“Feliz dia da Reforma Protestante. Menos para…”

“Feliz dia da Reforma Protestante. Menos para…”

Dia 31 de Outubro já passou e você deve ter visto por aí a frase acima com alguma coisa no lugar dos três pontinhos. Você pode ter visto a palavra arminiano, pode ter visto pentecostal ou até mesmo batista. É uma piada? É sim. Mas que muitos levam a sério. Há muita gente querendo definir quem pode comemorar o legado da Reforma. E também definir quem pode ou não pode garantir o seu selo “reformado” de qualidade. Só que essa não é uma questão tão simples de se resolver.

É verdade que da Reforma Protestante, iniciada pelo “javali feroz”, Martinho Lutero, desencadeou uma tradição que posteriormente se subdividiu em algumas vertentes. Também é verdade que com o passar dos anos o termo reformado foi atribuído às igrejas de confissão calvinista, sejam elas continentais ou insulares – pois a igreja alemã adotou para si a alcunha de luterana (o que o próprio Lutero não desejava). Isso significa que, via de regra, quando falamos em reformados, estamos nos referindo aos que adotam ou as três formas de unidade das igrejas (Confissão Belga, Catecismo de Heidelberg e Cânones de Dort) ou os padrões de Westminster (Confissão de Fé, Catecismo Maior e Menor e Diretório de Culto).

Só que “o via de regra” não deve restringir a tal ponto de deixar de fora os outros herdeiros da Reforma. O que falar dos anglicanos que subscrevem os 39 artigos da religião? (De 1571). Há nestes artigos a ideia central da Reforma, que é a justificação pela fé. Há também a afirmação da doutrina da eleição e a negação do purgatório, da autoridade papal, da transubstanciação e da mediação dos santos, todas doutrinas romanas. Isso não é fruto do que começou lá em 31 de Outubro de 1517? E os congregacionais com a Declaração de Savoy (De 1658)? E o que dizer dos Batistas Particulares e sua confissão de fé (De 1689)? Confissão que foi anos mais tarde republicada e endossada pelo príncipe dos pregadores, Charles H. Spurgeon.

Existe um ressurgimento da fé reformada ou do calvinismo em nossos dias, fruto de uma enxurrada de conteúdo disponibilizado na internet. Muita gente tem abraçado os cinco solas da Reforma. Muitos se deslumbram e adotam os cinco pontos do calvinismo. E há os que adotam uma das confissões acima citadas. Boa parte dessas pessoas veio de igrejas que ainda hoje estão bem longe dos pontos distintivos da Reforma. Também existem casos de pessoas que estavam dentro de igrejas históricas que desconheciam o legado reformado das mesmas. E aos poucos essas pessoas foram tendo os seus olhos desvelados ao ponto de falarem com propriedade o lema da igreja genebrina pastoreada por Calvino: “Post Tenebras Lux”.

Só que o patrulhamento da fé reformada que gosta de excluir ao invés de agregar faz muito mal ao movimento de redescoberta da teologia dos reformadores. Para os patrulheiros, ou você se compromete por inteiro com a confissão X ou você tá fora. Ou você é inteiramente consciente dos pormenores da teologia da Reforma ou você não é digno de comemorar “as gostosuras e as travessuras” que Lutero e Cia aprontaram. Mas vejamos o exemplo do próprio reformador alemão.

Lutero era um monge agostiniano e professor de teologia da Universidade de Wittenberg quando escreveu as suas 95 Teses contra as Indulgências. Ele estava fazendo o seu trabalho ao propor um debate sobre o assunto. Debater era uma das atividades do teólogo. O prefácio das teses fixadas na porta da igreja do castelo elucidam isso: “Por amor à verdade e no empenho de elucidá-la, discutir-se-á o seguinte em Wittenberg, sob a presidência do reverendo padre Martinho Lutero, mestre de Artes e de Santa Teologia e professor catedrático desta última, naquela localidade. Por esta razão, ele solicita que os que não puderem estar presentes e debater conosco oralmente o façam por escrito, mesmo que ausentes. Em nome do nosso Senhor Jesus Cristo. Amém[1].

