A confusão na mesa: o uso inapropriado da ceia do Senhor

A ceia de Buzz Aldrin

Em 1969, os astronautas Buzz Aldrin, Neil Armstrong e Michael Collins chegaram à Lua na famosa expedição do Apolo 11. Aldrin era cristão e membro da Igreja Presbiteriana Webster, no Texas, EUA.

Diferente da expedição anterior (Apolo 8) que só tinha circulado a órbita lunar, Neil Armstrong, Aldrin e Collins pisaram na superfície da lua por duas horas e quinze minutos no dia 21 de junho de 1969. Uma nova página importante da história mundial foi escrita naquele dia.

Há uma outra razão pela qual essa expedição Apollo 11 ficou mundialmente conhecida: a celebração da ceia por Buzz Aldrin. Durante o tempo em que estavam sobre a superfície da lua, esperando algumas horas para recuperarem as forças antes de descerem do módulo, Aldrin celebrou a ceia do Senhor. Ele foi o primeiro homem da história a fazer isso. Homens já tinham orado no espaço, mas Aldrin foi mais longe em celebrar esse sacramento. O astronauta leu a passagem de João 15.5, “— Eu sou a videira, vocês são os ramos. Quem permanece em mim, e eu, nele, esse dá muito fruto; porque sem mim vocês não podem fazer nada”[1] (NAA). Logo em seguida tomou os elementos. Veja como ele mesmo descreveu essa experiência:

Eu coloquei um pouco de vinho de um recipiente de plástico selado em um pequeno cálice e esperei que o vinho caísse enquanto girava de acordo com 1/6 da gravidade terrestre na lua. Meus comentários ao mundo foram inclusivos: ‘Eu gostaria de pedir alguns momentos de silêncio … e convidar cada pessoa a ouvir, onde e quem quer que seja, para fazer uma pausa por um momento e contemplar os eventos das últimas horas e agradecer no seu próprio modo’. Eu silenciosamente li a passagem da Bíblia enquanto eu comia a bolacha e o vinho, e ofereci uma oração particular pela tarefa que estava realizando e pela oportunidade que me foi dada.[2]

Aldrin também relatou que seu companheiro Neil Armstrong assistiu esse momento com respeito e sem nenhum comentário.

Sem dúvida alguma essa história é singular e emocionante. Talvez alguma ceia já tenha te marcado por alguma razão, mas imagine cear olhando pela janela do módulo da NASA e contemplando um dos astros mais belos que conhecemos, a própria lua? Que momento único!

Embora o evento seja de tirar o fôlego, a pergunta que deve ser feita é se essa celebração da ceia na lua foi correta. Será que o propósito da ceia do Senhor é ser uma refeição para os momentos importantes que temos na vida? Será que há base bíblica para esse tipo de celebração? Se estiver correto o uso que Aldrin fez da ceia no espaço, não deveria ser correto também cristãos usarem desse sacramento em outros eventos importantes, como festas, formaturas, casamentos, etc.?

Casamentos

Por falar em casamento, talvez seja essa a ocasião que cristãos têm celebrado a ceia do Senhor fora da igreja local com maior frequência. É comum ouvirmos histórias de casais que decidiram incluir na liturgia da cerimônia o ato da ceia. Eu mesmo fui convidado certa vez para administrar a ceia em um casamento que realizei. Embora o momento possa ser belo e ajudar para o álbum de fotos do casal, nós ainda precisamos nos perguntar: será que é correto administrar a ceia do Senhor em casamentos? O que a ceia representa nesse momento da união matrimonial? Somente os noivos podem participar ou todos os convidados presentes? Há inúmeras questões que podemos levantar quanto à essa prática.

Há pastores que não só apoiam a celebração da ceia em casamentos como instruem em como realizá-la. É o caso de Michael L. Willians e sua esposa Pamela Rose Willians, secretária de Michael e cerimonialista. Ao escrever sobre o assunto, Pamela diz que a mesa da ceia do Senhor deve ser preparada com antecedência. Durante a celebração, o noivo deve levar a noiva para uma mesa lateral. O ministro pode ou não guiar esse momento. O noivo serve primeiro a noiva e depois é servido por ela. Após cearem, o noivo ora a Deus pedindo graça para liderar essa família.[3]

Da mesma maneira, um outro site de conteúdo cristão e teologia reformada, reformed worship, diz que embora o casamento não seja um sacramento ainda assim é possível celebrar o sacramento da ceia. Em tal caso, como afirma Hoksbergen, “a Ceia deve seguir os votos de casamento, servindo como um símbolo da primeira refeição que o casal compartilha no matrimônio e de sua união com o corpo dos crentes”. Note que uma das razões para a realização da ceia no casamento é para que ela sirva como “símbolo da primeira refeição que o casal compartilha”. Mas será que a ceia foi instituída para ser um símbolo de uma refeição em um evento social? Se essa lógica estiver correta, pais poderiam dar a ceia para crianças bem pequenas quando elas pudessem comer alimentos mais sólidos para registrarem isso na história delas – a ceia foi primeira refeição sólida! Dificilmente se achará base bíblica para sustentar esse argumento.

