Um blog do Ministério Fiel
Você agradeceu a Deus por este motivo?
Philip Yancey[1] conta uma história interessante em um dos seus escritos acerca do Dr. Paul Brand. Esse doutor foi o chefe de um dos principais leprosários na América e após anos de estudo sobre lepra, descobriu que a causa para as perdas dos membros (mãos, pés, dedos) não era a lepra em si, mas sim acidentes causados pela insensibilidade à dor. A lepra somente entorpecia os sentidos dos membros nas extremidades. De acordo com Brand, a razão para a queda da pela e a perda dos membros era porquê o sistema de alerta para a dor estava ausente deixando então o leproso sem nenhuma sensibilidade. O leproso facilmente se envolvia em acidentes por não perceber que se machucava.
Outros leprosos foram estudados na África e Ásia e a tese de Brand foi confirmada. Em alguns países era comum um leproso perder a pela toda de sua mão porque a colocava onde não devia, uma panela fervendo ou uma máquina em funcionamento. Eles agiam assim por estarem isentos à dor. Outros, tinham seus dedos comidos por ratos de madrugada e não percebiam. Não era a lepra que estava mutilando-os, mas a falta de sensibilidade.
A frase famosa de Brand era “Thanks God for pain” (obrigado Deus pela dor). Na lógica do doutor, pela ausência de dor, muitos morriam, mas se ao menos pudessem senti-la, viveriam.
O ensinamento bíblico sobre o tema do sofrimento não é diferente da lógica do Dr. Brand. Na verdade os escritores bíblicos nos ensinam que assim como a dor física é um alerta para o cérebro, o sofrimento é um alerta para a nossa alma. Como Lewis disse em seu livro[2], o sofrimento é o “megafone” de Deus nos alertando que há algo de muito errado nesse mundo, não deveríamos buscar a salvação por aqui, mas buscar refúgio fora dele, no Senhor.
Tiago, o irmão de Jesus, aborda esse tema em sua carta em algumas passagens e também nos orienta em como vivermos perante essa realidade. Logo no segundo versículo da carta ele diz: “Meus irmãos, considerem motivo de grande alegria o fato de passarem por diversas provações” (Tg 1.2). Versículos como esses causam estranheza em muitos hoje em dia (inclusive cristãos!). Em um cristianismo que prega o “positivismo”, o “poder da fé forte” e uma teologia embasada em vitória pessoal, esse verso será facilmente menosprezado (eu nunca vi um pregador da teologia da prosperidade pregá-lo). Mas ainda assim, essa é a palavra de Deus para nós. Devemos considerar motivo de grande alegria (veja a ênfase no “grande”) ao passarmos por provações. Será que Tiago diria como Dr. Brand: “obrigado Deus pela provação!”? Acredito que sim.
Precisamos entender o que Tiago quer dizer com πειρασμός (provação). Essa palavra pode ter pelo menos duas traduções possíveis, “provações” ou “tentações”, o contexto deve determinar o que o autor tem em mente. No nosso caso, levando em consideração o verso 12 do primeiro capítulo[3], a tradução mais provável é “provação”, ou seja, uma situação difícil vivenciada que oferece uma oportunidade para a fé ser testada. Se isso é verdade, então devemos ver as provações como um instrumento divino para o nosso bem, para o nosso crescimento e amadurecimento.
Veja como Tiago entende que a provação está a serviço de Deus: “pois vocês sabem que a prova da sua fé produz perseverança” Tg 1.3. Existe um propósito divino nas nossas provações, elas trabalham a nosso favor, produzem em nós perseverança[4]. Devemos lembrar aqui dos leprosos do Dr. Brand, que pela falta de sensibilidade à dor estavam morrendo. Da mesma maneira, cristãos sem provações não perseverariam, não seriam aperfeiçoados para o último dia! Essa é a razão de Tiago dizer que as provações são motivos de grande alegria, não é um apelo ao masoquismo, mas é a consciência de que elas servem a um propósito divino maior.
Precisamos fazer um importante parêntesis aqui e lembrar do nosso contexto brasileiro mais uma vez. Tiago não diz que os cristãos estavam sofrendo por causa de um pecado específico, maldição hereditária, falta de fé forte, por não terem dado o dízimo ou não terem cumprido com as exigências de uma determinada campanha. Nada dessa teologia cabe no contexto de Tiago. Ao mesmo tempo não lemos no texto instruções da parte de Tiago para lutarmos contra essas provações, seja por palavra profética, decretando palavras de vitória ou amarrando Satanás (no final da carta ele nos orienta a “sujeitarmos a Deus e a resistir o diabo”, Tg 4.7). Mas aqui Tiago nos orienta duas coisas aqui: considera-las com alegria e saber (ter o conhecimento) de que elas são instrumentos nas mãos de Deus para a nossa perseverança. Receio que pouca atenção tem sido dada a essas verdades hoje em dia.
