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Comentário de João Calvino sobre Efésios 1.4-5
“Assim como nos escolheu, nele, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele; e em amor nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade” (Ef 1.4-5).
- Assim como nos escolheu. O fundamento e a primeira causa tanto de nosso chamado como de todos os benefícios que recebemos de Deus são aqui declarados como sendo a sua eleição eterna. Se for perguntado o motivo pelo qual Deus nos chamou para fruir o evangelho, por que ele nos concede diariamente muitas bênçãos, por que ele nos abre a porta do céu, a resposta será constantemente encontrada neste princípio, que ele nos escolheu antes da fundação do mundo. O próprio momento em que a eleição ocorreu testifica que ela é gratuita; pois, o que poderíamos ter merecido, ou que mérito possuíamos, antes que o mundo fosse criado? Quão infantil é a tentativa de refutar este argumento pelo seguinte sofisma! “Nós fomos escolhidos porque nós éramos dignos, e porque Deus previu que seríamos dignos”. Todos nós estávamos perdidos em Adão; e, portanto, se Deus, por meio de sua eleição não nos resgatasse da perdição, não haveria nada a ser previsto. O mesmo argumento é usado na epístola aos Romanos, onde falando de Jacó e Esaú, ele diz:
“E ainda não eram os gêmeos nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal (para que o propósito de Deus, quanto à eleição, prevalecesse, não por obras, mas por aquele que chama)” (Rm 9:11).
Mas, apesar de ainda não terem agido, um sofista de Sorbonne poderia responder, Deus previu o que eles praticariam. Esta objeção não tem força quando aplicada às naturezas depravadas dos homens, em quem nada pode ser visto, senão elementos para destruição.
Em Cristo. Esta é a segunda prova de que a eleição é gratuita; pois se somos escolhidos em Cristo, isso não é de nós mesmos. Não é da percepção de nada que merecemos, mas porque nosso Pai celestial nos introduziu, através do privilégio da adoção, no corpo de Cristo. Em resumo, o nome de Cristo exclui todo mérito e tudo o que os homens têm a partir de si mesmos; pois, quando é dito que somos escolhidos em Cristo, segue-se que em nós mesmos somos indignos.
Para sermos santos. Este é o propósito imediato, mas não o principal; pois não há absurdo em supor que a mesma coisa possa ter dois objetivos. O propósito da construção é que deve haver uma casa. Este é o propósito imediato, mas a conveniência de morar na casa é o propósito final. Era necessário mencionar isso brevemente; pois descobriremos de imediato que Paulo menciona outro propósito, a glória de Deus. Porém, não há nenhuma contradição aqui; pois, a glória de Deus é a finalidade mais elevada, ao que a nossa santificação está subordinada.
Isso nos leva a concluir que a santidade, a pureza e toda a excelência que se encontra entre os homens são fruto da eleição; de modo que mais uma vez Paulo expressamente exclui toda consideração de mérito. Se Deus tivesse previsto em nós algo digno da eleição, teria sido dito em linguagem oposta da que é aqui usada, a qual claramente significa que toda a nossa santidade e pureza de vida decorrem da eleição de Deus. Como, então, alguns homens são religiosos e vivem no temor de Deus, enquanto outros se entregam sem reservas a todo tipo de impiedade? Se Paulo pode ser crido, o único motivo é que estes últimos conservam a sua disposição natural, e os primeiros foram escolhidos para a santidade. A causa, certamente, não é posterior ao efeito. A eleição, portanto, não depende da justiça das obras, das quais Paulo aqui declara que a eleição é a causa.
Aprendemos também com essas palavras, que a eleição não dá ocasião à licenciosidade, nem à blasfêmia de homens perversos que dizem: “Vivamos da maneira que quisermos; pois, se fomos eleitos, não podemos perecer”. Paulo diz de modo claro que as pessoas não têm o direito de separar a santidade de vida da graça da eleição, pois:
“E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou” (Romanos 8.30).
