Um blog do Ministério Fiel
A narrativa reversa de Gênesis em “Bird Box”
Bird Box começa no inferno.
Inferno, neste caso, é uma catástrofe global em rápida escalada, uma presença de criaturas que, ao serem vistas, levam a uma morte súbita e violenta por suicídio. A única maneira de se salvar é não olhar para esse mal. A sobrevivência depende de ficar atrás de janelas escuras quando dentro e usar uma venda quando fora.
Adaptado de um romance de 2014, o filme original da Netflix (dirigido pela cineasta dinamarquesa Susanne Bier) bateu recorde, sendo visto quarenta e cinco milhões de vezes dentro de uma semana após seu lançamento. Como um filme de suspense, o Bird Box é intenso. (Ele manteve a adrenalina dessa viciada em suspense durante todos os 124 minutos.) As cenas de suicídio são tão perturbadoras que algumas pessoas (compreensivelmente) alertam os telespectadores que lutam contra doenças mentais ou pensamentos suicidas.
O conteúdo de suspense é aumentado pela estrutura engenhosa da história, que efetivamente “corta”, para o passado e para o futuro, as cenas que ocorrem pouco antes, durante e vários anos após o início do apocalipse. Esta ordem não cronológica, no entanto, faz mais do que apenas criar suspense, ela também destaca o desenvolvimento do personagem central, Malorie (Sandra Bullock), de uma mãe relutante para uma mãe amorosa.
Horror da Parentalidade
Este tema da parentalidade é uma das razões pelas quais muitos comparam Bird Box ao filme do ano passado Um Lugar Silencioso, deixando alguns se perguntando se o primeiro simplesmente imitou o último (o que não é o caso, já que Bird Box foi publicado em 2014, com os direitos do filme vendidos em 2013 antes do lançamento do livro). Mesmo assim, as semelhanças entre os dois filmes são notáveis. Os telespectadores não versados no gênero podem não perceber o quão central é o papel dos pais – seja ele bom ou ruim – em filmes de terror, de Carrie a Halloween e The Shining. Tanto Um Lugar Silencioso quanto Bird Box retratam pais e parentalidade em uma luz positiva (tradução em breve) – um inesperado, mas bem-vindo realinhamento de um tropo comum.
O horror nesses dois filmes também está diretamente ligado aos sentidos – ouvir em A Quiet Place e avistar em Bird Box. Nesta era de sobrecarga sensorial (manifestada, crescentemente e não surpreendentemente, em distúrbios sensoriais), esses filmes demonstram como o gênero de terror sempre lida de alguma forma com o que mais nos assusta em qualquer idade.
O que assusta Malorie é que ela está se tornando mãe. O filme sugere que seu medo de se tornar mãe está diretamente ligado aos problemas de seus próprios pais. Em uma conversa com sua irmã, (Sarah Paulson) sobre um cavalo que sua irmã espera comprar, Malorie diz ironicamente: “Seria ótimo ser um cavalo. Teríamos uma mãe, que nos teria criado, e um pai ausente, em um haras distante”.
“Espera”, sua irmã responde, “nosso pai esteve ausente em um haras distante”.
O filme tem início vários anos depois dessa conversa, com Malorie rispidamente dando ordens a um menino e uma menina, ambos com os olhos vendados enquanto partiam em um perigoso passeio de barco pelo rio. Então, um flashback (o primeiro de muitos) retorna a uma pesadamente grávida (e solteira) Malorie, que é tão distante da criança que carrega ao ponto de sua obstetra gentilmente sugerir que ela considere colocar o bebê para adoção. Malorie não apenas mantém a criança (nascida em circunstâncias aterrorizantes, também semelhantes a A Quiet Place), mas também cuida de outra criança cuja mãe foi vítima da praga apocalíptica. A adoção surge assim como um dos temas mais sutis, porém interessantes, um tema reforçado pelas aves da caixa que dá o título ao filme.
Pássaros e cegueira
Os pássaros servem a várias funções na história, tanto literais quanto simbólicas. Um objetivo temático é explícito no roteiro, mas não aparece no filme. O filme retrata Malorie obtendo os pássaros em uma mercearia abandonada, o roteiro descreve que “uma placa pisada no chão” diz: “HOJE APENAS / ADOTE UM ANIMAL DE ESTIMAÇÃO”! e Malorie o faz.
O investimento de tantos cuidados a criaturas aparentemente insignificantes como os pequenos pássaros, dadas as circunstâncias, é um exagero de imaginação – a menos que seja visto dentro do contexto do tema central do filme sobre arriscar amar em um mundo perigoso. É um mundo em que amar alguém – uma criança, um irmão, um cônjuge, até mesmo um animal de estimação – praticamente garante a dor da perda.
O significado temático da imagem central da cegueira/visão do filme remonta pelo menos ao antigo dramaturgo grego Sófocles, e muitas conversas de espectadores (para não mencionar os memes virais) sobre o foco de Bird Box sobre interpretações de que tipo de “cegueira” moral pessoal ou social o filme sugere.
Ecos do Gênesis
No entanto, para mim, são os símbolos arquetípicos mais sutis que aumentam o interesse do filme (spoilers a seguir). A segurança que Malorie procura para si e para as crianças é encontrada em um barco, um tipo de arca. Em um momento crítico, Malorie enfrenta uma espécie de Escolha de Sofia entre uma vida ou outra – e se recusa a escolher. Imediatamente depois, o barco vira e a viagem do trio no barco termina. Ela e as crianças estão imersas nas águas do rio em uma espécie de batismo antes de empreender os últimos passos em sua peregrinação. Como a jornada de Cristão em O Peregrino, eles devem resistir ao impulso de atender as vozes que os atraem para longe de seu destino. Eles devem resistir à tentação de tirar a venda, preferindo (literalmente) “andar pela fé, não pela vista” (2Co 5. 7).
Em uma narrativa reversa do Gênesis, Bird Box termina com uma entrada, em vez de uma expulsão, de uma espécie de Éden. Ao contrário de Adão e Eva, que foram expulsos do Éden por sua teimosia em buscar conhecimento, Malorie entra não conhecendo, mas confiando. Este é um paraíso, não incorruptível como o novo céu e a nova terra, mas é exuberante, florescente, cheio de amor e um abrigo contra o mal que aterroriza o mundo exterior. É um lugar onde pássaros acenam e avisam com canto, voam livres e brincam nas copas das árvores, relembrando uma história contada anteriormente, no filme, para as crianças, uma história de esperança que Malorie se recusou a ouvir porque tinha medo de ter esperança. Na verdade, ela carecia tanto de esperança, que se recusou a dar nomes às crianças. Reminiscente do romance apocalípitico de Cormac McCarthy, The Road, onde o protagonista sem nome é chamado simplesmente de “garoto”, as crianças em Bird Box são simplesmente chamadas de “garoto” e “garota”.
Mas quando Malorie chega a um jardim edênico escondido, ela encontra esperança. Surpreendentemente, deliciosamente, o refúgio é povoado por aqueles que têm o que, no mundo pré-apocalíptico, seria considerado uma deficiência, mas que, ironicamente, salva vidas. Em sua fraqueza está sua força. O tempo todo – até aquele ponto crucial anterior no barco – Malorie acreditava que seu poder estava em sua invulnerabilidade tanto para o mal externo quanto para a emoção interna. Por fim, ela desiste de sua resistência ao amor arriscado e, como Adão no primeiro Éden, dá nomes aos filhos, declarando aos outros – mas principalmente a si mesma – “Eu sou a mãe deles”.