Um blog do Ministério Fiel
O Estado é laico graças a Deus
É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – Estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
(Art. 19 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988)
Estado laico: definição e surgimento
O desenvolvimento do conceito de Estado laico como fato moderno depende fundamentalmente do cristianismo. Ele tem suas raízes especialmente no movimento reformado do século XVI e XVII. O reformador João Calvino, por exemplo, afirmava a distinção entre reino espiritual e reino político da seguinte forma: “Temos que considerar cada uma dessas coisas em si, segundo as distinguimos: com independência uma da outra”.[1] Para Calvino, há leis específicas que regem cada uma dessas áreas; cada um desses reinos é constituído por Deus para governar aspectos distintos da vida.
Naquela época, o poder papal mantinha um duplo mandato, político e religioso. Foram os reformadores que efetivamente colocaram em xeque essa união. Compreendiam que Deus é soberano sobre os dois mandatos, mas ambos são distintos por lidarem com aspectos diferentes da sociedade.
Além disso, o movimento reformado foi fundamental para a formação futura das democracias republicanas modernas, como, por exemplo, a Inglaterra e os Estados Unidos. Visto que um governo totalitário busca unir as duas esferas de poder (espiritual e política), transformando o Estado em religião, a separação desses poderes é um dos grandes empecilhos para o totalitarismo. Por causa disso, o cristianismo sempre será um grande inimigo das ditaduras e dos governos totalitários.
O Brasil é um país de grande maioria cristã. A nossa constituição reconhece isso quando afirma que ela foi promulgada “sob a proteção de Deus”. Essa expressão tem grande fundamento histórico, mas é preciso reconhecer que há uma explicação teológico-filosófica por trás dela.
Foram justamente os adoradores do Deus cristão que asseguraram as liberdades elencadas na constituição. Somente em uma sociedade influenciada por uma cosmovisão que acredita em um Deus pessoal, triúno e distinto da natureza é possível vislumbrar os aspectos morais absolutos que regem essa sociedade, independente da relação direta com esse Deus.
Em outras palavras, os conceitos de dignidade da vida, democracia e laicidade que conhecemos estão amparados pela noção de uma humanidade criada com dignidade inerente, moralmente livre e plural. Não é necessário acreditar no Deus cristão para ser beneficiado por essa sociedade, mas uma vez que seus fundamentos basilares são retirados, a consequência será a sua ruína.
Por isso, com exatidão, definiu o ilustríssimo jurista Dr. Ives Gandra Martins: “Estado laico é aquele em que as instituições religiosas e políticas estão separadas, mas não é um Estado em que só quem não tem religião tem o direito de se manifestar. Não é um Estado em que qualquer manifestação religiosa deva ser combatida, para não ferir suscetibilidades de quem não acredita em Deus.” [2]
Laicismo vs. Estado laico
Em seu livro Imaginação Totalitária, o filósofo Francisco Razzo trata da imaginação totalitária como tendo o seu ápice no desejo último de “glorificar o poder do Estado como detentor do monopólio não do uso legítimo da violência, mas do monopólio simbólico da verdade absoluta e da imortalidade, portanto, da experiência última da ordem final e, consequentemente, da decisão de vida e a morte”.[3]
A origem disso está na crença da autonomia da razão, que pressupõe ser ela capaz de dar conta da realidade com neutralidade e independência das crenças religiosas.[4] Essa suposta razão terá o Estado como manifestação máxima e, consequentemente, o Estado será a expressão mais elevada da sociedade. Ele será o único capaz de proporcionar ao indivíduo as suas liberdades, devendo assim, intervir na família, relações comerciais, educação e outras instituições, como o critério (supostamente) racional que dá significado e coerência ao todo da sociedade.[5]
É exatamente isso que ocorre no chamado laicismo, quando a religião é relegada à vida privada e o Estado não só não é religioso, mas também deve coibir as manifestações públicas religiosas. A importância da religião é definida pelo indivíduo em sua vida privada, enquanto que, para o Estado, é tratada negativamente, portanto não tem espaço público. Esse laicismo, herdado pelo Iluminismo e Revolução Francesa, pais de todos os governos totalitários da modernidade, é aplicado na França.
Brasil e Estado laico
No Brasil, por outro lado, se reconhece o valor da religião para o indivíduo e para a própria fundação do Estado. Não é à toa que símbolos cristãos podem ser encontrados em repartições públicas, num reconhecimento de que o Estado brasileiro é devedor da religião cristã. Nada disso afeta a laicidade adotada pelo Brasil, pois a manifestação religiosa não é somente um direito do cidadão, como também é um aspecto da humanidade.
Isso pode ser atestado com o artigo 19 da Constituição. Esse artigo salvaguarda o direito ao culto, ainda que esclareça que o culto nunca deve ser estatal. De outra sorte, o Estado poderá, quando achar por bem, ter uma aliança de colaboração com os grupos religiosos para o interesse público. Isso significa que as igrejas podem ser ouvidas para ajudar o Estado a administrar determinadas áreas.
Essa “humildade” estatal é fundamental para a distinção entre Estado e Igreja. Isso porque o Estado não estaria se sobrepondo sobre as instituições eclesiásticas, as famílias, as relações comerciais, etc. O Estado é, ao invés disso, uma esfera de soberania distinta (para usar o conceito do pastor holandês Abraham Kuyper), administrada por leis próprias, tal como outras instituições.
A recente discussão sobre a oração incluída no primeiro ato de pronunciamento do presidente eleito Jair Messias Bolsonaro[6] precisa levar em consideração a liberdade religiosa e de manifestação, mesmo de uma figura pública. A oração em nada afeta a laicidade do Estado; pelo contrário, a garante. Ao demonstrar que ele, o presidente eleito, está submisso a Deus e comprometido com a verdade da sua Palavra, Bolsonaro faz menção ao seu compromisso com a democracia, a justiça e o bem-estar do cidadão. Por meio da oração, o presidente eleito está definindo o Estado como uma das instituições da sociedade, mas não a mais importante.
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[1] CALVINO, João. Institutas. 3.XIX.15.
[2] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-nov-26/ives-gandra-estado-laico-nao-estado-ateu
[3] RAZZO, Francisco. Imaginação Totalitária: Os Perigos da Política como Esperança. São Paulo: Record, 2016, p. 241.
[4] Para ver a refutação desta crença veja DOOYEWEERD, Herman. Crepúsculo do Pensamento Ocidental. Brasília: Monergismo, 2018.
[5] Veja mais sobre isso em DOOYEWEERD, Herman. Estado e Soberania: Ensaios sobre Cristianismo e Política. São Paulo: Vida Nova, 2014, p. 39-96.
[6] Disponível em: https://www.revistaforum.com.br/cria-um-pouco-de-preocupacao-diz-miriam-leitao-sobre-oracao-de-bolsonaro/