A ação de Deus no Coronavírus

Estamos todos em uma situação de calamidade. O COVID-19 só reforça uma verdade sobre nossa existência – a vida nunca foi normal, ela sempre foi cheia de crises. Nós estávamos entorpecidos para essa realidade. Foi isso que C. S. Lewis disse quando em 1939, em um culto vespertino na igreja de St. Mary em Oxford, pregou um sermão intitulado “Aprendizado em tempos de guerra”:

A guerra [substitua por COVID-19] não cria nenhuma situação absolutamente nova; ela simplesmente agrava a situação humana permanente de tal maneira que não podemos mais ignorá-la. A vida humana sempre viveu à beira do precipício. A cultura humana sempre teve de existir sob a sombra de algo infinitamente mais importante do que ela mesma. […] A vida nunca foi normal. Até mesmo os períodos que julgamos ser os mais tranquilos, como o século XIX, foram, sob um olhar mais acurado, cheios de crises, situações alarmantes, dificuldades e emergências.[1]

“A vida nunca foi normal” e nós nos esquecemos disso. Corremos riscos todo momento. Calvino, falando sobre as ameaças dessa vida, nos lembra corretamente de como a vida é perigosa:

Montamos um cavalo, nossa vida põe-se a perigo no falsear de um pé. Adentramos pelas ruas da cidade, tantas forem as telhas, tantos serão os perigos aos quais estaremos submetidos. Se um instrumento cortante está em nossa mão ou na de um amigo, os perigos são proeminentes. Tantos animais ferozes quantos virmos, estarão armados para a nossa destruição. […] A casa assiduamente sujeita ao incêndio ameaça-nos durante o dia com a pobreza e durante a noite com a opressão. O campo, dado que seja exposto ao granizo, à geada, à seca e a outras tempestades, denuncia para nós a esterilidade e, dela, a fomo. Omito os venenos, as insídias, os latrocínios, a violência declarada, dos quais parte nos ataca em casa, parte nos segue ao longe.[2]

Portanto o COVID-19 nos coloca perante um espelho que não gostamos de olhar. Vemos em nós mesmos fraquezas, vulnerabilidade, medos e receios. Quando ventos contrários desmoronam nossas falsas ilhas de sustentação, nos deparamos afundando em um mar revolto e infinitamente maior do que nós.

Sejamos sinceros e encaremos nossas limitações nessa hora. Alguns naufragarão em leitos de hospitais, outros em desempregos e crises financeiras. Idosos são os mais vulneráveis em casas de repousos. Nossas crianças deixarão de ver amiguinhos, de estudar e brincar fora de casa. As igrejas estarão vazias e fechadas. Os governos terão que agir rapidamente e mudar o plano de gestão atual. Tudo mudará daqui para frente e por algum tempo. A vida deixará de ser normal, ou melhor, provará mais uma vez que ela sempre foi assim.

Em meio a esse cenário apavorador, a pergunta sincera que devemos fazer é: como podemos estar seguros? A resposta é a mesma que Abraão deu quando também estava vivendo uma crise – “Deus proverá” (Gn 22.8). Deus quis colocar Abraão à prova pedindo que ele sacrificasse seu filho querido Isaque, o filho no qual estava a promessa da benção divina. Em meio a essa possível calamidade, Abraão se lembrou que Deus tinha total controle dos eventos futuros de sua vida e é capaz de resolver coisas bem complexas. Em outras palavras, Abraão cria na doutrina da providência divina. E sim, boa doutrina em tempos de crise mantém a gente de pé e com fé. Abraão seguiu obediente e Deus proveu um cordeiro para sacrifício no lugar do seu filho. Sabemos que nem sempre é assim, nem sempre Deus livrará a gente do “holocausto”, mas podemos ao menos seguir adiante com a mesma fé de Abraão, a fé que descansa em Deus e a maneira dele agir nesse mundo.

Mas como a doutrina da providência nos ajuda nesse momento? Para respondermos essa pergunta, devemos lembrar de algumas verdades bíblicas importantes.

Em primeiro lugar, Deus faz com que todas as coisas, boas e ruins, aconteçam de acordo com seu propósito. Isso mesmo, coisas boas e ruins. Deus causa todas elas, não somente permite ou usa elas. Há aqueles que afirmam que Deus somente governa sobre todas as coisas, mas não causa essas situações ruins. Mas “o que é governar senão presidir de tal maneira que as coisas sobre as quais se preside sejam regidas por uma ordem determinada?”[3] O que aprendemos na bíblia é que Deus governa ativamente sobre tudo e todos, sendo a “primeira causa” de todos os eventos.

Eu nunca me esqueço o artigo que li uma vez do pastor John Piper logo após as torres gêmeas terem caído sob ataque terrorista em 11 de setembro de 2001. Piper nos lembra corretamente que “Deus faz todas as coisas conforme o conselho de sua vontade” (Ef 1.11):

Todas as coisas (Ef 1.11) inclui a queda dos pardais (Mt 10.29); o jogar de dados (Pv 16.33); o massacre de seu povo (Sl 44.11); as decisões dos reis (Pv 21.1); a cegueira (Êx 4.11); a doença dos filhos (2Sm 12.15); a perda e ganho de dinheiro (1Sm 2.7); o sofrimento dos santos (1Pe 4.19); a conclusão de planos de viagem (Tg 4.15); a perseguição de cristãos (Hb 12.4-7); o arrependimento de almas (2Tm 2.25); o dom da fé (Fp 1.29); o progresso na santidade (Fp 3.12-13); o crescimento dos crentes (Hb 6.3); a vida e a morte (1Sm 2.6) e a crucificação de seu Filho (At 4.27-28).[4]

Poderíamos continuar com a lista acima e usar outros exemplos bíblicos. Lembre-se da vida de Jó, a calamidade enfrentada por ele e sua família era incomparável. Logo no capítulo um lemos que seus bois e jumentas foram roubados pelos sabeus. Seus servos foram mortos. Fogo caiu do céu e matou suas ovelhas e pastores. Não bastasse isso, os caldeus atacaram e levaram os camelos, mataram cruelmente os outros empregados. Pior ainda, seus próprios filhos e filhas foram mortos por um vento que bateu contra a casa onde eles comiam. Qual foi a percepção de Jó perante aquela calamidade?

