em si é o valor sublime.
Dizer que esse existencialismo morreu há muito tempo é incorreto. O Existencialismo não é só um movimento filosófico de meados do século 20; é, também, um movimento universal. Muitas pessoas em nossa sociedade vivem e pensam como existencialistas, e se quisermos entendê-las, assimilar o romance existencial de Camus é de grande ajuda.
O movimento literário e filosófico com que Camus estava mais profundamente identificado em seus dias era o movimento absurdista. Dificilmente seria um exagero dizer que O Estrangeiro foi o “representante perfeito” desse movimento. O confrade e filósofo francês Jean-Paul Sartre escreveu um ensaio sobre O Estrangeiro que ajudou a torná-lo famoso. Nele, ele escreveu: “Absurdidade significa divórcio, discrepância. O Estrangeiro é um romance de discrepância, divórcio e desorientação”. Sartre também relacionou o estilo do livro a essa perspectiva absurdista, assinalando que cada frase é autossuficiente, com o mundo sendo “destruído e renovado de frase a frase”.
Como com o existencialismo, seria errado relegar a visão absurdista de vida a um movimento filosófico e literário de meados do século 20. A incapacidade de Mersault em associar sentido normal aos eventos em sua vida – a distância absurda entre a sua experiência e sua reação a ela – é o que vemos de forma menos drástica ao nosso redor. Se entendermos Meursault, entenderemos muito sobre a nossa própria sociedade.
Outro movimento moderno que encontra expressão em Camus é o niilismo. Embora Camus desejasse distanciar-se dele como um sistema filosófico, seu protagonista fictício é inteiramente um niilista que nega que a vida tenha sentido. Meursault berra para o capelão que o visita na prisão: “Nada, nada teve a menor importância”. Como se sabe, parte desse niilismo é negar a existência de Deus (“Expliquei que eu não acreditava em Deus”, Meursault diz ao capelão). O novo ateísmo que nos aflige hoje não tem nada de novo. Podemos encontrá-lo desenvolvido no romance de Camus.
Resumindo: outra boa razão para os cristãos lerem Camus é a clareza com que seus escritos incorporam as principais perspectivas filosóficas dos mundos contemporâneo e moderno. O fato de O Estrangeiro ser ambientado na Argélia de 80 anos atrás, longe de ser uma perda, dá ao livro uma distância útil de nosso próprio momento histórico. Emancipado da confusão superficial de nossa própria situação cultural, a estória consegue realçar as características essenciais de nosso mundo.
Um quase cristão?
Quero concluir retornando à vida do autor. Camus nos oferece um estudo de caso sobre o mistério de como alguns supostos não-cristãos estão realmente envolvidos profundamente com a fé cristã. Ao explorar as excentricidades das interações de Camus com a fé cristã, podemos aguçar nosso entendimento da complexidade do que encontramos nas atitudes de muitas pessoas ao nosso redor que parecem intransigentes à fé cristã, mas permanecem profundamente emaranhadas nela.
A educação inicial de Camus foi católica, e ele foi batizado quando criança. Embora rejeitasse o cristianismo institucional, ele, não obstante, permaneceu dialogando com os cristãos e o cristianismo por toda a sua vida. O cristianismo era, para ele, um parceiro de treinamento intermitente. O autor do livro Albert Camus and Cristianity (Jean Ominus; University of Alabama Press, 1965) escreve que, embora Camus “fosse totalmente divorciado da religião… há, nele, o traço de uma cicatriz, até mesmo de uma ferida aberta”.
No início de meu estudo em O Estrangeiro, encontrei referências à tese de que Camus estava se movendo em direção à perspectiva cristã pouco antes de sua morte prematura. E difícil extrair isso dos escritos de Camus, mas certos aspectos de sua vida tornam essa hipótese plausível. Por exemplo, em uma entrevista sobre a ocasião do seu recebimento do Prêmio Nobel de Literatura, em 1957, ele disse: “Só tenho veneração e respeito pela pessoa de Cristo e sua vida. Não acredito em sua ressurreição”.
O que impactou verdadeiramente foi um livro publicado em 2000 por um metodista americano chamado Howard Mumma, que atuou como um pastor convidado na Igreja Americana em Paris por alguns verões no final dos anos 50. O livro (Albert Camus and the Minister, Paraclete Press) narra como Camus via o ministério fora das conversas “irregulares e ocasionais”. No fim, Camus pediu para Mumma realizar um batismo privado (o qual Mumma recusou). Quando Camus acompanhou Mumma até o aeroporto em vista do retorno deste aos Estados Unidos naquele verão, esperando retomar sua conversa no ano seguinte, ele disse: “Vou continuar lutando pela Fé”. Ele morreu dentro de poucos meses.
A seriedade moral e humanitária de Camus é bem atestada. Mas se, além disso, Camus tornar-se um candidato cristão sério, somos naturalmente incitados a examinar seus escritos em busca de evidências de uma alma sedenta sob a rejeição notória do cristianismo ortodoxo e da igreja. E se tal complexidade existisse num famoso agnóstico moderno, que tipo de luz poderia lançar sobre alguns conhecimentos em nossas próprias vidas? Esta, também, é uma razão para os cristãos lerem Camus.