Mas observem que o Lutero que escreve contra as indulgências não o faz por ter uma robusta noção da justificação pela fé, somente. Pelo menos não aqui. Lutero se coloca contra a venda das indulgências, sobretudo a forma agressiva de vender de Tetzel, por achar que elas estavam queimando as etapas da “penitência”. Fazendo com que os católicos não se arrependessem dos seus pecados como deveriam se arrepender, buscando livrar-se das penas e deixando de praticar as boas obras. Isto fica muitíssimo claro entre as teses 40 e 45:

40 A verdadeira contrição procura e ama as penas, ao passo que a abundância das indulgências as afrouxa e faz odiá-las, pelo menos dando ocasião para tanto.

41 Deve-se pregar com muita cautela sobre as indulgências apostólicas, para que o povo não as julgue erroneamente como preferíveis às demais boas obras do amor.

42 Deve-se ensinar aos cristãos que não é pensamento do papa que a compra de indulgências possa, de alguma forma, ser comparada com as obras de misericórdia.

43 Deve-se ensinar aos cristãos que, dando ao pobre ou emprestando ao necessitado, procedem melhor do que se comprassem indulgências.

44 Ocorre que através da obra de amor cresce o amor e a pessoa se torna melhor, ao passo que com as indulgências ela não se torna melhor, mas apenas mais livre da pena.

45 Deve-se ensinar aos cristãos que quem vê um carente e o negligencia para gastar com indulgências obtém para si não as indulgências do papa, mas a ira de Deus”.

Só um ano mais tarde, em 1518, que Lutero terá um entendimento da justificação pela fé que o torna mais distante da noção de justificação pelas obras. E isso após mergulhar na Carta aos Romanos. Sua maturidade com relação a este assunto é vista apenas no embate que tem com o humanista Erasmo de Roterdã, registrados na obra De Servo Arbítrio, publicada em dezembro de 1525. Aqui vemos um Lutero monergista que dá forma aos distintivos da teologia reformada.

O que estou querendo dizer com este exemplo? Quero dizer que se reformar é um processo. Lutero não “reformou-se” do dia para a noite. Ele não foi dormir católico romano e acordou protestante. E como chegou a dizer certa feita: “Eu não fiz nada, a Palavra fez tudo”. Deus em sua providência usou um monge católico que ainda simpatizava com o Papa Leão X e com um escrito que tinha motivações doutrinárias romanistas para desencadear a Reforma. Uau!

Portanto, devemos ver aqueles que estão numa transição entre as “teologias da glória” de nossos dias para a “teologia da cruz” que permeia todo o escopo doutrinário do protestantismo pregado por Lutero, Zuínglio, Calvino, Bucer, Ursino, Beza, Knox e tantos outros, com mais amor e menos orgulho. Dizer que determinado grupo ou pessoa não pode comemorar o Dia da Reforma por não ter abraçado tudo o que ainda pode abraçar é servir de pedra de tropeço. Ao invés disso, lembremos que o que sabemos só sabemos porque Deus em sua graça nos abriu os olhos da fé. Lembremos de que no passado, não éramos quem somos e nem conhecíamos o que conhecemos.

Se você que está lendo esse texto, gosta de apontar os que não são reformados e fazer chacota deles: Calma aí, Reformadão! Há um meio melhor para propagar as graciosas doutrinas da graça. Atente que o Sola Gratia é iniciativa do alto e com muita humildade ensine. Ensine em sua igreja local como “um servo inútil”. Use a Escritura. Use os credos e confissões. Use com todo o amor do mundo e veja que Deus pode fazer um patinho feio não reformado virar um belo cisne.


[1] Toda citação das 95 teses de Lutero são do site Luteranos: https://www.luteranos.com.br/lutero/95_teses.html

Por: Thiago Oliveira. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Original: “Feliz dia da Reforma Protestante. Menos para…”