O uso do púlpito – possíveis efeitos jurídicos

Notícia vai, notícia vem, e presenciamos organizações religiosas a ser condenadas em primeira instância pela seguinte acusação “ludibriar os fiéis a entregar seus bens”. Em razão da “benção não conquistada”, alguns sentem-se lesados e vão para o judiciário a fim de reaver a oferta entregue. O exercício do púlpito — lugar da pregação no contexto cristão, também é alvo de controvérsias que desafiam o olhar da responsabilidade civil. O Direito contemporâneo e suas múltiplas “gerações de direitos”, tem criado verdadeiros desafios para a livre expressão doutrinária, é importante prudência, aliás, sempre é importante ter prudência, já dizia Aristóteles.

A força do púlpito é conhecida pela atração que o líder exerce sobre o fiel. Muito do que se observa do atual estado judicial é um verdadeiro ativismo sobre determinadas matérias. Um exemplo disso é o reiterado número de situações envolvendo pedidos de anulação de doações, por parte de ex-fiéis, que, sentindo-se lesados pelas graças não alcançadas (algumas vezes prometidas no púlpito), querem reaver o que antes doaram como parte de seu compromisso espiritual. Interessante é notar que a jurisprudência relata esses casos como sendo de “coação moral irresistível”.

Pensando no “culto público” como gênero, a pregação ou o uso do púlpito é a espécie mais sensível. O excesso do pregador, a ponto de ofender a honra de alguém, muitas vezes pode ser passível do Poder Judiciário reconhecer a possibilidade indenizatória, entretanto tal possibilidade nunca pode simplesmente ser catalogada em padrões objetivos, dito de outra forma: as especificidades do caso em si devem ser criteriosamente analisadas, antes de qualquer decisão condenatória, visto que estamos diante do sagrado e da ordem espiritual, a qual, o Estado, por meio do Poder Judiciário, somente deve ingressar em situações excepcionais e de desvirtuamento do sacro.

O âmbito de equivalência dos princípios constitucionais demonstra claramente que a liberdade de crença e expressão de religiosidade é basilar para o verdadeiro exercício de uma cidadania democrática no contexto do Estado Democrático de Direito. Logo, quem declara viver pelo sistema de crenças que abraçou tende a submeter todas as situações da vida a esse prisma; a comunidade que reconhece aquele que usa o púlpito comunga dos mesmos valores e princípios das declarações dali emanadas — exceto quando realmente fujam da declaração de fé e prática da comunidade — expressam a vontade daqueles que vivem sob as lentes de sua confissão religiosa.

Nas hipóteses que efetivamente houver abuso e desvio de finalidade que transborde a ordem espiritual, esta imune de interferência estatal, é importante a busca de balizadores para reconhecer quando o uso do púlpito pode ser feito de forma ilícita. A primeira etapa investigativa seria entender se na fala direta ou seu contexto poderiam incorrer na tipificação penal dos crimes contra a honra, quais sejam, aqueles disciplinados no Código Penal, em seus artigos 138 a 140, que tratam dos crimes de calúnia, difamação e injúria.

O crime de calúnia (art. 138) é cometido quando o agente imputa à vítima um fato que é tido como crime, que não foi por ela cometido. O crime de difamação (art. 139) trata da reputação atacada, exemplo quando alguém publicamente fala de maneira a ofender alguém em função de seu ofício ou capacidade intelectual. Já o crime de injúria (art. 140) é o chamado xingamento, ofensa a alguém, ou seja, às características — físicas ou não, que fazem da vítima quem ela é.

Como segunda etapa, ao analisar a declaração de púlpito que levou o ofendido a buscar reparação moral perante o Judiciário ou, até mesmo, o oferecimento de queixa-crime que inaugura processo criminal nestes casos, caberá ao julgador também entender se há consenso naquela comunidade e em suas regras de fé e prática quanto ao que foi dito; a fala de consenso é a fala de todos, a fala isolada não representa o pensamento da comunidade, além da preservação objetiva da dignidade da pessoa humana. O conjunto de normas canônicas, subscrito pelos membros e sua liderança, é de fato e de direito sua Constituição. Dela emanam os axiomas máximos pelos quais expressam seu inalienável direito de liberdade religiosa e, se a declaração se dá de acordo com o conjunto de normas, em comprovado ambiente de urbanidade e decoro, dificilmente haverá espaço para determinar o ato como ilícito, caindo por terra a primeira condição sine qua non para reconhecer a possibilidade de indenizar.

Fazer uso da palavra no púlpito de acordo com as regras canônicas de sua confissão dá ao ministro a mesma imunidade de fala que o parlamentar possui no uso da tribuna ou o advogado no exercício do manejo processual. A conclusão lógica deste tópico aponta novamente para a obrigatoriedade de reconhecimento do caráter subjetivo na análise de reparação civil quanto ao uso do púlpito. Qualquer outra posição ameaçará a ampla liberdade que a Constituição de 1988 e, além, a vontade soberana do povo brasileiro, conferiram ao fenômeno religioso.

Esperamos que você tenha chegado até aqui antes de “arrancar os cabelos” nos comentários: questão constitucional e jurídica não se confunde com questão doutrinária. O texto não valida, teologicamente, qualquer tipo de doutrina. Cada coisa em seu devido lugar! Para uma boa exposição teológica sobre o tema, a Igreja tem várias figuras intelectuais competentes para tal.

Mesmo que uma determinada linha de pensamento confessional venha a contrariar aquilo em que se crê na comunidade reformada, o direito constitucional da liberdade religiosa e da liberdade de escolha permanecem. Imposição doutrinária não faz parte do modelo de laicidade brasileiro e sim, em um modelo teocrático puro, que não é o caso da República Federativa do Brasil.


Este texto contém excertos do livro: Direito Religioso: Questões Práticas e Teóricas [3ª Ed. Rev. e ampl. São Paulo, Vida Nova.]