Um blog do Ministério Fiel
O Sol é para todos – Romances seculares que recomendamos [17]
Harper Lee, que faleceu em 19 de fevereiro de 2016, entendia das coisas da terra. Em seu romance clássico O Sol é para todos (José Olympio – 2015), as descrições de camélias aveludadas, casas lânguidas e sapatos triturando no cascalho pintaram um mundo provinciano que reconhecemos. Reconhecemos as pessoas no mundo dela, também. Havia opressores e oprimidos, hipócritas e cínicos, e um homem tranquilo com uma consciência.
A consciência de Atticus Finch se torna inconveniente quando ele é obrigado a defender Tom Robinson, um homem negro inocente acusado de estuprar uma mulher branca e pobre. Nesta pequena Alabama da época da Grande Depressão, não há possibilidade de justiça. A filha de Finch, Scout, não entende como ele pode estar fazendo a coisa certa quando todo mundo na cidade é contra ele. “Eu jamais poderia frequentar a igreja e adorar a Deus”, ele explica, “se não tentasse ajudar aquele homem”.
Escrevendo sobre religião, a força de Lee estava trazendo à luz as implicações terrenas da crença celestial. Quando se trata de preconceito racial em uma pequena cidade sulista, não se pode confiar na consciência popular. Os cidadãos do céu não devem defender os valores de suas comunidades terrenas quando esses valores cheiram ao Diabo. Lee viu a contradição em cultuar um Deus de justiça enquanto se pratica a injustiça (ou vê-la sendo cometida e não intervir). Como um dos seus personagens coloca, “por vezes a Bíblia na mão de um homem é pior do que uma garrafa de uísque nas mãos de [outro]”.
Para os afroamericanos em O Sol é para todos, a esperança celestial coexiste com a desesperança terrena. Testemunhamos essa desesperança quando a governanta de Finch leva os filhos consigo para a sua igreja. Muitos aspectos do culto são estranhos às crianças, especialmente o ofertório. O reverendo Sykes diz à congregação que as ofertas irão para a esposa de Tom Robinson. Uma a uma, as pessoas colocam suas moedas em uma lata de café. O pastor conta o dinheiro e comunica que não é suficiente. Eles precisam de 10 dólares. Ele fecha a porta da igreja e mantém as pessoas cativas até que o dinheiro para a família de Robinson seja levantado.
A tensão diminui quando são recolhidos pelo menos 10 dólares, e eles abrem as portas enquanto o organista toca “On Jodan’s Stormy Banks”. O impulso da esperança desta igreja é para o futuro, embora seus membros estejam tentando, com grande custo, ajudar uns aos outros a sobreviver no presente.
Os membros da igreja de Tom Robinson e Atticus Finch servem como modelos para cristãos cuja fé os levam não a abandonar este mundo, mas a servir seus próximos. C.S. Lewis descreve esse tipo de fé em Cristianismo puro e simples:
Se você estudar a história, verá que os cristãos que mais trabalharam por este mundo eram exatamente os que mais pensavam no outro mundo. Os apóstolos, que desencadearam a conversão do Império Romano, os grandes homens que erigiram a Idade Média, os protestantes ingleses que aboliram o tráfico de escravos – todos deixaram sua marca sobre a Terra precisamente porque suas mentes estavam ocupadas com o Paraíso. Foi quando os cristãos deixaram de pensar no outro mundo que se tornaram tão incompetentes neste aqui. Se você aspirar ao Céu, ganhará a Terra “de lambuja”; se aspirar à Terra, perderá ambos [1].
Harper Lee (1926-2016) escreveu sobre um tempo e lugar onde a religião cristã parecia muito diferente nos dois lados da mesma cidade. Muita coisa mudou, mas muito permaneceu o mesmo. Que nunca venhamos a prezar por uma religião socialmente conveniente em detrimento da verdadeira religião, mas, em vez disso, busquemos e oremos por justiça na terra como no céu.
#1 C. S. Lewis. Cristianismo puro e simples. Editora Martins Fontes, 2009. p. 51. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla.