A teologia da bicicleta

Hoje um amigo me perguntou como eu estava encarando tudo isso que está acontecendo. Confesso que tenho evitado pensar muito, mas me detive na pergunta, e respondi que estava com meu instinto de guerreira ativado no máximo, mesmo sem saber ao certo de onde viriam os inimigos a enfrentar, nesse cenário em que a única certeza que temos são as incertezas. São tantas crises acontecendo ao mesmo tempo que fica impossível fazer um planejamento. Na verdade, todas essas previsões de futuro que ouvimos no momento não passam de um tiro no escuro. Ninguém nunca passou por isso e ninguém sabe nada, de fato.

Daí esse meu amigo me veio com uma pérola de sabedoria bíblica, que chamo aqui de teologia da bicicleta, mas que também atende pelo nome de “basta ao dia o seu próprio mal” (Mateus 6.34).

Explico a interessante analogia e a curiosa teologia. Ele me disse: Quando alguém está pedalando uma bicicleta, se parar de pedalar, a bicicleta pende para o lado, a pessoa perde o equilíbrio e cai. Conclusão: para não perder o equilíbrio momentâneo o segredo é não parar de pedalar, ainda que pareça que estamos pedalando “às cegas” ou sem ter ideia do que encontraremos pela frente. Só pedale e não deixe a bicicleta cair.

Mas o que isso tem a ver com o versículo em que Jesus nos exorta, dizendo para não nos preocuparmos tanto com a vida, pois “basta ao dia o seu próprio mal” (Mt 6.34)? Ora, para entendermos as palavras de Jesus, precisamos olhar para o contexto mais amplo em que foram ditas. Elas estão inseridas no famoso Sermão do monte, que começa em Mateus 5. Na verdade, depois de citar as bem-aventuranças, Jesus abre esse sermão ensinando que seus discípulos deveriam ser o sal da terra, a luz do mundo, que deveriam amar o próximo, praticar a justiça, dar esmolas, orar, jejuar (Mateus 5.13—6.18).

A seguir, a partir de Mateus 6.19, Jesus começa a exortar os discípulos sobre alguns perigos deste mundo que nos desviam dessa vocação por ele proposta aos filhos de Deus, para que sejam o sal da terra, a luz do mundo etc. E quais seriam esses perigos? Várias tentações: a tentação de deixar o desejo de acumular tesouros na terra tomar conta do nosso coração; a tentação de permitir que o mal transforme o nosso olhar e todo nosso corpo em trevas; a tentação de servir a dois senhores (a Deus e às riquezas); e, por fim, a tentação de ceder à ansiosa preocupação pela vida.

Sim, esta última hipótese também é apresentada por Jesus como uma tentação à qual devemos resistir. E Jesus trabalha essa questão a partir de uma abordagem bem interessante:

– Primeiro, coloca ordem em nossas prioridades, mostrando que devemos ser gratos pelo que o Pai já nos deu (a vida e o corpo), e não ficarmos ansiosos por aquilo que ele vai nos dar (o alimento e as vestes);
– Segundo, aponta para provas incontestáveis na natureza de que o Pai cuida de sua criação;
– Terceiro, diz que só os gentios (os que não são filhos de Deus) é que devem se preocupar com o que vão comer, beber ou vestir. E por que os filhos de Deus não precisam se preocupar com essas coisas? Ora, justamente porque são filhos de Deus, o próprio Pai cuida deles e se preocupa em providenciá-las, pois sabe que necessitamos delas;
– Quarto, ele nos mostra com o que de fato devemos nos preocupar: “buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas” (Mateus 6.33);
– Por último, tendo dito tudo isso, Jesus conclui: “Portanto [ou seja, por tudo isso que apontei], não vos inquieteis com o dia de amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados; basta ao dia o seu próprio mal” (Mateus 6.33).

Em outras palavras, não se deixe distrair pela tentação das preocupações e ansiedades. Deus já te deu o mais importante (a vida e o corpo). Ele também providenciará o restante (alimentos e vestes). Faça o que Jesus diz: busque em primeiro lugar o reino e a justiça de Deus (ou seja, seja o sal da terra e a luz do mundo, ame o próximo, pratique a justiça, dê esmolas, ore, jejue, viva de acordo com a sua vocação cristã), e ele providenciará as demais coisas, pois o Pai cuida de seus filhos. Portanto, não se distraia com as preocupações, não pare de pedalar em busca do que interessa, não se desequilibre pensando no amanhã: “basta ao dia o seu próprio mal” (Mateus 6.34).