Um blog do Ministério Fiel
O que a Bíblia diz sobre os vícios
“Senhor, dá-me castidade e continência”, o jovem Agostinho uma vez famosamente orou, “mas ainda não”. De fato, aquele que se tornaria o bispo de Hipona e um dos maiores teólogos da história da igreja descreveu sua infância como sendo preso em cadeias pelos prazeres mortais da carne. Em suas Confissões, Agostinho conta como o Espírito Santo aplicou poderosamente a Palavra de Deus ao seu coração, convertendo-o através de uma passagem de Romanos 13. 13,14:
“Andemos dignamente, como em pleno dia, não em orgias e bebedices, não em impudicícias e dissoluções, não em contendas e ciúmes; mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e nada disponhais para a carne no tocante às suas concupiscências”.
Humildemente confiante na graça capacitadora de Deus, Agostinho aprenderia uma nova oração: “Senhor, concede o que ordena e ordena o que desejas”.
Ao descrever sua experiência em termos de escravidão e libertação, Agostinho estava avaliando sua vida através da lente e visão de mundo das Escrituras, seus pensamentos expressos de uma maneira profundamente bíblica, fornecendo-nos uma introdução útil ao tópico em questão. Embora a palavra vício possa parecer um termo adequado para descrever qualquer tipo de envolvimento que seja compulsivo e habitual, independentemente de seus efeitos negativos, o termo não aparece na Bíblia, que fala mais do princípio dominante do pecado – a escravidão subjacente e causa raiz de muitas de nossas propensões depravadas. O lugar para começar nossa consideração bíblica dos vícios, então, é com o problema muito mais profundo da queda da humanidade e consequente escravidão ao pecado.
O Todo Poderoso criou os seres humanos à sua imagem e semelhança para desfrutar da comunhão do Dia do Senhor com ele e governar como senhores sobre a criação em seu nome. Essa liberdade e dignidade, no entanto, foram desprezadas e arruinadas na rebelião. Embora a serpente tivesse prometido igualdade com Deus ao comer o fruto proibido, o resultado amargo da transgressão de Adão foi a viciação rebelde de sua natureza: o senhor humano da criação tornou-se moralmente corrupto quando caiu sob o domínio do pecado. Além disso, essa condição de pecado e miséria não se limitou ao primeiro casal humano. A doutrina bíblica do pecado original, formalizada como ortodoxa através dos esforços do próprio Agostinho, ensina que toda a humanidade que descende de Adão pela geração ordinária nasce com uma natureza corrupta, manchada pelo princípio do pecado. Uma doutrina afim, apelidada de “depravação total” pelos teólogos reformados, explica que todas as partes dos seres humanos – nossas mentes, nossas vontades, nossas emoções, até mesmo nossa carne – é permeada pelo poder do pecado. Não é que as pessoas sejam tão más na prática quanto poderiam ser, mas que cada parte de nossa natureza é manchada e poluída pelo pecado. Como essa escravidão é forjada pelos grilhões de nossas próprias vontades e desejos arraigados, somos impotentes para, por nós mesmos, nos libertarmos. Uma vez inclinados para o pecado, seguimos naturalmente as paixões degradadas, mergulhando cada vez mais profundamente na lama da vergonha e da depravação (Rm 1. 21-32). Pior ainda, a Bíblia explica que a escravidão da humanidade ao pecado é apenas a evidência de que estamos sob o domínio do maligno, Satanás, vivendo de acordo com o seu desígnio, e destinados ao julgamento eterno (Ef 2. 1-3). Somente dentro do contexto desta realidade nua e crua – que a humanidade está espiritualmente morta, escravizada ao pecado, sob o domínio do maligno, e caminhando para o mais terrível julgamento – é que pode haver qualquer discussão significativa sobre os vícios de uma pessoa. Claramente, nossa primeira necessidade não é ter um plano para manter certas propensões quando confrontados; antes, precisamos ser libertos da escravidão e recriados de acordo com uma nova humanidade.
Quão desesperantemente sombria seria essa situação se a Palavra de Deus não tivesse também revelado o amor infinito, eterno e imutável do Pai, que, sendo rico em misericórdia, realizou nosso livramento através de Seu Filho (Jo 3.16; Ef 2. 4–6; 1Jo 3. 8). Jesus levou cativo o cativeiro para libertar seu povo; o Espírito Santo aplica a obra de Cristo aos nossos corações e nos recria, dando-nos o nascimento e a liberdade celestes. Em sua primeira carta à igreja em Corinto, Paulo lista muitos tipos de pecadores – de fornicadores, adúlteros e homossexuais a ladrões e bêbados – e então declara: “Tais fostes alguns de vós” (6.11). Como essas ligações titânicas foram quebradas? O mesmo versículo explica que aqueles que antes estavam tão presos aos pecados ao ponto de serem definidos por eles agora foram lavados, separados e feitos justos em nome do Senhor Jesus e pelo Espírito de Deus.