‘Então Jó se levantou, rasgou o seu manto, rapou a cabeça, prostrou-se em terra e adorou. E disse: — Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei. O Senhor o deu e o Senhor o tomou; bendito seja o nome do Senhor!  (Jó 1:20-21)

Veja, Jó poderia ter culpado os sabeus e ele teria razão. Ele poderia ter culpado os caldeus e estaria correto. Poderia ter culpado seus filhos por não buscarem proteção suficiente em uma área em que provavelmente esses tipos de “tornados” aconteciam com frequência. Poderia ter achado inúmeras causas para o seu sofrimento, mas ele diz: “O Senhor o deu e o Senhor o tomou”. Ou seja, o Senhor causou toda essa desgraça.

Sabemos que a fala e percepção de Jó foi acertada pois o próprio Deus afirma logo em seguida: “Em tudo isto Jó não pecou, nem atribuiu a Deus falta alguma” (Jó 1:22). Em outras palavras, Jó não pecou ao dizer que Deus foi a causa da sua crise.

Mais para frente na narrativa de Jó quando seu sofrimento já estava insuportável, suas feridas estavam abertas a ponto de ter de se coçar com caco de barro e sua mulher o tentou para amaldiçoar a Deus, ele respondeu:

Você fala como uma doida. Temos recebido de Deus o bem; por que não receberíamos também o mal? Em tudo isto Jó não pecou com os seus lábios. (Jó 2:10)

Jó sabia que Deus envia o bem e o mal e mais uma vez o narrador diz que pensar assim não é pecado – “Jó não pecou com os seus lábios”. Não é pecado afirmar que Deus causa o bem e o mal em nossas vidas, pelo contrário.

E o que dizer do profeta Jonas? Você já reparou o que Deus causou na vida daquele profeta? Uma das palavras chaves no livro é מנה (mnh), esse verbo significa selecionar algo ou alguém para uma finalidade específica. No livro lemos que Deus enviou (mnh) um grande peixe engolir o profeta (1.17); fez uma planta nascer (mnh) e subir por cima dele (4.6); mandou (mhn) um vento oriental quente para atacar ele (4.8); e o maior milagre ao meu ver no livro todo é: Deus enviou (mhn) um verme para comer a planta que tinha dado como proteção ao profeta (4.7). Pessoas questionam o livro de Jonas pois narra que um grande peixe engoliu um homem. Mas você já viu um verme domesticado? É assim que o livro termina, com um milagre absurdo – um verme domesticado por Deus para cumprir um propósito específico, destruir a planta que Jonas tanto amava. Sim, Deus também controla vermes e envia eles sobre nossas vidas.

Aliás, quando lemos o livro de Jonas devemos perceber que o mesmo Deus que estava ativo na vida do profeta, trazendo tempestades, peixe, vento e verme, é o mesmo Deus que está ativo em nossas vidas. Ele não mudou e continua soberano e ativo sobre toda a criação.

Por último, lembre-se das palavras do apóstolo Paulo: “Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito” (Romanos 8:28). O que são “todas as coisas”? No final do capítulo Paulo fala sobre “tribulação, angústia, perseguição, fome, nudez”. Diz que somos como “ovelhas levadas ao matadouro continuamente” (a vida nunca foi normal para Paulo). Então conclui dizendo que “em todas as coisas, porém, somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou” (Rm 8.37). Essas são “todas as coisas” que Deus causa e usa em nossas vidas. Não só coisas boas, mas também coisas ruins.

Há muito mais para falarmos sobre o assunto, como: a nossa responsabilidade perante a providência divina e do cuidado especial que a providência tem com os santos. Faremos isso no próximo artigo. Mas por hora, meditem nessas coisas. Deus está envolvido no COVID-19, ativamente envolvido. Ele não só permitiu a existência desse vírus, tudo foi ordenado e planejado por Ele. Deus controla reis e vermes. Ele ainda é o mesmo.

Por que isso nos traz consolo e segurança? Se Deus está ativo nisso tudo, Ele não foi pego de surpresa. Seu poder não está limitado, pelo contrário, está operando em tudo e todos. Podemos clamar a esse Deus soberano nesse momento exatamente pois é Ele quem está em controle.

Seria desesperador orar a um deus que não seja soberano.

Oremos com fé:

Ajuda-me a ver quão boa é a tua vontade em tudo,
e, mesmo quando ela vai de encontro à minha,
ensina-me a estar satisfeito nela”.[5]


[1] LEWIS, C.S. O peso de glória. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017. p. 54

[2] CALVINO, J. A Instituição da religião Cristão. Tomo I – Livros I e II – XVII.10. São Paulo: Editora UNESP, 2008.

[3] CALVINO, J. A Instituição da religião Cristão. Tomo I – Livros I e II, XVII.4. São Paulo: Editora UNESP, 2008.

[4] https://www.desiringgod.org/articles/why-i-do-not-say-god-did-not-cause-the-calamity-but-he-can-use-it-for-good

[5] BENNETT, A. (organizador). O vale da Visão: uma coletânea de orações puritanas. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2020. p. 23

Por: Thiago Guerra. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Original: A ação de Deus no Coronavírus.