Um blog do Ministério Fiel
O que Atanásio faria: a grande tradição é suficiente?
Quase sempre, a cada seis Domingos, minha igreja, em Washington, professa sua fé utilizando as palavras do Credo Apostólico. Na semana seguinte, fazemos o mesmo com o credo de Nicéia de 325 e, uma semana depois, com o credo de Nicéia de 381. Quando apresentamos esses credos, alegramo-nos no fato de que, por quase dois mil anos, os cristãos têm confessado sua fé no Senhor Jesus Cristo, usando as palavras desses credos.
Quando eu estava na igreja de Louisville, Kentucky, chegamos até mesmo a adotar o Credo de Nicéia de 381 como parte de nossa declaração de fé. Nossa esperança era mostrar que, longe de sermos uma igrejinha inflexível e impertinente, tínhamos permanecido na longa e profunda tradição da confissão e do testemunho cristão. Não éramos uma ilha e queríamos que o mundo soubesse disso.
Aprecio muito os credos antigos. Eles são elegantes e belos em sua simplicidade, e expressam algumas das verdades mais básicas do cristianismo, com um admirável cuidado e precisão na formulação das frases. Jesus Cristo é “gerado, não criado”. O credo de Nicéia afirma: Ele é “Luz da Luz” e “verdadeiro Deus de Verdadeiro Deus”, não apenas é semelhante à luz ou semelhante a Deus, mas “de uma só substância com o Pai”. Os cristãos podem ser instruídos de forma maravilhosa ao serem levados a confessar sua fé com essas expressões provadas pelo tempo e cuidadosamente lapidadas.
A Grande Tradição: Um Novo Ponto de Convergência para a Unidade?
Nos anos recentes, entretanto, parece haver um impulso entre muitos evangélicos para tentar transformar esses credos antigos – a “Grande Tradição”, como a coleção dos credos primitivos é chamada – em algo mais. Eles têm sido transformados num tipo de ponto de convergência para aqueles que gostariam de ver as diferenças teológicas que existem entre os evangélicos e, bem, qualquer um, restringidas e suprimidas.
Simplificando, o argumento é: é nessa Grande Tradição – que geralmente compreende o Credo Apostólico, os dois Credos de Nicéia, o credo de Atanásio e o Credo da Calcedônia – que encontramos a essência do que significa ser cristão. Esses sãos os credos ecumênicos, e o argumento continua dizendo: são os credos universais adotados pela igreja em seus primórdios e, por essa razão, formam um fundamento necessário e até mesmo suficiente para a unidade entre os cristãos. Dizem que se você puder afirmar esses credos, então, você terá tudo o que for necessário para ser considerado e acolhido como um cristão.
Por mais que eu ame esses credos, argumentaria que essa forma de pensar, enfim, não se sustenta. No final das contas, a Grande Tradição, ao menos a tradição definida como sendo as palavras desses credos, simplesmente não serão suficientes para fundamentar a unidade Cristã. Deixe-me dar algumas razões para isso.
Por que a Grande Tradição não é suficiente?
Primeiro, é importante lembrarmos que a Grande Tradição é, em certa medida, apenas antiga. Por mais antigos que esses credos sejam, eles não ocupam a posição de fonte da verdade cristã. Eles não são tão antigos, nem possuem a mesma autoridade que a Bíblia. Na verdade, os credos derivam completamente da Bíblia e, por essa razão, dependem do que ela ensina. Geralmente, a tendência é pensar que porque os credos são antigos e respeitados, tudo o que dizem é verdade. Não deveríamos tomar isso por certo; em vez disso, devemos testar os credos pelo padrão das Escrituras.
Segundo, temos que admitir que a Grande Tradição é imperfeita em si mesma. Se formos utilizar os credos como nosso padrão de unidade, teremos que decidir qual versão de cada credo utilizaremos. A verdade é que não existe uma “Grande Tradição” perfeitamente imaculada. Todos esses credos foram debatidos, corrigidos, alterados, tiveram palavras modificadas e foram refeitos. Eles até se tornaram a causa de grandes divisões nas igrejas. Por exemplo, qual versão do Credo Apostólico podemos tomar como parte de nossa Grande Tradição; aquela que diz que Jesus “desceu ao inferno” ou aquela que omite essa frase? E mais, qual versão do credo de Nicéia utilizaremos; a que inclui a palavra filioque (afirmando que o Espírito Santo precede não só do Pai, mas também do Filho) ou aquela que a rejeita de forma deliberada? Pode ter havido um tempo em que as pessoas pensavam que o credo ecumênico fosse um alicerce suficiente para a unidade entre os cristãos; entretanto, esse tempo também acabou, de modo absoluto e dramático, em 1054.
