Quarentena e a verdadeira sabedoria

“Ouso ensinar-te duas coisas, isto é, conhece-te a ti mesmo e a Deus”. Agostinho, em Solilóquios 15

Em período de quarentena, quem você tem buscado conhecer?

As dicas sobre como aproveitarmos o tempo em casa têm sido constantes. #Fiqueemcasa: coloque as séries em dia. #Fiqueemcasa: aproveite para dormir mais. #Fiqueemcasa: que tal ler aquele livro que já está empoeirado? Ou retomar as atividades físicas? Ou gastar mais tempo com a sua família? Todas essas opções realmente nos alegram e, em si, podem ser muito boas. Como Agostinho, entretanto, ouso dizer-te: conhece-te a ti mesmo e a Deus.

Conhece a Deus! Ora, conhecer a Deus e a Cristo é no que consiste a vida eterna. Não é isso que Jesus afirma em João 17.3? É verdade que algumas barreiras temporais e culturais tendem a dificultar nosso entendimento do que isso significa. Atualmente, com a mente moderna mais que com a mente cristã, tendemos a reduzir “conhecer” a algo meramente intelectual, a um tipo de apreensão pelas vias do raciocínio sobre quem Deus é. Será que é disso que Jesus está falando? Ou isso é apenas uma parte da resposta?

Para nos ajudar, podemos retomar dois textos bem conhecidos. O primeiro deles está em Gn 4.1, que diz que “Coabitou o homem com Eva, sua mulher”. A palavra para “coabitar” pode ser traduzida, como fazem algumas versões, por “conhecer”. Adão conheceu Eva, ela concebeu e deu à luz Caim. A palavra para coabitar/conhecer traduz uma ideia de ter um tipo de conhecimento íntimo e profundo, uma comunhão reservada para um relacionamento especial, pactual, amoroso. Lembrem-se que após a bela poesia de Adão (Gn 2.23) somos informados de que Adão e Eva eram uma só carne.

O segundo texto, em Rm 8.29, diz: “Porquanto os que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes a imagem de Seu Filho”. Aqueles que foram conhecidos e predestinados na eternidade foram chamados e justificados no tempo e serão glorificados quando da segunda vinda de Cristo. Mas o que significa ter Deus conhecido os eleitos? Significa que ele os amou desde a eternidade! A doutrina da eleição pode ser entendida como a doutrina do eterno amor de Deus. Nesse sentido, portanto, Rm 8.29 ecoa as palavras de Jeremias: “Com amor eterno eu te amei; por isso, com benignidade te atraí” (Jr 31.3). Fomos atraídos no tempo por termos sido amados na eternidade. Novamente, a ideia de conhecer aparece ligada à comunhão íntima, em relação imediata com o amor e no contexto de uma aliança.

Isso acontece também no texto de João 17? Sim! Releia a partir do versículo 22. Mais especificamente, veja o verso 26 quando Jesus diz: “Eu lhes fiz conhecer o teu nome e ainda o farei conhecer”. Qual o propósito de Jesus fazer o nome de Deus conhecido aos seus? O texto segue: “a fim de que o amor com que me amaste esteja neles, e eu neles esteja”. Ora, Jesus afirma que veio ao mundo para que nós conhecêssemos o Pai e para que, conhecendo o Pai, desfrutemos do amor que a Trindade experimenta em si desde a eternidade. Isso é vida eterna: conhecer o Pai, desfrutar de um eterno amor! Foi exatamente por isso que Jesus veio ao mundo. Não é o que lemos em João 3.16? “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.” Qual a prova do imenso amor de Deus ao mundo? Ter Cristo vindo, vivido e morrido pelos que creem. E o que a obra de Cristo promove em nós? A vitória final sobre a morte e a posse da vida eterna.

Não é sem motivos, portanto, que o primeiro mandamento é exatamente amar a Deus com tudo o que temos e somos. Amar a Deus é conhecê-lo, conhecê-lo é ter um íntimo relacionamento com ele, desfrutar de comunhão com ele, ter nosso intelecto, nossas vontades e nossas afeições preenchidas por um incessante desejo de estar na presença dele. E isso só é possível por Cristo ter morrido por nós. Não só Cristo morreu por nós, mas intercede por nós continuamente. Em João 17, se você olhar atentamente o verso 20, vai perceber que nessa oração específica, registrada na Santa e Sagrada Escritura, Cristo está orando por você que hoje crê nele, por você que está lendo esse texto e buscando conhecer mais a Deus. Você é um dos que viria a crer em Jesus por intermédio da pregação do evangelho. Essa oração de Cristo é também por você, é por toda a igreja de Cristo em toda a história, em todas as épocas, até que ele venha.

Por tudo isso, ouso dizer-te: conhece a Deus.

Você tem feito isso? Como andam os seus afetos em relação a Cristo? Você anseia estar na presença dele? Você se deleita em oração, se angustia pela ausência da Palavra? Você percebe o impacto da sua fé em toda a sua vida? Dói no seu coração ler que precisa conhecer mais a Deus e perceber como esse não tem sido um objetivo real em sua vida? Ou sua vida espiritual anda dormente e apática?

