Um blog do Ministério Fiel
Nossa fé não é uma trapaça
O texto abaixo foi extraído do livro Bom Demais para Ser Verdade, de Michael Horton, da Editora Fiel.
O cristianismo não é verdade porque dá certo. Em muitos casos, não “dá certo”. Ou seja, não soluciona todos os problemas que achamos que deveriam ser resolvidos. Não é uma técnica para nossa terapia pessoal, mas a verdade que Deus venceu o pecado e a morte pela cruz e ressurreição de Jesus Cristo. Aqueles que se tornaram cristãos porque alguém lhes disse que isso consertaria seu casamento, e se encontram na tribuna do divórcio, poderão até desistir do cristianismo. Aqueles que esperavam libertar-se de todos seus hábitos, tentações e desejos pecaminosos depois que se converteram, porque uma vitória repentina lhes foi prometida, poderão encontrar-se totalmente desiludidos com Deus quando perceberem que ainda são apenas pecadores salvos pela graça.
Naquele difícil funeral de um pastor, amigo, pai e irmão em Cristo que deu cabo de sua vida sofrida, muitas pessoas perguntavam, mesmo em viva voz: “Se o cristianismo não deu certo para uma pessoa como o Steve, como é que posso esperar que dê certo para mim?” Essa é uma pergunta honesta, uma pergunta compreensível. Mas pressupõe que o cristianismo endireite tudo. O cristianismo não conserta tudo, pelo menos não aqui e agora. Promete, sim, que tudo será resolvido no final da história, mas em nossa experiência no deserto, estamos peregrinando até a Cidade Santa. Alguns peregrinos encontrarão muito mais dificuldades do que voltar para o Egito na descrença. Steve não foi um daqueles peregrinos que voltou para o Egito. Outros suportarão sua sina o melhor que puderem. Steve e sua esposa foram torres de força para mim em minha própria peregrinação, quando eu os observava enfrentando desastres um após outro e voltando-se constantemente, vez após vez, para Deus e suas promessas de graça.
Mas Steve foi um peregrino para quem a caminhada para a cidade eterna acabou sendo tão pesada que ele procurou um atalho. Junto com sua esposa piedosa, ele “ansiava por uma pátria melhor” (Hebreus 11.16 NVI), mas não estava disposto a esperar mais. Não aceitou o tempo de Deus – contudo, assim mesmo, ele encontrou um mediador que intercedeu por ele à destra do Pai. Ele (assim como nós receberemos) receberá o prêmio que aguardava, mesmo em sua fraqueza.
Não estamos em situação melhor que Jó para levar Deus ao tribunal, nem por nossas provações pessoais, nem por aquelas que experimentamos coletivamente como gente de determinado tempo e lugar. Quer estejamos enfrentando tragédias em nossas famílias, quer observando, impotentes, as torres gêmeas de Nova York, fervilhantes de cidadãos como nós. Deus não nos prometeu saúde, riqueza e felicidade. De fato, ele diz a nós, que esperamos compartilhar da glória de Cristo, que também participaremos em seus sofrimentos – não apenas sofrimento em geral, mas uma provação especial em solidariedade a Cristo (Romanos 8.17). A boa nova que proclamamos é verdade, não porque ela dá certo para as pessoas na visão pragmática e utilitarista, mas porque a quase dois mil anos, na periferia da cidade de Jerusalém, o Filho de Deus foi crucificado por nossos pecados e ressurgiu para nossa justificação. Este evento histórico talvez não conserte nosso casamento, nossos relacionamentos, nossas vidas confusas, do jeito que queríamos nem no tempo que queríamos, mas nos salva da ira vindoura de Deus e nos dá nova vida, esperança e sabedoria para nossa vida aqui e agora, garantindo que no fim a dor cessará por completo. Com certeza, à vista disso, tudo mais empalidece – não é insignificante, mas é de importância secundária diante da grande questão: “ao ser humano está ordenado morrer uma só vez, e depois disto, o juízo” (Hebreus 9.27, tradução do autor). A justiça perfeita que Deus requer de nós só foi possuída por um ser humano, o redentor a quem Jó e Paulo e todos os outros santos têm buscado como abrigo da morte e do inferno. No momento que confiamos em Jesus, renunciando nossas próprias reivindicações de santidade e aceitabilidade, retirando as folhas de figo de nossa própria confecção, Deus nos veste no manto da justiça de Cristo. Pela vida de obediência de Cristo, por sua morte sacrifical e sua triunfante ressurreição, somos aceitos pelo Pai, tornados seus herdeiros, é-nos dado seu Espírito Santo e prometida a ressurreição de nosso próprio corpo mortal.
Isso significa que é seguro olharmos novamente para Deus. Como disse Jó que se apenas tivesse um advogado, ele poderia erguer os olhos a Deus em seu sofrimento, assim também todos nós podemos chorar no ombro do Pai em nossas tardes penosas, pois não temos o que temer. Não é a sua ira que nos manda dor e sofrimento se pertencemos a ele, porque ele intervém sobre os desígnios de Satanás e transforma até mesmo o pecado e a maldade em mensageiros de sua graça. Mesmo que não vejamos seu projeto em nossa própria vida ou nas grandes tragédias da história, temos confiança nos propósitos de Deus, porque vemos, sim, o propósito óbvio revelado na maior injustiça perpetrada pela humanidade: a crucificação do Senhor da glória. Como Jó em sua aflição, e Estêvão em seu martírio, podemos enfrentar até mesmo a morte com confiança: “Eis que vejo os céus abertos e o Filho do Homem, em pé à destra de Deus” (Atos 7.56).
Embora Jó estivesse certo em reconhecer que não estava em situação para julgar a Deus, é o caso que Deus mesmo é representado nesse livro surpreendente como quem se colocou exatamente nessa situação. De fato, a provação de Jó é simplesmente “uma peça de teatro dentro de uma peça”, uma sub-trama dentro da trama maior do julgamento cósmico entre Satanás e o Deus trino da história. Entretecida a toda a história de Israel e dos santos está aqui a trama das duas sementes: a semente da mulher e a semente da serpente, a linhagem da promessa da aliança que daria o Messias e os “principados e poderes” desta presente época do mal, ambos lutando para produzir dois planos antitéticos para este mundo. As provações de Jó ocorrem dentro desse tribunal maior em que Satanás ainda procura seduzir o júri a crer que Deus não é bom suficiente nem poderoso suficiente para exigir sua reverência.
Contudo, Deus triunfa porque existe um Redentor, um mediador que pisou a cabeça da serpente e após banir o pecado de sua presença para sempre, endireitará todos os males e fará novas todas as coisas. As nossas provações jamais serão incorporadas às Escrituras canônicas, mas podem também participar desse julgamento cósmico, onde Deus se inclina até nosso nível, permitindo que ele seja processado diante do tribunal da história.