Terceiro, a grande tradição é incompleta O que quero dizer com isso é que todos os credos antigos foram escritos em resposta a alguma heresia específica. O credo de Nicéia, por exemplo, gasta um bom tempo explicando o fato de Jesus ser da mesma substância que o Pai, porque era precisamente essa a questão em debate quando esse credo foi escrito. Em conseqüência disso, ele simplesmente não trata de outras verdades de forma tão extensa e com o mesmo nível de detalhes teológicos. É difícil de acreditar, mas tudo o que a versão de 325 diz sobre o Espírito Santo é “Nós acreditamos nele”! Bem, melhor pra você!
Isso significa que os credos definiam os limites do cristianismo ortodoxo somente quando surgiam questões específicas. Eles fortificavam os vãos da parede que estavam sofrendo um ataque específico. Não tinham a pretensão e nem a intenção de expor os limites completos e suficientes da ortodoxia. É lógico que isso não significa que agora eles não sejam úteis para nós. Eles são. Os credos antigos definem muito bem os limites de muitas verdades-chave da fé cristã, e seria um erro não dar atenção a eles. Porém, não deveríamos pensar que eles definem os limites de toda verdade, nem pensar que eles contém tudo o que precisamos para definir e defender a fé.
O fato é que há muitas verdades que estão tão próximas do cerne do evangelho quanto aquelas tratadas nos credos e, no entanto, os credos não tratam delas com detalhes. E por que não? Porque essas verdades não estavam sendo fortemente desafiadas até séculos atrás. Um exemplo tremendamente importante disso é a doutrina da justificação somente pela fé. Na posição de protestantes, entendemos que essa doutrina encontra-se bem no centro do evangelho – a salvação procede totalmente da virtude da vida e da morte de Cristo imputada a nós, e não vem, de modo algum, de alguma virtude ou de qualquer coisa que esteja em nós. De certa forma, negar isso é o mesmo que colocar a fé em alguém, em vez de Cristo. No entanto, esse debate não atingiu o seu ponto crítico até o século XVI (talvez, um pouquinho antes).
Quarto, a Grande Tradição é aberta à várias interpretações. Há pessoas em todos os tipos de tradições “cristãs” que poderiam afirmar as palavras dos credos antigos, e também aquelas que entendem essas palavras de um modo completamente diferente do que você e eu entendemos. É claro que se você deseja fundamentar a unidade não só nas palavras, mas numa interpretação específica dessas palavras – como, por exemplo, na interpretação dos reformadores em oposição à interpretação do Papa ou dos Patriarcas – está tudo muito bem. Eu poderia ser totalmente a favor disso, pois, nesse caso, estaríamos exigindo, por exemplo, que as pessoas não interpretassem a frase “um só batismo para a remissão de pecados” como sendo a regeneração por meio do batismo. E assim por diante. Mas novamente, isso nos jogaria de volta para aqueles argumentos teológicos desastrosos sobre a Grande Tradição, dos quais estamos tentando escapar por todos os meios, não é mesmo?
Conciliar as Diferenças não Preserva o Evangelho
Gostem ou não, o evangelho sempre tem sido defendido e esclarecido quando fazemos distinções, não quando as ignoramos. Como protestantes evangélicos, cremos em coisas que os católicos romanos não crêem. E eles acreditam em coisas nas quais não acreditamos. E ambos cremos em coisas em que a Igreja Ortodóxica Oriental não crê, e vice-versa. Na verdade, a Grande Tradição, por si só, permanece como um testemunho da necessidade de se delinear distinções, a fim de proteger o evangelho.
Não é uma grande ironia que a “Grande Tradição”, forjada no ardor das disputas brutais contra a mentira, agora esteja sendo utilizada por alguns como um meio conciliar as distinções e minimizar as diferenças? Isso é vergonhoso, pois os homens que escreveram e adotaram esses credos não estavam, de forma alguma, preocupados em minimizar as distinções. Eles estavam preocupados em fazê-los para que, por meio deles, esclarecessem o evangelho, defendendo-o dos erros e desafios. Esse trabalho continuou durante muito tempo após o falecimento desses homens; e agora podemos ver mais de 1500 anos de esclarecimentos, definições e distinções feitas em defesa do evangelho. Portanto, use esses credos e os ame. Mas se jogarmos fora esses 1500 preciosos anos de distinções e fizermos com que nossa unidade se apóie, de forma não pouco arbitrária, em poucos credos (de versões específicas) dos séculos III, IV e V, acabaremos obscurecendo o evangelho em vez de esclarecê-lo.
De qualquer modo, duvido que Atanásio nos aplaudisse por isso.