Nos tempos da quarentena (Parte 2/4)

Reavaliação da Doutrina

“…de maneira que não lhes falta nenhum dom…”

Se você quiser resumir, em uma palavra, a situação da igreja em Corinto, quando Paulo escreveu sua primeira carta, a palavra seria “imatura”. Não importa a qual dificuldade, dentre as várias mencionadas naquela epístola, você queira se referir:

– divisão por preferências e afinidades
– vaidade teológica
– falha na disciplina
– brigas judiciais entre irmãos
– imoralidade sexual
– falta de caridade
– comprometimento com a idolatria
– atitude imprópria nas relações entre homens e mulheres no culto
– vaidade espiritual
– falta de zelo com a doutrina

Ufa!

Não importa. Corinto era uma igreja imatura, por conta de diversas formas de orgulho e falta de zelo doutrinário.

Mas não pense que isso se deveu à falta de ensino apostólico. O texto citado parcialmente, acima, diz no seu todo:

“Porque em tudo vocês foram enriquecidos nele, em toda a palavra e em todo o conhecimento, assim como o testemunho de Cristo tem sido confirmado em vocês, de maneira que não lhes falta nenhum dom, enquanto aguardam a revelação de nosso Senhor Jesus Cristo.” (1:5-7)

Como a palavra dom aparece no texto (uma estratégia que Paulo usa em vários de seus escritos para antecipar temas dos quais tratará posteriormente), acabamos não percebendo que sua ênfase, aqui, é, na verdade, no Evangelho (palavra, conhecimento, testemunho de Cristo).

Aliás, isso é confirmado pela própria estrutura da carta. Nela, para cada um dos problemas existentes naquela igreja, Paulo tem uma e somente uma única solução: o Evangelho! Ele não inventa, não busca em saída em outras fontes ou recursos. Paulo se volta sempre e invariavelmente para o Evangelho!

Por exemplo, pense na questão inicial das divisões por conta de preferências ou afinidades (‘…“Eu sou de Paulo”, Eu sou de Apolo”, “Eu sou de Cefas”, “Eu sou de Cristo”…’; v.12). O apóstolo poderia argumentar algo como “Não fica bem essa divisão. Que dirão os não crentes?”. Ou, ainda, “Isso não ajuda a causa de Cristo! Divididos somos mais fracos”. Mais: “Irmãos, vocês devem se amar. Deus é amor! Ame seu irmão!”

Embora essas afirmações possam ter seu valor, Paulo nunca as usa como se fossem um fundamento em si mesmas. Nunca as usa sem deixar claro que a fundamentação para tais atitudes é a obra de Cristo na cruz e que, quando crentes fazem essas coisas, não as fazem da mesma forma que o mundo – nem quanto ao objetivo, nem quanto à motivação. Nessa questão, em particular, Paulo lembra aos coríntios o escândalo da cruz: sua aparente loucura e fraqueza – e a incapacidade dos homens de perceberem todo o poder e sabedoria envolvidos nisso. Noutras palavras, Paulo lhes recorda o Evangelho da graça de Deus em Cristo!

O que isso tem a ver com a quarentena?

Permita-me uma referência pessoal.

No ano de 2013 fui diagnosticado com um tumor cancerígeno na bexiga. Acredite: ouvir seu nome e a palavra tumor, na mesma frase, não é exatamente uma situação confortável… Muitas emoções contribuem para reações incertas, principalmente nos primeiros momentos. Dúvidas, tristeza, questionamentos, etc. Lembro que foi numa segunda-feira que recebi o diagnóstico. E, aí, veio o domingo, com a habitual pregação e cuidado com o rebanho reunido. Obviamente, precisei dar uma palavra à igreja sobre a situação, pois todos estavam um tanto quanto apreensivos, preocupados com seu pastor. Logo depois, preguei. Pela manhã e à noite. O mesmo se deu no domingo seguinte. Então, me veio à mente a verdade pura e simples que, de tão óbvia e recorrente, me escapara no início:

eu não tive que alterar absolutamente nada em minha pregação!

Não fizeram diferença alguma o diagnóstico, as emoções, as dúvidas ou fosse o que fosse. Eu já havia me rendido, muito tempo antes, à absoluta autoridade da Palavra de Deus; ao fato de que:

nada que eu possa dizer a meu rebanho, por mais proveitoso que seja, jamais será melhor do que o que Deus tem pra dizer!

Que maravilha! Que encorajador! Que alegria!

Não tem a ver comigo nem com meu estado de espírito. Não tem a ver com as situações que eu ou minha igreja estejamos enfrentando. Se estamos entre amigos ou inimigos, sozinhos ou acompanhados, celebrando a ceia com a congregação ou presos na cela inferior de uma prisão romana!

Tudo que importa é se você conhece e está firmado no Evangelho da graça de Deus em Cristo!

Nestes tempos de quarentena, as convicções estão sendo postas à prova. Relacionamentos estão sendo testados. Mas o teste principal é: a doutrina que você tem aprendido e na qual tem afirmado crer é a expressão sadia do Evangelho? Ela serve quando você está saudável ou doente? Acompanhado ou isolado? Ela é bíblica a ponto de ajudar você, inclusive, quando as emoções querem tomar o controle e nos lançar num redemoinho desgovernado, seja de euforia ou desespero?

A doutrina que não é verdadeiramente bíblica acaba sendo atropelada pela realidade!

Que estes sejam tempos de lançar fora o fermento velho, não importa quanto tempo você tem permitidos que ele influencie sua vida. Que você comece a comer o pão da sinceridade e da verdade, se ainda não o fez (5.7-8).

“Só tu tens as palavras de vida eterna” (João 6:68)