Um blog do Ministério Fiel
O culto no Palácio do Planalto e as interlocuções entre a religião e o direito
Esta semana, realizou-se no Palácio do Planalto um culto em ações de graças, com a presença do Presidente da República, autoridades políticas, líderes religiosos e outros grupos da sociedade civil, como a ANAJURE – Associação Nacional de Juristas Evangélicos, convidada para participar da liturgia.
Ocasiões como essa encandecem os debates, não só no ambiente jurídico, mas também na mídia e nos círculos políticos, acerca dos limites da relação entre Igreja e Estado, em particular quanto ao uso de ambientes públicos – nesse caso, a própria sede do Poder Executivo Federal – para realização de cerimônias de caráter religioso confessional.
Há quem entenda que a celebração de um ritual religioso na sede de um dos Poderes da República, e, por arrastamento, em qualquer outra repartição pertencente ao Estado, representa uma afronta ao dever de neutralidade estatal, revelando-se inconstitucional, imoral e até uma forma barganha eleitoral qualquer atividade desse teor. Pretendemos, nas breves linhas que seguem, trazer um contributo a esse debate, demonstrando que muitos dos nossos princípios constitucionais estruturantes radicam-se nas interlocuções entre a religião, a política e o direito ao longo da história, não sendo razoáveis, tampouco saudáveis à manutenção da coesão social, tentativas de expulsar as manifestações religiosas do espaço público.
Importa dizer, em primeiro lugar, que a laicidade adotada em nosso país caracteriza-se por uma “neutralidade benevolente, tendente a obsequiar o fenômeno religioso e não a expurgá-lo por completo do espaço público”[1]. Essa neutralidade, no entendimento de Ingo Sarlet, tem o complexo desafio de não “resultar nem em compressão desproporcional do direito fundamental de liberdade religiosa, nem em sua hipertrofia, de modo a instaurar um clima de intolerância para com outras formas de expressão e mesmo uma aniquilação de manifestações religiosas minoritárias em face daquelas adotadas pelo corpo social majoritário”[2].Trata-se, portanto, de uma busca pelo equilíbrio[3], o que se distancia de uma postura laicista, i.e., que reivindica a “desconfiança ou repúdio da religião como expressão comunitária”[4] e acaba por resultar no afastamento de qualquer manifestação de fé da esfera pública.
Na tentativa de confinar a crença ao espaço privado, o laicismo – teoria que está no pano de fundo dos que reputam inconstitucional a realização de atividades religiosas em espaços públicos – ignora que foi justamente por meio da interação entre a cosmovisão religiosa, em especial a cristã, que muitos avanços foram alcançados no campo jurídico-político. Com efeito, não poucos pressupostos e fundamentos consensualmente reconhecidos nos sistemas jurídicos modernos devem a sua existência às interlocuções entre a religião, a política e o direito.
Nesse sentido, Jónatas Machado explica que a noção de igual dignidade natural do ser humano, tão cara a nossa época, foi deduzida por John Locke a partir da exegese dos primeiros capítulos de Gênesis, que trazem como destaque a criação da humanidade à imagem e semelhança de Deus[5]. Além disso, a concepção de direitos individuais foi profundamente impulsionada por meio da Reforma Protestante. Esse movimento, com a compreensão de que a justificação se dá pela fé pessoal, independentemente de mediação institucional, ressaltou o valor do indivíduo e abriu margem, assim, para o questionamento do poder absoluto conferido às duas grandes instituições da época: o Estado e a Igreja[6].
Se, por um lado, extrai-se do cristianismo as raízes da dignidade da pessoa humana, princípio do qual decorrem diversos direitos, é da fé cristã, também, que surgem alguns pressupostos para a limitação dos poderes. Da busca pela liberdade de consciência, um dos pilares da Reforma Protestante, ganha relevo um princípio limitativo da atividade estadual, no sentido de que há um âmbito exclusivo na conduta dos seres humanos que é reservado a cada pessoa e só ocupável por ela, contra as aspirações e tendências de onipresença do Estado[7]. Dessa concepção, decorrem a necessidade de limitação dos Poderes constituídos, a impossibilidade da programação ideológica pelo Estado e o combate ao pensamento único.