Ser liberto da escravidão ao pecado, no entanto, não é o fim da história. A conversão inaugura nossa batalha espiritual contra os desejos pecaminosos, e a Bíblia ensina muito sobre nossa necessidade de nos empenharmos diariamente nessa guerra, bem como sobre a natureza das armas de nossa guerra. Para começar, os cristãos são avisados com urgência da possibilidade real de se submeterem novamente ao cativeiro. Embora haja verdadeiro e maravilhoso consolo na declaração de Paulo em 1Coríntios 6.11, seu objetivo geral nesse contexto é advertir os santos sobre se sujeitarem novamente ao domínio até mesmo das práticas lícitas – “Eu não me deixarei dominar por nehuma delas”, ele escreve (6.12). Da mesma forma, Paulo adverte a igreja em Roma da escravidão que aguarda aqueles que, assumindo que a graça de alguma forma torna os desejos corruptos menos perigosos, se entreguem em obediência ao pecado (Rm 6.16). Para que não nos enganemos, essas advertências são sustentadas, nas Escrituras, pela franca afirmação de que – independentemente da profissão de fé – aqueles que são de fato fornicadores, sodomitas, bêbados, mentirosos e assim por diante não herdarão de modo algum o reino de Deus (1Co 6:.9-10, Gl 5. 19-21, Ef 5. 5-7, Ap 21. 8, 27). Os cristãos são obrigados, portanto, a permanecer firmes na liberdade de Cristo, para que não nos enredemos novamente com o jugo da escravidão (Gl 5. 1). Como a geração no Ocidente esquece que os cristãos compõem a “igreja militante” em meio a uma guerra hostil e que nossos inimigos – o mundo, a carne e o diabo – se enfurecem para nos destruir, nossas fatalidades espirituais não podem ser uma surpresa.
Dada essa perspectiva sóbria, a Palavra de Deus nos chama a fugir de nossas concupiscências naturais, que nos escravizariam de novo, e a fazer todo esforço para progredir na santificação. A Bíblia tipicamente usa o que muitos consideram imagens batismais para descrever nosso papel na santificação: somos instruídos a nos despirmos das ações da carne, como sendo trapos da nossa antiga natureza adâmica, e a revestir-nos de Cristo Jesus, seu caráter justo e obediência (Gl 3.27; Ef 4. 22-24). O aspecto “despir” refere-se à mortificação deliberada e disciplinada em relação ao pecado, exigindo tanto esforço vigoroso quanto sacrifício; Paulo, por exemplo, conta como ele esmurrou seu próprio corpo para submetê-lo à submissão (1Co 9.27). Temos que ser impiedosos para matar os atos do corpo, não fazendo provisão alguma para a carne, e isso é para ser feito – na verdade, só pode ser feito – pelo Espírito Santo (Rm 8.13). O Espírito aplica-nos a própria morte de Cristo ao pecado, capacitando-nos a morrer cada vez mais profundamente com ele e nele, a fim de viver cada vez mais profundamente com ele e nele para Deus. Como soldados disciplinados que vestem a armadura completa de Deus, devemos permanecer na luta (Ef 6. 10-18), lembrando-nos da admoestação de Jesus de que medidas práticas (bastante severas em Mateus 5. 27-30, até mesmo com lições objetivas), devem ser aplicadas para mortificar hábitos pecaminosos.
O aspecto “revestir” refere-se à prática da piedade, a substituição intencional de hábitos corruptos por um comportamento que honre a Deus. Frequentemente, caminhar positivamente em boas obras é subvertido por um enfoque obsessivo em nossas compulsões pecaminosas – ainda que seja a tentativa de negar os hábitos carnais, além de cultivar as virtudes cristãs à medida que seu substituto está fadado ao fracasso. No entanto, o desejo de Deus pelo fruto de nossos benefícios do evangelho é tanto premente quanto sério (Lc 13. 6–9; Jo 15. 5–8). Novamente, as medidas práticas não devem ser ignoradas: levantar-se cedo e trabalhar arduamente em nosso chamado para o reino de Cristo é um antídoto seguro contra uma multidão de pecados perniciosos, enquanto a falta de atividade gera impiedade (1Tm 5. 9-14).
Finalmente, a Bíblia ensina que as armas de nossa guerra são os mesmos meios que Deus ordenou para nosso crescimento espiritual, os quais fluem para dentro e fora da comunhão com Deus no culto corporativo. Superar vícios pecaminosos envolve aprender principalmente a deleitar-se no Senhor em seu Dia de Shabbath: aquecendo-se em Sua presença enquanto banqueteamos em sua Palavra proclamada, nutrida por seus sacramentos, confortada por seu perdão renovado dos nossos pecados confessos, derramando nossos corações perante ele em oração, comprometidos em comunhão piedosa e recebendo alegremente sua bênção – Sua presença capacitadora, poder e proteção – para os próximos dias. Ao compreendermos nossa absoluta dependência do poder do Espírito, que ressuscitará nossos corpos como novas criaturas, e como ele concede a graça somente através desses canais, não descartaremos prontamente, considerando excessivamente espiritual, a pregunta pastoral “Você já orou, ‘livrai-nos do mal’ a respeito disso com jejum”? Em vez disso, nós humildemente começaremos a aprender as táticas de nossa guerra.
Retornando ao ponto de comunhão com Deus, devemos ter o cuidado de não separar Cristo de seus benefícios. Nossa verdadeira necessidade é sempre olhar para o próprio Cristo, nosso Mediador todo-suficiente, na glória de seu tríplice ofício: nosso Profeta que revela a Divindade a nós; nosso Sumo Sacerdote que vive para interceder por nós; e nosso Rei conquistador que subjuga nossos inimigos de dentro e de fora. A provisão abundante de Deus nele – todas as bênçãos espirituais (Ef 1.3) – é muito maior do que nossas fraquezas. Olhando para Cristo com fé, podemos aprender com Agostinho que Deus realmente concede o que ele ordena.