Um blog do Ministério Fiel
Jesus não era uma mulher negra e nem foi um jovem baleado
Jesus não era uma mulher negra, nem foi um jovem pobre morto à bala. Isso não faz de Jesus menos sensível à causa dos que sofrem e são oprimidos nos grandes centros urbanos contemporaneamente. Só não faz a imagem do Deus invisível compatível com as imagens selecionadas pela escola de samba Mangueira para desfilar na Sapucaí.
E não vou entrar no mérito de discutir sobre a compatibilidade ou não da perseguição que Cristo sofreu pelo Império Romano com as perseguições cotidianas nas ruas de nossas cidades — outro tema presente no enredo da escola. Há quem defenda que existem estruturas imperiais análogas em vigência atualmente. Sendo anacronismo ou não, a intenção foi selecionar figuras de vítimas contemporâneas e pateá-las com o sofrimento de Cristo.
Vale dizer que, no fundo, a questão não é o instrumento nem as circunstâncias. Ao lado de Jesus foram crucificados outros dois indivíduos (ou seja, mesmo instrumento e mesmas circunstâncias), e ainda assim ninguém faz carro alegórico para eles. No fundo, a questão toda é sobre a imagem. E é isso que vou me ocupar aqui brevemente.
Existe um grande problema quando se pensa que a imagem de Jesus enquanto um homem hebreu pode ser alterada aleatoriamente. Até mesmo o caso mais sensível e a vulnerabilidade mais urgente de uma sociedade não tem essa autoridade de ser compatibilizado integralmente com a imagem do servo sofredor crucificado. Isso porque, quando se muda a imagem do Jesus homem por uma mulher, uma pessoa trans, ou quem quer que seja, mudamos toda a religião cristã.
Parece hiperbólica essa afirmação, mas quem chegou a essa conclusão foi C. S. Lewis em um importante artigo contra a ordenação de mulheres pela igreja anglicana na década de 50 do século passado. O núcleo de seu argumento é que, ao contrário do que dizem, gênero, sexualidade, contexto histórico são importantíssimos para o cristianismo. Não são para aqueles que, a semelhança da escola de samba, trocam homens por mulheres como se movessem formas geométricas. Mas para nós, cristãos, tais diferenças são incontornáveis.
Para entender isso, Lewis propõe um exercício muito simples. Basta responder se podemos orar à “Mãe nossa que está nos céus” tanto quanto ao “Pai nosso”,se a segunda Pessoa da Trindade poderia muito bem ser chamada de Filha ou de Filho, se o casamento místico poderia ser invertido — que a Igreja fosse o noivo e que Cristo fosse a noiva, ou mesmo duas noivas. É claro que, apesar de tais trocas estejam sendo feitas cotidianamente, elas alteram sensivelmente a estrutura toda da narrativa bíblica.
Nesse caso, a pergunta se nós podemos alterar esses quadros sem mexer com toda a estrutura da religião cristã revelada nas Escrituras, recebe uma resposta, obviamente, negativa. Os cristãos levam muito em consideração a sexualidade humana, a posição concreta de cada um na história e a violência dos impérios. Mas sabemos também que uma criança que aprendeu a orar a uma mãe nos céus teria uma vida religiosa radicalmente diferente de uma criança cristã. Justamente porque gênero importa.
Nesse caso, diante de tudo isso, não estamos sendo fiéis ao espírito da religião cristã quando compatibilizamos o sacrifício de Cristo com a morte de qualquer outra pessoa em nossas sociedades atuais. Estamos mudando toda a religião. Estamos sendo fiéis ao espírito do nosso tempo.
Rejeitarmos essa tentativa de compatibilização por parte da escola de samba não nos faz insensíveis aos dados alarmantes de violência no Brasil. Mas mostra que na agenda política genuinamente cristã existem outras expectativas, outras confianças e outras formas de amar. Não corrigimos um homem ou um marido ruim mandando ele se tornar uma mulher. Não existe cura na desconstrução.