Mais um detalhe importante merece o nosso destaque, a palavra “meus irmãos”[5] (ἀδελφός). Tiago está escrevendo para verdadeiros crentes no Senhor Jesus Cristo. Não está escrevendo para desviados ou incrédulos. Isso nos ensina que é esperado e próprio que cristãos sofram. A Bíblia desconhece a ideia de que pelo fato de estarmos em Cristo Jesus, estamos blindados ao sofrimento, pelo contrário, é por estarmos em Cristo que sofremos com propósito.
No caso desses cristãos para os quais Tiago escreve, as tribulações eram desde viuvez e orfandade (1.27), processos judiciais movidos por ricos (2.6), doenças (5.14), retenção de salário e opressão social e financeira por parte dos patrões ricos (5.1-6)[6]. Tudo isso e muito mais pode acontecer a verdadeiros irmãos e irmãs na fé, não estamos isentos a essas situações. O apóstolo Paulo também cita em Romanos uma lista de tribulações que devem ser esperadas por nós: tribulação, angústia, perseguição, fome, nudez, perigo e espada (Rm 8.35). São nessas coisas, segundo o apóstolo, que “Deus age para o bem daqueles que o amam, dos que foram chamados de acordo com o seu propósito” (Rm 8.28). Tanto Paulo, quanto Tiago (e outros escritores bíblicos) nos ensinam que devemos esperar por essas tribulações.
Temos de ser sinceros aqui, precisamos assumir que não é fácil passar por tribulações, não há prazer em sentir dor, em perder alguém querido, em lutar com uma doença terminal, ansiedade, disfunções físicas, etc. Nada disso é prazeroso. Não estou afirmando que devemos viver com um sorriso falso no rosto enquanto a dor é intensa. Tão pouco sou a favor do escapismo ou uma postura que menospreza o sofrimento humano. O meu apelo é para lembramos constantemente das verdades divinas para podermos “suportar” com “paciência” esses dias maus. Tiago diz que devemos ser “pacientes até a vinda do Senhor” (Tg 5.7). Ser paciente é ter “fôlego longo” para aguentar toda a corrida. É não esmorecer ou desistir, mesmo que seja uma jornada cansativa[7]. Precisamos, portanto, ter consciência do propósito divino nas tribulações e paciência para não pecarmos enquanto sofremos. Jamais podemos dizer que “somos tentados por Deus” (Tg 1.13) como fez Adão no Éden[8]. Somos tentados a pecar durante o nosso sofrimento pela nossa própria cobiça (1.14). Necessitamos de sabedoria divina (1.5), consciência bíblica e paciência.
Uma última pergunta deve ser feita: “vale a pena?”. Vale a pena passarmos por tudo isso? Vale a pena suportarmos de modo sábio e paciente nossas tribulações? Vale a pena não pecarmos contra Deus enquanto sofremos? Sim vale! Tiago nos lembra que após esse breve período de provação que passamos nessa existência, receberemos “a coroa da vida, a qual o Senhor prometeu aos que o amam” (1.12). O nosso sofrimento deve produzir em nós esse tipo de esperança, aquela que nos foi concedida pela morte e ressurreição de Cristo, a vida eterna! Cristo deve ser mais desejado por nós a medida que nossos sofrimentos aumentam. Devemos lembrar que um dia estaremos com nosso Senhor ressurreto e ele nos dará eterno descanso.
Jamais pensemos que Deus foi indiferente ao nosso sofrimento. Ele já resolveu o nosso problema, enviou seu próprio Filho, esmago-o na cruz, para que por toda eternidade desfrutássemos de vida abundante. As marcas que Cristo carrega eternamente em seu corpo é uma prova de que Deus não foi negligente com a nossa dor. Assim como Cristo sofreu pacientemente e sem pecado, assim devemos suportar o nosso sofrimento.
Portanto, temos pelo menos um motivo para sermos gratos a Deus nesse ano que passou, as nossas “tribulações”. Podemos dizer, assim como Tiago e Dr. Paul Brand:
“Graças a Deus pela dor!”
[1] Philip Yancey é um escritor e jornalista cristão americano. Também é editor geral do “Christianity Today”.
[2] Livro: O problema do sofrimento
[3] “Feliz é o homem que persevera na provação, porque depois de aprovado receberá a coroa da vida que Deus prometeu aos que o amam.” Tg 1.12 (NVI).
[4] Rm 5.3: “Não só isso, mas também nos gloriamos nas tribulações, porque sabemos que a tribulação produz perseverança;”
[5] Tiago diz “meus irmãos” 19 vezes em 17 versos.
[6] Ver “Interpretando o Novo Testamento: Tiago” de Augustus Nicodemos Lopes
[7] Robertson, A. T. (1933). Word Pictures in the New Testament (Jas 5:7). Nashville, TN: Broadman Press.
[8] Disse o homem: “Foi a mulher que me deste por companheira que me deu do fruto da árvore, e eu comi” (Gn 3.12).