Um blog do Ministério Fiel
4 maneiras como a Netflix perpetua as ansiedades modernas
Eu sou assinante da Netflix desde os dias de pré-streaming, quando era apenas um serviço de DVD por correio que enfrentava a [rede de locação de DVDs] Blockbuster. Em nossos dias de namoro, minha esposa e eu assistimos sistematicamente todas as gloriosas cinco temporadas de Friday Night Lights. Agora, cinco anos depois do casamento, muitas vezes somos cativados por episódios de The Crown ou The Great British Baking Show nas noites em que estamos física e mentalmente exaustos.
Tenha certeza, a Netflix pode ser algo maravilhoso. É conveniente, relaxante e cada vez mais repleta de alguns dos melhores programas de TV e filmes, desde Stranger Things até Mudbound.
Porém, como a maioria das coisas que podem ser maravilhosas, a Netflix também pode não ser tão excelente. Recentemente, tenho refletido sobre alguns dos aspectos problemáticos do que é a Netflix e, talvez de modo mais significativo, sobre as formas como ela incorpora e perpetua algumas das ansiedades de nossa era secular.
1. A ansiedade de não ter uma programação diferente da nossa
Não faz muito tempo que a televisão — entre outras coisas em nosso mundo — tinha a sua própria programação à qual tínhamos que nos adaptar. Programas de TV iam ao ar em determinados dias e horários. Ou você se organizava ou perdia-os. Era um “compromisso de TV”: Friends da rede NBC e “Must See TV” nas noites de quinta-feira, a programação TGIF da rede ABC nas noites de sexta-feira e assim por diante. Além de certos eventos ao vivo regulares (por exemplo, Monday Night Football), esses dias acabaram.
A Netflix incorpora o novo paradigma: TV que se ajusta à sua programação. Não há dias ou horários fixos, nem ritmos previsíveis, nem temporadas liberadas lentamente, nem espera. É o que você quer, quando você quer. Temporadas inteiras em um dia, se você quiser. De certa forma, essa mudança reflete a mudança pós-moderna de narrativas comuns para a fragmentação infinita de histórias individuais. Em vez de encaixar a história de alguém em uma narrativa abrangente, hoje tudo se adapta a nós. Tudo é personalizável, ajustado aos nossos horários e preferências.
Os cristãos devem ver sinais de alerta nessa mudança, que frequentemente se aplica não apenas aos nossos hábitos de uso de mídias, mas também à nossa vida espiritual, levando à fé de consumidor onde os caminhos e preferências espirituais individuais têm precedência sobre a autoridade bíblica e comunidade.
Mas essa mudança produz ansiedade por pelo menos dois motivos. Primeiro, porque fomos criados para ritmos, não imprevisibilidade totalmente sem objetivo. E segundo, porque criados para comunidade, não para experiências do tipo “escolha a sua própria aventura” de mediação solitária.
2. A ansiedade de ter muitas opções
Se você tem a Netflix, provavelmente experimentou o que chamo de “paralisia Netflix”: o momento em que você está tentando decidir o que assistir, mas fica estático porque simplesmente não consegue escolher. Existem muitas opções e nenhuma orientação externa para a sua seleção. Você está preocupado em perder tempo e a pressão de “essa será a escolha perfeita?” pesa muito.
Quando tudo está à nossa disposição, em nossa programação, e de acordo com nosso gosto, naturalmente experimentaremos o estresse sob o peso da liberdade consumista e do “medo de perder algo”.[1] Nós faremos a escolha errada? Das 15 séries que seus amigos têm falado nas mídias sociais, qual delas você deveria assistir? Essas perguntas podem ser enfraquecedoras, aumentando a ansiedade existente que sentimos em um mundo com carga excessiva de escolhas.
Outro aspecto da escolha excessiva é a opção de assistir de modo compulsivo. Antigamente, era preciso ter paciência para esperar por episódios semanais, acompanhar uma série por meses a fio. Porém hoje, podemos ver temporadas inteiras de séries de TV em um fim de semana, assistindo tudo o mais rápido possível, porque ainda há muitos outros programas a serem vistos.