Na contramão dessa prática está o pastor Marvin L. Weir, Rowlett Church of Christ, Rowlett, USA, que escreveu um artigo intitulado “A ceia do Senhor não deve se misturar com evento sociais”. Ele diz:

A verdade da questão é que não há absolutamente nenhuma autoridade bíblica para participar da ceia do Senhor em uma cerimônia de casamento. Estamos autorizados pela Palavra de Deus a participar da ceia do Senhor somente no primeiro dia da semana (domingo) na assembleia de adoração dos santos no Dia do Senhor. Fazer o contrário, é tomar um ato sagrado de adoração e tratá-lo de uma forma egoísta e frívola, para satisfazer um capricho humano.[4]

Veja que para Weir, a prática está errada não só porque não há respaldo bíblico, mas também por não acontecer aos domingos. Com certeza Weir terá um pouco de dificuldade com os escritos de Lucas, principalmente o livro de Atos, onde diz que os primeiros cristãos partiam o pão ‘diariamente’ (Atos 2.46; cf. 2.42; 20.7, 11; 27.35). Se a minha interpretação dessas passagens estiver correta (como tentarei argumentar mais adiante), os cristãos têm liberdade para celebrar a ceia em qualquer dia da semana. Parece que Weir, ao tentar defender a correta prática da ceia, chegou a um outro extremo.

Deve-se deixar claro aqui que eu não estou sugerindo que não haja uma imagem de aliança (casamento) na ceia. Muito pelo contrário! A ceia é um belíssimo símbolo do casamento de Cristo com sua Igreja. Thomas Watson (1620-1686) compara a motivação do cristão na participação da ceia com a motivação de uma esposa indo encontrar seu marido. Assim como a esposa desfalecia de amor pelo marido em Cânticos dos Cânticos (5.8), assim a Igreja deve encontrar Cristo na ceia com fortes apreços de afeto.[5]

Uma ceia complicada

Deixando um pouco de lado essa questão da ceia em eventos sociais, deve-se mencionar um outro problema atual nas igrejas evangélicas brasileiras: o menosprezo por essa ordenança. Como uma ilustração desse ponto, conto uma história que alguns colegas meus de ministério vivenciaram. Eles foram convidados por uma base missionária para ajudar em uma conferência de alguns dias. Lá, eles participaram dos cultos e em um deles teve a celebração da ceia. O que eles contaram foi surpreendente. O culto já se estendia além do normal quando decidiram cear. Durante a ceia o baterista começou a fazer um solo por algum tempo (alguns minutos). Como se isso já não estivesse estranho para aquele momento, um outro irmão decidiu pular em cima da mesa dos elementos, pegou o pão e o arremessou para longe. O pão foi parar no toldo do galpão em que eles estavam. Meus amigos ficaram sem entender nada do que estava acontecendo. Tudo isso estava sendo feito em nome da ‘liberdade do Espírito’, segundo os missionários da base.

Com toda certeza o apóstolo Paulo daria a mesma repreensão a esses irmãos que foi dado aos Coríntios: “…não posso elogiá-los, porque vocês se reúnem não para melhor, e sim para pior” (1 Coríntios 11.17; NAA).

Ceia judaica

Um outro erro da prática da ceia tem sido a promoção por algumas igrejas evangélicas da ceia judaica. Influenciados por uma visão continuísta radical entre o Antigo e o Novo Testamento, essas igrejas, principalmente pentecostais e neopentecostais, supervalorizam símbolos e costumes judaicos, voltando à prática da ceia judaica, incluindo pão sem fermento, ervas amargas, tipos diferentes de cálices, etc (como descrita em Êxodo 12). O argumento bíblico básico desses pastores é que a ceia celebrada no Novo Testamento era a mesma praticada pelo povo de Deus no Antigo Testamento. Segundo eles, a última ceia que Jesus participou com seus discípulos (Lucas 22.14-23; Mateus 26.26-30; Marcos 14.22-26; João 13.1-30) e a ceia a qual Paulo se refere em 1 Coríntios (5.7-8; 11.17-33) eram as mesmas refeições prescritas em Êxodo 12. Embora o contexto histórico tanto de Jesus quanto de Paulo possa ter sido esse mesmo, a pergunta que será respondida mais para frente é se há alguma ordem de ambos (e demais autores) para que a refeição pascal de Êxodo 12 seja realizada. Caso não haja, será que somos obrigados a replicar exatamente aquele contexto histórico?

Note que nesse primeiro momento meu papel foi de um questionador. Fiz questão de citar alguns exemplos para demonstrar a dificuldade do tema que estamos abordando. Não se decepcione! Prometo trazer luz bíblica para essas e outras questões. Uma coisa é certa, não somos os primeiros a lutar com a prática da ceia. Se olharmos para a história da igreja, perceberemos que a ceia sempre teve prioridade no ministério de grandes homens de Deus.

É isso que veremos no próximo artigo.


[1] Todas as citações bíblicas deste trabalho utilizaram a versão Nova Almeida Atualizada.

[2] ALDRIN, B. Magnificent Desolation: The Long Journey Home from the Moon. 1ª Edição. New York: Harmony Books, 2009, não paginado. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=ZJeRAVN9m1kC&lpg=PT19&ots=sXEzdTdVtc&dq=o%27hair%2520deke%2520slayton&pg=PT20&redir_esc=y#v=onepage&q=o’hair%2520deke%2520slayton&f=false. <Acesso em: 10 ago. 2019>

[3] Veja o site para mais informações: https://www.whatchristianswanttoknow.com/christian-wedding-ceremony-sample-outline/

[4] WEIR, M. The Lord’s Supper Is Not To Be Mixed With Social Events. Disponível em: < http://www.rowlettcoc.org/weir0506.pdf >. <Acesso em: 10 ago. 2019>

[5] WATSON, T. A Ceia do Senhor. 1ª Edição. Edição do Kindle. Os Puritanos, 2015. Posição 770 de 1306.

Por: Thiago Guerra. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Original: A confusão na mesa: o uso inapropriado da ceia do Senhor.