A inferência, também, que os Cátaros, Celestinos e Donatistas extraíram dessas palavras — que podemos atingir a perfeição nessa vida — é sem fundamento. Este é o objetivo para o qual toda a jornada de nossa vida deve ser dirigida e não o alcançaremos até que tenhamos terminado a nossa jornada. Onde estão os homens que temem e evitam a doutrina da predestinação como um labirinto inextricável, que acreditam que ela é inútil e quase perigosa? Nenhuma doutrina é mais útil, desde que seja tratada de forma adequada e cautelosa, do que Paulo nos dá um exemplo, quando ele a apresenta como uma ilustração da infinita bondade de Deus, e a usa como um estímulo para a gratidão. Esta é a verdadeira fonte a partir da qual devemos extrair nosso conhecimento da misericórdia divina. Se os homens evadirem todos os outros argumentos, a eleição tapa-lhes a boca, de modo que eles não se atrevem e não podem reivindicar nada a partir de si mesmos. Mas nos lembremos do propósito para o qual Paulo se refere à predestinação, pois, se raciocinarmos com qualquer outra perspectiva cairemos em erros perigosos.
Perante ele; e em amor. A santidade perante Deus (κατενώπιον αὐτοῦ) é aquela de uma consciência pura; porque Deus não é enganado, como os homens são, por pretensões exteriores, mas Ele olha para a fé ou, o que significa o mesmo, para a verdade do coração. Se considerarmos a palavra amor como aplicada a Deus, o significado será que a única razão pela qual ele nos escolheu foi o amor dele pelos homens. Mas eu prefiro conectar esta palavra com a última parte do versículo, como significando que a perfeição dos crentes consiste no amor; não que Deus exija somente o amor, mas que este é uma prova do temor de Deus e da obediência a toda a lei.
- Nos predestinou para ele. O que se segue pretende ainda aumentar o louvor à graça divina. A razão pela qual Paulo inculcou tão fervorosamente sobre os Efésios as doutrinas da adoção gratuita por meio de Cristo e da eleição eterna que a precedeu já foram consideradas. Porém, como a misericórdia de Deus não é admitida em linguagem mais elevada em qualquer outro lugar, esta passagem merecerá a nossa atenção cuidadosa. Três causas de nossa salvação são mencionadas, e uma quarta é pouco depois acrescentada. A causa eficaz é o beneplácito de Deus, a causa material é Jesus Cristo, e a causa final é o louvor da glória de sua graça. Vejamos agora o que ele diz sobre cada um destes.
À primeira pertence a totalidade da seguinte declaração: Deus nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade. Na palavra predestinou, devemos observar novamente à ordem. Nós ainda não existíamos, e, portanto, não havia mérito nosso. A causa da nossa salvação não provém de nós mesmos, mas somente de Deus. Ainda assim, Paulo, não satisfeito com essas afirmações, acrescenta para ele. O termo grego é εἰς αὑτὸν, e tem o mesmo significado de ἐν αὑτῷ. Por esse termo, ele quer dizer que Deus não buscou uma causa fora de si mesmo, mas que nos predestinou porque esta foi a sua vontade.
Mas isso é ainda mais claro pelo que se segue: segundo o beneplácito de sua vontade. A palavra beneplácito era suficiente, pois Paulo com frequência a contrasta com todas as causas externas pelas quais os homens são capazes de imaginar que a mente de Deus é influenciada. Mas para que não permanecesse qualquer dúvida, ela usa o termo “de sua vontade”, que expressamente exclui todo o mérito. Portanto, ao nos adotar, Deus não considera o que nós somos e não se reconcilia conosco por meio de qualquer mérito pessoal. Seu único motivo é o eterno beneplácito pelo qual ele nos predestinou. Por que, então, os sofistas não têm vergonha de misturar outras considerações, quando Paulo tão fortemente nos proíbe de olhar para outra coisa senão para o beneplácito de Deus?
Para que nada ainda faltasse, ele acrescenta: ἐχαρίτωσεν ἐν χάριτι. Isso indica que, da maneira mais livre, e sem fundamentos mercenários, Deus nos concede o seu amor e favor, mesmo quando ainda não erámos nascidos, e quando ele agiu por nenhuma outra coisa além de sua própria vontade, ele estabeleceu sobre nós a sua escolha.
A causa material tanto da eleição eterna quanto do amor que agora é revelado, é Cristo, o Amado. Este nome é dado para nos lembrar que por ele o amor de Deus é comunicado a nós. Assim, ele é o bem-amado, de modo que podemos ser reconciliados por meio dele. O mais elevado e último fim é imediatamente acrescentado, o glorioso louvor de tal graça abundante. Todo homem, portanto, que oculta essa glória, está tentando derrubar o propósito eterno de Deus. Tal é a doutrina dos sofistas que buscam derrubar completamente a doutrina de Cristo, para que toda a glória da nossa salvação não seja atribuída unicamente a Deus.