Meu irmão, resolva em seu coração, ardentemente, procurar conhecer o Senhor nesse tempo presente! Ao fazer isso você pode experimentar, hoje, um gosto da eternidade! A vida eterna consiste em conhecer a Deus e a Cristo, que foi por ele enviado. Viver como um cristão é perseguir a eternidade no tempo enquanto descansa na certeza de que ele chegará a nós não por nossas forças. Viver como cristão é saborear o doce mel da glória porvir e ansiar confiante pela abundância de doçura que experimentaremos.

Pare e ore como Agostinho: “Ó Deus, tu me conheces, faze que eu te conheça, como sou por ti conhecido.” (Confissões, 10,1,1)

Conhece-te a ti mesmo! Não é possível ter um adequado conhecimento de si mesmo sem um adequado conhecimento de Deus. Aquilo que somos está estritamente ligado com quem Deus é. A Bíblia nos ensina que Deus nos fez à sua imagem e semelhança (Gn 1.26). Conhecer a Deus nos leva a experimentar, no presente tempo, da vida eterna, o que nos ajuda a discernir com mais exatidão quem somos, pois Deus “também pôs a eternidade no coração do homem” (Ec 3.11).

É o conhecimento de Deus, nesse sentido, que ilumina o conhecimento de nós mesmos. Em outro sentido, é verdade também que o conhecimento de nós mesmos nos leva a conhecer mais a Deus. Vendo nosso pecado, percebemos a misericórdia divina; vendo nossa pequenez, contemplamos a grandiosidade de Deus; percebendo nossa fragilidade, observamos como Deus é castelo forte; na experiência de falta, Deus é o provedor; em nossa orfandade, temos Deus por pai; na busca por satisfação, sentido e significado, temos em Deus, e somente nele, nossa completude, nossa plenitude; ansiando por algo maior, muito maior que nós, gozamos no conhecimento de Deus da vida eterna!

Enquanto nossa cultura insiste em olhar para dentro de si em busca de respostas, deificando o homem, chamando-nos de autossuficientes, aprendemos das Escrituras que a forma correta de olhar para nós mesmos passa primeiro por olharmos para fora de nós, para aquele que é maior do que nós, para aquele que nos fez, para o criador e sustentador do universo. Precisamos olhar para nós mesmos pelas lentes dadas pelo nosso redentor.

Isso nos impacta de pelo menos duas maneiras paradoxais e complementares. Primeiramente, não podemos nos esquecer que nossa identidade fundamental está em Cristo. Se cremos nele e o amamos, saibamos que estamos unidos a Cristo e nada pode nos separar dele (Rm 8.28ss). Descansemos! Numa época de dúvidas sobre identidades, gêneros, sentimentos etc., temos uma rocha sólida: somos filhos de Deus, adotados em Cristo, selados pelo Espírito. Deus não nos abandonará no mar revolto da nossa alma. Você conhece a si mesmo como filho de Deus?

Ao mesmo tempo, uma visão cristã de quem nós somos, no tempo, não negligencia a realidade do pecado. Ainda que não vivamos na prática do pecado, nós lutamos ainda com a carne, o mundo e Satanás (leia Rm 7). Você tem levado isso a sério? Esse momento de isolamento é propício a que certos pecados se manifestem em nós: lascívia, gula, preguiça, avareza, ansiedade, murmuração. Você tem aproveitado esse tempo para meditar acerca dos ídolos que habitam no seu coração e que, em meio à crise, têm mostrado as caras? O que você teme perder? O que você ama? Em quê seu coração está firmado? Em quem você tem confiado de fato?

A visão bíblica do homem o eleva e o humilha, mostra sua criação à imagem de Deus, sua queda em pecado e o impacto do amor resgatador de Cristo. Ela pinta um retrato completo da humanidade no tempo passado, presente e futuro. É tempo de nos aproximarmos de Deus em alegria pelo seu amor e em contrição pelo nosso pecado. Quanto mais conhecermos de Deus, melhor nos conheceremos, em grandeza e em miséria. Os recônditos mais sombrios da nossa alma carecem da luz iluminadora do Santo Espírito, as virtudes mais sublimes de nosso ser precisam ser cultivadas no solo sagrado do amor divino.

Pare e ore como Agostinho: “Confessarei, pois, o que sei de mim; e confessarei também o que de mim ignoro, pois o que sei de mim, eu o conheço graças à tua luz, e o que não sei, ignorarei, até que minhas trevas se transformem na luz do meio-dia diante da tua face.” (Confissões, 10,5,7)

Em período de quarentena, quem você tem buscado conhecer? João Calvino abre sua obra magna com a seguinte afirmação: “A soma total da nossa sabedoria, a que merece o nome de sabedoria verdadeira e certa, abrange estas duas partes: o conhecimento que se pode ter de Deus, e o de nós mesmos.” (Institutas 1,1,1). #Fiqueemcasa e ouse conhecer mais a Deus e a si mesmo.