A pandemia e uma “nova eclesiologia”

Em tempos de crise, onde as antigas rotinas são eliminadas e mudanças, mesmos as previstas em nossas abstrações, nos assustam, algumas doutrinas são chamadas a dar suas explicações e ao mesmo tempo são desafiadas ao aperfeiçoamento. Assim como a geração pós-guerra que testemunhou a volta de Israel à terra prometida precisou revisitar seus modelos escatológicos a fim de encontrar respostas e depurar sua escatologia, a geração pós-denominacional, que testemunhou o surgimento de uma “teologia dos desigrejados”, que vive a pandemia e os “cultos on-line” e as lives sem fim, precisa revisitar seus manuais de eclesiologia. Novas realidades exigem revisitações e muita meditação a fim de providenciar respostas bíblicas sólidas. Se os teólogos pós-guerra precisavam rever o papel de Israel em suas estruturas teológicas, hoje precisamos rever a importância das reuniões públicas; do contato físico, da troca de olhares e das relações palpáveis sem os “filtros digitais”.

Antes de continuar comigo, é necessário entender que as palavras acima estão ancoradas em um entendimento sobre doutrina (natureza, limites e benefícios) que precisa ser explicitado[1]. Seguem algumas declarações sintéticas: (1) Doutrinas, como teorias, são tentativas de representar realidades maiores do que elas mesmas. Elas manifestam a necessidade humana de compreensão e, ao mesmo tempo, de alargamento da compreensão. O reconhecimento do seu “limite criacional” e do seu “potencial de ampliação” é de suma importância para uma apreciação devida. (2) Doutrinas devem ser vistas como portas de entrada, jamais como a meta principal ou o ponto final. O tradicionalismo ou dogmatismo é um exemplo de rejeição dessa realidade. (3) Doutrinas não possuem vida independente. Ignorar tal realidade pode levá-la ao isolamento e à mera especulação. (4) Doutrinas revelam uma necessidade social de comunicação das identidades.

Em suma, a eclesiologia precisa nos ajudar e, ao mesmo tempo, precisa ser ajudada (aperfeiçoada). Sendo direto: se existe algo que está em xeque nesse momento é o valor e a essencialidade da presença física no exercício da comunhão entre os santos. A pergunta que não quer calar é: reuniões são realmente essenciais? Se realmente precisamos dela, o que fazer em tempos de isolamento social?

Não pretendo desenvolver a temática da essencialidade da presença física no exercício da comunhão numa abordagem argumentativa, textual ou exegética. Antes, simplesmente rememorar, por meio de declarações teológicas, o que todo bom cristão, não somente concorda, mas está consciente de sua fundamentação textual. Em seguida, extrairei possíveis implicações dessas mesmas declarações. Seguem as declarações teológicas:

(1) A reunião (ajuntamento) do povo de Deus é a imagem da eternidade. A realidade eterna é desenhada pelos profetas como um ajuntamento de todos os povos em volta da bandeira erguida pelo Messias. A essência da salvação é Deus ser o Deus do povo, é sermos povo dEle e Ele habitar no meio do seu povo. (2) A Igreja é a comunidade escatológica antecipada – é o JÁ da cidade-templo apocalíptica. (3) A eternidade possui a densidade demográfica de uma cidade e na igreja experimentamos o calor da proximidade familiar. (4) É na reunião que boa parte do dons são operantes e o Espírito Santo se manifesta. (5) A Ceia do Senhor exige o discernimento do corpo e é uma refeição comum. (6) A comunicação por carta ou escrita não objetivava substituir os encontros pessoais. Elas se somam e se enriquecem. Tomada sozinhas elas revelam limites. A escrita não veio para substituir as relações, mas orientá-las e enriquecê-las. (7) Reuniões não são somente abandonadas, são trocadas por outras formas de ajuntamento – o homem é um ser social. (8) Reuniões ao redor e direcionadas pela Palavra de Deus são evidências das mãos do Servo. Em suma, nossa identidade e vida passam pela reunião pública. Se isso não está claro para você, sinceramente, sinta-se à vontade em parar por aqui. Vai perder seu tempo. Tem uma live esperando por você.

O que fazer? Como reagir? Que implicações práticas podem ser extraídas das declarações acima? Em primeiro lugar, precisamos responder a essa ausência com lamento. Como bem colocou N. T. Wright, vivendo esses dias como os “tempos de exílio” – longe de “Jerusalém”. A realidade da falta deve ser destacada. Precisamos nos lembrar do que não temos. Deus nos separou. A despeito da presença da família, das plantas, do alimento, da arte, dos aromas, da lua, da chuva, não podemos negar o que nos foi tirado. E diante da privação do essencial, é necessário nos entristecer. Deus quer nos dar a tristeza certa; ele quer nos lapidar por meio dos lamentos.

Segundo, tomar as relações virtuais como um “mecanismo de alento” – um substituto temporário – uma imitação barata do que realmente queremos. Em nossa hierarquia de valores, precisamos reiterar que nada substitui a presença. Sem ela, tudo é sombra. Existe um filtro nas telas, nos cabos e nas ondas da grande rede que impede de passar algo que os que já experimentaram a vida dos relacionamentos em sua expressão madura, mesmo não sabendo articular, percebem instintivamente pelo protesto da alma. Espero que as dose cavalares de relações virtuais a que estamos expostos nos façam desejar o que perdemos. Que o SENHOR nos livre de nos contentarmos com as migalhas das “infinitas lives”. As próximas gerações (se é que existirão) precisarão ouvir desse “tempo de exílio”. Precisamos alertá-las de que as abstrações da vida virtual a longo prazo são sufocantes e nos definham como toda dieta pobre dos elementos essenciais. A relação virtual só pode ser vista como benção quando a presença não é possível. A gratidão pela internet só faz sentido quando ela não é o fim. Ela deve, como a carta da amada e a foto do filho distante, despertar nossa alma para o encontro bem como alimentar a saudade.

Terceiro, precisamos ser ativos. Imitar o esforço prático e efetivo de Paulo para vivenciar uma relação face a face. Existem outras soluções. Não podemos descansar nas opções binárias que nos estão sendo oferecidas pelos míopes da eternidade. Aquilo que é apresentado como essencial no discurso público de um cientista ou de um político não é o mesmo para o povo de Deus. O isolamento completo e hermético é ilusório. Nos expomos a perigos reais quando vamos ao supermercado, a um banco, no abastecimento dos nossos carros e nas filas da farmácia. Somos práticos e efetivos quando o assunto é nosso alimento, nosso carro, nosso dinheiro… Criamos mecanismos de proteção e cuidados. Quando o assunto é a comunhão exercida na presença de um irmão, ficamos como quem declara que sempre quis tocar violão e nunca sequer pegou em um – caímos no desejo passivo dos preguiçosos. Sejamos criativos e não descansemos vivendo na cartilha binária do discurso público. É realmente impossível nos reunir? Não estou certo disso. Podem existir outras opções. Pense. Quando todas as possibilidades forem esgotadas, chore como o faminto no lixão. Garanto que será uma tristeza reparadora.

Em suma, que nossa tristeza pela ausência da culto coletivo seja aperfeiçoada; que nossas dores pela ausência sejam amenizadas pelo alento das relações “em sombra” do mundo virtual; e que o desejo de vivenciar o essencial não seja enfraquecido por uma visão binária pobre, antes, revele-se criativo, esforçado, prático e efetivo. Dessa forma nossa eclesiologia dará um novo passo no longo processo de maturação.


[1] Todas as colocações a seguir são inspiradas na obra A Ciência de Deus de Alister McGrath.