Mas tudo isso só nos prende ainda mais no consumismo — e seus horríveis excessos e descontentamentos que também causam estragos em nossas vidas espirituais. O excesso de igrejas e caminhos teológicos à nossa disposição espelha a sobrecarga de escolha da Netflix. Nós nos engajamos em “compras na igreja”, que não é diferente da verificação das opções da Netflix, procurando o ajuste perfeito, mas nos sentindo previsivelmente ansiosos que a busca nunca venha a terminar.
3. A ansiedade de ter nossas visualizações observadas
A Netflix ganhou as manchetes em dezembro com um tweet assustador: “Para as 53 pessoas que assistiram A Christmas Prince todos os dias nos últimos 18 dias: Quem te feriu?”.
O tweet incomodou muitos, porque nos lembrou o quanto a Netflix sabe sobre nossos hábitos de visualização. O site de streaming rastreia dados sobre o que, quando, onde e quanto tempo de cada conteúdo consumimos. Também rastreia nossas pesquisas e registros de dados sempre que pausamos, avançamos ou rebobinamos.
Como com qualquer coisa na Internet ou em nossos smartphones, a desvantagem da conveniência e acesso amplo é o preço de ter dados monitorados. A Netflix (como o Facebook e o Google, entre outros) rastreia todos os nossos movimentos para que possam ser entregues aos anunciantes em pacotes mais abrangentes e personalizados. A TV sempre funcionou dessa maneira, na medida em que pode monitorar nosso comportamento de consumidor. Mas a Netflix leva isso para outro nível completamente diferente. Embora possa haver algum benefício em saber que alguém está atento ao que você assiste (a realidade das “pegadas online” oferece uma medida de responsabilidade inescapável), acrescenta outra camada de ansiedade a um ambiente de mídia em que estamos cada vez mais expostos a cada clique que fazemos.
4. A ansiedade de experimentar a vida em fragmentos desconectados
Uma das coisas que a Netflix invariavelmente permite é uma tendência infeliz de assistir narrativas em fragmentos dispersos: 16 minutos aqui, um breve intervalo para o almoço e assim por diante até completar algo. Na teoria, isso é brilhante, pois permite “otimizar” os momentos intermediários da vida (por exemplo, ao andar no metrô, esperar na fila do Departamento de Trânsito). Mas, na prática, dificulta a experiência completa de assistir narrativas que devem ser experimentadas não em segmentos fragmentados, mas como um todo coerente.
Isso também perpetua a tendência existente hoje em direção ao que Neil Postman chamou de modo de discurso “Agora… este” no qual “os espectadores raramente são obrigados a prosseguir em qualquer pensamento ou sentimento de uma período de tempo para outro”. Nós consumimos alguns minutos de Chopped, seguido por um documentário sobre refugiados, após a segunda metade de um episódio de Narcos, ao mesmo tempo (provavelmente) acompanhando o Twitter ou o Instagram em nosso celular, vendo as fotos de nossos amigos entre comentários políticos e manchetes sobre o clima.
Essa experiência aleatória de mídia exacerba nossa ansiedade sobre a desconexão nesse mundo (ironicamente) hiperconectado. Com duas ou três telas diante de nós a todo momento, cada uma com várias janelas, guias e aplicativos abertos, nos sentimos “puxados” para todos os lados. Há menos espaço em nossas vidas para a quietude, atenção e gratidão; menos paciência para o contexto e o panorama completo. Esperamos tudo para agora e idolatramos o imediatismo, perdendo de vista o passado e o futuro e exacerbamos a importância do que está acontecendo agora.
Mas para os cristãos, o que está acontecendo agora deve ser sempre visto à luz do contexto eterno: quem é Deus, o que ele fez e o que ele fará. Devemos resistir à tentação de idolatrar o imediatismo — seja exacerbado pela Netflix ou pelo Twitter ou pelo noticiário da TV. Nós pertencemos a um contexto maior, uma família eterna e uma narrativa grandiosa. Na medida em que nos lembramos disso e mantemos uma perspectiva mais ampla, as ansiedades de nossa época tornam-se um pouco menos enfraquecedoras.
#1 N.T.: No original FOMO, uma sigla para “fear of missing out” que se refere ao hábito de constantemente checar as redes sociais por temor de “perder algo” que esteja acontecendo agora.