“Deuses” do governo e da ciência: uma palavra de cautela sobre as palavras que usamos

Nos últimos meses, venho acompanhando com certa preocupação a linguagem do debate político no Brasil. Refiro-me não à linguagem da mídia, dos próprios políticos ou dos formadores de opinião em geral. Falo da linguagem que os próprios cristãos empregam entre si, especialmente, das acusações de “idolatria” que fazem uns aos outros, com frequência cada vez maior.

Não me entenda mal: a idolatria é um conceito importante para uma análise reformada da cultura. A Bíblia enfatiza a antítese radical que há entre aqueles que se prostram em humilde adoração ao Deus “criador dos céus e da terra” e aqueles que, em obstinada rebelião, adoram e servem “a criatura em lugar do criador” (Rm 1.25). Num sentido muito radical, toda a experiência humana pode ser descrita em termos dessa “guerra” entre os que servem o Senhor e os que se curvam aos ídolos.

Porém, a mesma Bíblia nos mostra que a idolatria é um grave pecado e que uma das marcas da verdadeira conversão é o abandono dos ídolos para a sincera obediência ao único Deus verdadeiro. Ao louvar os tessalonicenses pelas patentes evidências exteriores da sua fé, o apóstolo Paulo diz: “Pois eles mesmos, no tocante a nós, proclamam que repercussão teve o nosso ingresso no vosso meio, e como, deixando os ídolos, vos convertestes a Deus, para servirdes o Deus vivo e verdadeiro” (1Ts 1.9). Ainda, ao escrever aos coríntios, Paulo menciona a idolatria deles como uma realidade passada e superada: “outrora, quando éreis gentios, deixáveis conduzir-vos aos ídolos mudos, segundo éreis guiados” (1Co 12.2).

Por causa do pecado remanescente, é verdade que os crentes ainda precisam lutar contra resquícios de idolatria no seu coração, ao ponto de o apóstolo João nos exortar: “Filhinhos, guardai-vos dos ídolos” (1Jo 5.21). Porém, todo cristão é fundamentalmente um ex-idólatra, alguém que foi arrancado da cega submissão às criaturas e transportado para a maravilhosa luz que há em viver somente para aquele que é o Senhor, nosso Deus e nosso Redentor. Os resquícios de idolatria não mais definem quem nós somos; pelo contrário, eles são parte do “velho homem” do qual nos despimos diariamente pela obra santificadora do Espírito, enquanto nos revestimos do “novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade” (Ef 4.24). Assim como os idólatras se tornam mais e mais semelhantes aos seus ídolos (Sl 115.8), os cristãos vão crescendo em semelhança ao seu Criador e Redentor.

Portanto, antes de acusarmos um irmão de idolatria, deveríamos nos certificar de ter evidências suficientes da veracidade dessa acusação. O nosso Deus nos dá o exemplo do tipo de cuidado que ele próprio tem ao “investigar” as transgressões humanas: antes de destruir Sodoma e Gomorra, o Deus onisciente desce até as cidades para ver se “de fato, o que têm praticado corresponde a esse clamor que é vindo até mim” (Gn 18.21). Os cristãos são chamados a julgar segundo a reta justiça (Jo 7.24), e um aspecto importante dessa ordem é o “julgamento da caridade”: ao examinar as atitudes do outro, devemos presumir a pureza de suas intenções, sempre que possível. Será que os cristãos que apoiam o presidente são de fato idólatras, ou será que eles acreditam sinceramente que o atual governo tem virtudes que merecem ser louvadas e apoiadas, apesar de suas imperfeições? Será que os cristãos que apoiam maiores restrições de liberdade durante esta pandemia estão de fato endeusando a ciência, ou será que eles acreditam sinceramente que a melhor evidência disponível favorece um endurecimento das medidas em nome da proteção da vida e saúde da população? Será que não podemos dar-lhes (a ambos os grupos) o benefício da dúvida?

Ademais, não deveríamos dizer que cristãos “idolatram” o presidente, ou que “endeusam” a ciência, sem estarmos tomados de um profundo senso de tristeza pela condição desses irmãos. Jesus se derramou de lamento pela incredulidade de Jerusalém e pelo juízo que lhe sobreviria (Mt 23.37). Se temos cristãos cedendo à tentação de confiar no governo ou na ciência acima do Senhor, isso revela a frágil condição da igreja em nosso tempo – o que deveria nos levar à contrição mais do que aos debates nas redes sociais.

Agostinho nos ensinou em forma de oração: “Pouco te ama aquele que ao mesmo tempo ama outra criatura, sem amá-la por tua causa” (Confissões X.29). O cristão, liberto da idolatria da política e da ciência, não passa a desprezar essas estruturas da criação divina; ao contrário, ele passa a amá-las por causa do Senhor. Podemos defender o governo quando, por causa do Senhor, ali enxergamos atos que atendem às normas da ordem criacional. Podemos defender a ciência quando, por causa do Senhor, nela discernimos o cumprimento de sua vocação divina. Não amamos a política, o governo ou a ciência em si mesmos, mas porque eles são dádivas de Deus para serem recebidos com ações de graças. E, se é verdade que por vezes os cristãos se esquecem disso e agem como se tais dádivas tivessem valor intrínseco, à parte do seu Doador, não deveríamos assumir levianamente que nossos irmãos em Cristo estejam cometendo tal abuso só porque defendem algo de que discordamos.

Combatamos, pois, toda forma de idolatria onde quer que a encontrarmos, inclusive dentro da igreja. Mas façamos isso com cautela, julgando segundo a reta justiça, aceitando que nossas divergências no debate cultural podem ter outras razões além da suposição de que o outro (e é sempre o outro!) está endeusando a política, o governo ou a ciência. Guardemo-nos dos ídolos, sim; mas guardemo-nos também do uso abusivo da palavra “idolatria”.