Ademais, com a Reforma Protestante, ganha força a ideia de direitos naturais, que não são outorgados por um poder político, mas provenientes de uma autoridade superior, que não pode ser usurpada pelo Estado. Sobre o assunto, Jellinek explica que “a ideia de consagrar legislativamente esses direitos naturais, inalienáveis e invioláveis do indivíduo, não é de origem política, mas religiosa. O que até aqui se tem recebido como uma obra da Revolução, é, na realidade, um fruto da Reforma e de suas lutas” [8].
A própria laicidade, tantas vezes invocada como algo que deveria tolher religiosos, possui raízes cristãs. Nessa linha, citamos as conhecidas palavras de Cristo: “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, e o impacto da Reforma Protestante, que, ao promover a batalha pela possibilidade de escolha de confissões de fé contra majoritárias, livre de intromissões e interferência do poder político, abriu as portas para a emancipação da consciência individual, propiciando o surgimento de diversas minorias religiosas defendendo o direito de cada uma à sua própria fé.
Estabelecer uma barreira intransponível entre fé e política representa um retrocesso, ante as conquistas históricas alcançadas por meio de reflexões nascidas no seio das religiões, e uma contradição, na medida em que o discurso corrente no Brasil é de cada vez mais inclusividade, tolerância e diversidade. Assim, a celebração de um culto religioso na sede do Executivo não representa, em si mesma, uma afronta à laicidade ou neutralidade estatal, antes, leva-nos a pensar como as religiões, majoritárias e minoritárias, cristãs ou não, têm um benéfico potencial de transformação das relações sociais, jurídicas e políticas[9].
[1] SANTOS JUNIOR, Aloisio Cristovam dos. A laicidade estatal no direito constitucional brasileiro. Disponível em: <https://sylviomiceli.wordpress.com/2008/05/04/a-laicidade-estatal-no-direito-constitucional-brasileiro/>. Acesso em: 18 dez. 2019.
[2] SARLET, Ingo. Liberdade religiosa e dever de neutralidade estatal na Constituição Federal de 1988. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2015-jul-10/direitos-fundamentais-liberdade-religiosa-dever-neutralidade-estatal-constituicao-federal-1988>. Acesso em: 18 dez. 2019.
[3] A defesa da liberdade religiosa não significa uma proteção irrestrita a qualquer manifestação religiosa, merecendo ponderação casuística, conforme realizado na seguinte nota pública emitida pela ANAJURE: https://www.anajure.org.br/anajure-da-parecer-tecnico-afirmando-que-nao-houve-violacao-da-liberdade-religiosa-em-caso-do-arquivo-nacional-repercutido-na-imprensa/
[4] MIRANDA, Jorge. Estado, liberdade religiosa e laicidade. In: O Estado laico e a liberdade religiosa. São Paulo: LTr, 2011, p. 111.
[5] MACHADO, Jónatas E.M. Estado Constitucional e neutralidade religiosa: entre o teísmo e o (neo)ateísmo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 36
[6] MATOS, Givaldo Mauro. Das contribuições da Teologia Política da Reforma Protestante às Declarações de Direitos Humanos. Fronteiras: Revista de História, Dourados, v. 19, n. 34, p. 94-109, jul./dez. 2017. Disponível em: <http://ojs.ufgd.edu.br/index.php/FRONTEIRAS/article/view/7593>. Acesso em: 18 dez. 2019.
[7] CARVALHO, Felipe Augusto. Liberdade e Objeção de Consciência: Fundamentos histórico-dogmáticos e funcionalidades constitucionais. In: Revista Latinoamericana de Derecho y Religión, v. 5, n. 2, 2019, p. 34 ss.
[8] JELLINEK, Georg. La Declaración de los Derechos del Hombre y del Ciudadano. Tradução de: Adolfo Posada. México: Universidade Nacional Autónoma de México, 2000, p. 125.
[9] ANAJURE – https://www.anajure.org.br/anajure-emite-nota-publica-sobre-decisao-do-tjsp-que-determinou-a-retirada-de-inscricoes-biblicas-de-monumento-em-praia-grande/